No documentário 'Flores do Cárcere', mulheres egressas relatam vida na penitenciária
Bárbara Cunha
No documentário 'Flores do Cárcere', mulheres egressas relatam vida na penitenciária


Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen) o Brasil possui hoje mais de 759 mil pessoas presas. As  mulheres correspondem a cerca de 5% da população carcerária do país, cerca de 37 mil. Apesar de serem minoria, o número de presas tem crescido numa proporção bastante alta: 567% nos últimos 15 anos.

É essa realidade que Bárbara Cunha aborda no  documentário ‘Flores do Cárcere’, com lançamento pela plataforma NOW no dia 8 de março, Dia Internacional da Mulher, o filme, co-dirigido por Paulo Caldas, conversa com seis mulheres egressas que cumpriram pena na Cadeia Pública Feminina de Santos, em São Paulo.


“O filme é baseado no livro de mesmo nome escrito por Flavia Ribeiro de Castro, que conta sua experiência de trabalho lá. Voltamos na cadeia para conversar com personagens do livro sobre suas ligações com a cadeia”, explica Cunha ao iG Delas. A Cadeia Pública de Santos é provisória, onde mulheres aguardavam para serem autuadas e julgadas para, então, serem transferidas para um presídio.

Mais do que falar sobre o cárcere, os diretores quiseram se aprofundar sobre as condições do cárcere e os impactos que essa realidade sobre quem continua no sistema e em quem já saiu dele. Uma das sequelas apontadas é o sentimento de solidão nas prisões femininas.

“É muito contundente o abandono que elas vivenciam. Em dias de visita, a