No fim do ano de 2018, o então candidato à presidência do Brasil, Jair Bolsonaro (sem partido), afirmou que vinha trabalhando em uma série de políticas públicas voltadas para as mulheres -- entre elas, políticas de combate à violência contra a mulher , cujos números seguem crescendo no país. Dois anos depois de sua posse, pouco se caminhou em relação a essas e outras demandas; muito pelo contrário, o cenário piorou.
A pandemia do coronavírus fez aumentar os casos de violência contra a mulher, já que, devido ao isolamento social, as mulheres passam mais tempo em casa com seus agressores. De acordo com dados do Ministério da Saúde, uma mulher é agredida a cada quatro minutos no país.
Só no primeiro semestre de 2020, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2020, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), os casos cresceram em 5,2%, totalizando mais de 266,3 mil registros de lesão corporal dolosa . Esse tipo de violência, quando não impedida, pode levar ao feminicídio. Em 2019, os feminicídios cresceram 7% em relação ao ano anterior e causaram mais 1.326 mortes , sendo 66,6% das vítimas mulheres negras.
Segundo dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), o Brasil é o 5º país que mais mata mulheres de maneira violenta. Para se ter uma ideia, mata-se 48 vezes mais do que no Reino Unido e 16 vezes mais que no Japão.
Atualmente, o principal responsável por esse setor é o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH) , que uniu a Secretaria Nacional de Políticas para Mulheres ao Ministério de Direitos Humanos. A principal figura desse núcleo é a pastora evangélica e advogada Damares Alves, ministra da pasta.
Segundo Clara Borges, advogada e doutora em Direito, essa junção por si só já foi recebida com preocupação. “A união desses três assuntos em um único ministério dispersa bastante a atenção. Antes, você tinha um órgão específico para tratar de questões das mulheres, desde a participação da mulher na política até as relativas à violências. Agora, a pasta tem de se dividir”, afirma.
Como o governo encara as políticas para mulheres?
Diante dos números alarmantes, Borges e Mariana Felix, jornalista, pesquisadora e cientista política, o Brasil vive um retrocesso. O atual cenário é marcado pela falta de investimentos e de criação de políticas capazes de assegurar o bem-estar, a saúde e a vida das mulheres.
Felix diz que antes do governo Bolsonaro existiam fóruns de discussões com a sociedade civil para que as políticas públicas fossem avaliadas. Vários desses espaços foram desativados pelo atual governo, como exemplo o Comitê de Gênero, Diversidade e Inclusão.
O programa Casa da Mulher Brasileira, lançado durante o governo da presidente Dilma Rousseff em 2013, também é lembrado pela pesquisadora. “O Casa da Mulher Brasileira tinha como função garantir a proteção e o acolhimento de mulheres vítimas de violência doméstica. No governo Bolsonaro, ele está sendo massacrado sem qualquer investimento financeiro”, afirma Felix.
Em 2019, Damares , afirmou que seria “impossível” manter o programa, mesmo com investimento federal em torno de R$ 70 milhões. Em abril daquele ano, ela afirmou na Câmara dos Deputados que o programa deveria continuar, mas em formato menor. “Temos que encontrar uma alternativa, mas o ministério não tem como custear”, afirmou. O projeto teve verba reduzida para R$ 13,6 milhões em 2020, mas continuou parado.
Em novembro de 2020, a coluna do jornalista Jamil Chade, do UOL, revelou que Bolsonaro repassou apenas 5,4% da verba total que deveria ser destinada ao MMFDH: dos R$ 167,7 milhões, a pasta recebeu apenas R$ 9,2 milhões. “A falta de investimento financeiro em programas e ministérios fundamentais demonstra o baixo valor que as vidas das mulheres ocupam neste governo. Tais negligências não são escolhas governamentais, mas, sobretudo, uma política de Estado genocida”, acrescenta Felix.
Postura de Damares Alves
De acordo com a análise de Borges, o perfil de Damares é “bem delineado” e deixa claro quais são seus objetivos com suas agendas no ministério. Religiosa, a ministra demonstra muito interesse em transpor seus valores pessoais à política. “Ela prioriza muito a família, a mulher gestante e se importa com a participação de mulheres na política”, afirma.
Borges diz ainda que a ministra zela por um perfil específico de mulheres para proteger enquanto exclui outros. De acordo com a advogada, são priorizadas as mulheres inseridas em contexto patriarcal, que são as casadas, heterossexuais e que constituem família.
Por outro lado, são esquecidas em seu planejamento de ações aquelas mulheres que escolheram não constituir família, em privação de liberdade , transexuais, travestis, lésbicas e trabalhadoras sexuais . As mães solo também não são alvo de políticas públicas, apesar de comporem um grupo bastante numeroso. De acordo com levantamento da Associação Nacional dos Registradores Civis de Pessoas Naturais (Arpen Brasil), quase 81 mil crianças foram registradas só com o nome da mãe de janeiro a junho de 2020.
“Damares acaba não protegendo ninguém porque ela não é uma pessoa de concretizações, mas uma pessoa que fala muito, que tem uma boa retórica”, explica. Felix afirma ainda que os discursos da ministra sempre propagam valores machistas e, por estar em uma posição privilegiada, incentiva que outras pessoas cometam violências físicas e psicológicas. “Como diz o filósofo Michael Foucault, os discursos são práticas de poder”, diz.
É também por meio de suas ações e discursos que Damares reduz as questões enfrentadas por mulheres brasileiras. Em novembro de 2019 a ministra afirmou que capacitaria todas as delegacias para receber denúncias ao pintar as salas de rosa.
“Vamos capacitar todos os agentes de delegacias do Brasil, todos os delegados. Nem que seja uma salinha desse tamanho, todas as salinhas desses país estarão capacitadas para receber mulheres”, afirmou a ministra em cerimônia no Palácio do Planalto. As pinturas das "salinhas" começariam em janeiro de 2020, mas nem isso chegou a acontecer.
Alterações na Lei Maria da Penha
Desde o início do atual governo até agora, a Lei nº 13.827, a Lei Maria da Penha , recebeu novas inserções. Em algumas delas, estão previstas:
- Lei nº13.871: Obrigação do agressor a reaver custos de serviços de saúde prestados pelo SUS às vítimas de violência doméstica e a dispositivos utilizados, se houver
- Lei nº13.880: Apreensão de arma de fogo do agressor, caso tenha posse
- Lei nº 13.894: Autorização aos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher a anulação de casamento, divórcio e separação de união estável, caso haja violência
- Lei nº 13.882: Asseguração de matrícula dos dependentes da vítima em instituição de educação básica que seja próxima de sua casa.
Mas uma das inserções mais relevantes neste período é a da Lei nº13.827, que permite que delegados possam dar medidas protetivas de emergência para mulheres após o registro do boletim de ocorrência. Caso o delegado esteja ausente, a autorização se estende ao agente policial. Após 24 horas, o processo é encaminhado ao judiciário, que determina se as medidas serão mantidas ou não.
Em 2020, houve dois acréscimos no Artigo 22, que diz respeito à pena do agressor e o conjunto de medidas protetivas que podem ser adotadas, que determinam que o agressor deve participar de programas de reeducação e passar por acompanhamento psicossocial individual ou em grupo.
De acordo com Borges, essas medidas, juntamente da pena, importam para causar algum tipo de transformação por parte do agressor. “Sabemos que isso nunca vai acontecer em uma prisão”, afirma. No entanto, é preciso que as punições sejam condizentes ao crime cometido. Dessa forma, passaria-se uma mensagem para a sociedade de que trata-se de uma ação inaceitável.
Além disso, a advogada reforça que é preciso monitorar a situação para que não chegue ao ponto do feminicídio. “Esse assassinato não acontece de repente e nem é um descontrole do homem. É um processo que vai se acirrando. Começa com as ofensas verbais, depois violência física até chegar no feminicídio. Por isso, o acolhimento à vítima com aplicação de medidas protetivas e a educação à população é fundamental”, detalha.
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Violência doméstica e pandemia
Como resposta ao aumento de incidência de casos de violência contra a mulher, o MMFDH expandiu a capacidade de atendimento do 180 e do Disque 100. No período mais intenso do isolamento social, esses canais chegaram a receber 11 mil ligações por dia, segundo a pasta.
Também foram criadas peças publicitárias e a campanha Vigilância Solidária, que incentiva que vizinhos denunciem casos que podem estar acontecendo ao seu redor. Além disso, o Ministério lançou um novo site e aplicativo para celular para que as mulheres possam fazer a denúncia.
Borges lembra ainda que a ministra Damares lançou a cartilha “Mulheres na Covid-19”. No entanto, diversas políticas descritas neste material não saíram do papel. A advogada analisa que o atendimento foi muito mais feito por órgãos não estatais, como foi o caso, por exemplo, do botão de denúncia criado para o site do Magazine Luiza.
Apesar de parecer novidade, Borges explica que outras entidades já faziam uso do aplicativo. Logo, a medida foi reciclada e adaptada para a pasta. Felix enfatiza ainda que aplicativos e sites não asseguram a segurança de todas as mulheres, já que existem pessoas que não possuem acesso à Internet, computador ou celular.
De acordo com Borges, a ministra Damares demonstra grande interesse e preocupação no combate à violência doméstica, mas não é eficaz ao criar medidas para prevenção desses episódios, tampouco para proteger as vítimas após as primeiras ocorrências, o que pode levar ao feminicídio. “O 180 funciona e é importante. Mas, além dele, o que mais a gente tem? Não adianta facilitar o direito de denunciar e depois largar a vítima, deixá-la sem assistência, sem lugar para ficar. Ainda mais no meio de uma pandemia”, diz.
Apesar de existirem casas de acolhimento, como o próprio projeto Casa da Mulher Brasileira, Borges avalia que nem sempre elas são suficientes para a alta demanda. Além disso, a falta de políticas públicas mais eficazes que busquem inseri-las no mercado de trabalho ou relacionados a uma renda mínima, como o Auxílio Emergencial.
Participação mais ativa é do Supremo Tribunal Federal (STF)
Com poucos projetos ou ações sendo aprovadas e efetuadas pelo Governo Federal e seus ministérios, Borges assinala que o Legislativo e o Judiciário têm ocupado o espaço de pensar leis pautadas para os Direitos Humanos. O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal (STF) têm tomado decisões que podem impactar no direcionamento de pautas relacionadas aos direitos das mulheres no Brasil de forma significativa.
No dia 26 de fevereiro de 2021, o ministro Dias Toffoli decidiu que réus não poderiam mais usar como argumento, em casos de crime de feminicídio, que agiram por “legítima defesa da honra”.
Entre outras das ações marcantes do órgão nos últimos dois anos, estão a aprovação da Lei nº 13.811/2019, que proíbe em todas as hipóteses o casamento infantil. De acordo com a Organização das Nações Unidas (ONU) o Brasil é o 4º país no mundo em casos de casamento infantil.
Outra decisão importante foi a criminalização da LGBTfobia em junho de 2020, que proíbe práticas, incitações e induções de preconceito e discriminação contra pessoas devido às suas identidades de gênero e orientações afetivo-sexuais. É considerada marcante já que o Brasil é o 1º país que mais assassina pessoas LGBTQIA+ no mundo.
Na teoria, a criminalização da LGBTfobia protege mulheres trans, travestis, bissexuais, interssexuais e lésbicas desses crimes e pode levar de um a três anos de prisão, além de multa. Borges diz que a aprovação dessas leis é importante, mas são muito mais simbólicas do que práticas. “A sociedade só entende a linguagem do direito penal. Quando você diz que uma determinada conduta é crime grave e que a pena não é amena, isso se torna um recado”, diz.
Direitos reprodutivos
Atualmente, aborto é legalizado no Brasil em casos de risco à vida da pessoa gestante e do feto, de anencefalia feta e de estupro. No entanto, em dezembro de 2020 o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, assinou portaria que obriga que profissionais de saúde notifiquem às autoridades a entrada de vítimas de estupro que desejam realizar o aborto -- que, nesse caso, é permitido.
“Entre alguns entraves dessa medida, nós temos uma série de formulários que precisam ser preenchidos pelos médicos, relato de estupro da vítima para a polícia, necessidade de boletim de ocorrência e de se perguntar se a mulher que foi estuprada quer ver o feto no ultrassom”, afirma Borges. A advogada vê essa portaria como algo grave, já que consiste em tentativa de impedir um procedimento que está previsto pela Lei nº2.848, sancionada em 1940.
Uma das propostas do governo Jair Bolsonaro durante sua candidatura era dificultar o acesso ao aborto legal, seguro e gratuito para todas as pessoas que desejarem fazer o procedimento. É ainda uma tema que enfrenta resistências na sociedade civil, devido aos valores religiosos que atravessam o assunto.
“Você tem uma questão religiosa que não deveria surgir, até porque a gente está em um estado laico. Se um indivíduo é contra o aborto, ela pode professar contra ou não fazer o procedimento, mas não deve interferir no desejo do que outra pessoa quer”, afirma Borges.
Mesmo diante do aborto criminalizado , dados do DataSUS apontam que, em 2020, foram realizados cerca de 80,9 mil procedimentos de aspirações e curetagem no Sistema Único de Saúde (SUS) após tentativas malsucedidas de aborto.
A advogada explica que a maior interesse para a legalização do aborto é torná-lo seguro, gratuito e acessível para todas, principalmente para mulheres negras e pobres, que são as que mais morrem em decorrência de uma interrupção feita clandestinamente.
A descriminalização do aborto implica também na criação de meios de chegar a esse serviço, além de estabelecer acompanhamento psicológico para garantir o bem-estar mental da mulher que desejar fazer o procedimento.
Abstinência sexual como prevenção à gravidez na adolescência
Em fevereiro de 2020, o MMFDH lançou a campanha “Tudo tem seu tempo”, que consistia em prevenir a gravidez na adolescência por meio de abstinência sexual. De acordo com dados da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), 18% dos bebês que nascem no Brasil são de adolescentes entre 15 e 19 anos, o que gira em torno de 400 mil casos anualmente.
Felix comenta que essa afirmação pode ser danosa não apenas para as mulheres, mas também para os adolescentes trans e não-binários. Além disso, é considerada uma violação ao planejamento de vida de cada pessoa e ao direito à sexualidade por meio de estereótipos de gênero.
“É justamente falando de sexualidade que teremos uma conscientização maior em relação aos métodos anticonceptivos e ao cuidado às doenças sexualmente transmissíveis. Apesar de ser tabu, tal debate deveria estar presente nas escolas, nas universidades e, com seriedade, nos órgãos governamentais”, opina a pesquisadora.
Próximos passos
Segundo Borges, a tendência é que as mulheres sintam o impacto da crise econômica de duas maneiras: financeiramente e de forma violenta, já que situações de crises econômicas geram situações extremas, que geram violência.
“Com esse aumento do índice de violência, as populações vulneráveis vão precisar de atenção. Como a previsão é de que medidas não sejam adotadas, a tendência é piorar”, afirma.
Com isso, Felix diz que o principal desafio das mulheres será a preservação de suas próprias vidas “seja na pandemia, na qual nossos corpos se mostram como os mais vulneráveis, tanto como nos planos econômico e político”. Ainda será uma necessidade a preservação e manutenção dos direitos já conquistados.
Para Felix, é urgentemente necessário que órgãos governamentais apliquem recursos em apoio às mulheres, como a criação de novos programas ou o fortalecimento das ações já existentes. “Também precisamos da criação de uma renda básica a toda população de baixa renda no período da pandemia, pelas quais, principalmente mães chefes de família, serão beneficiadas”, afirma.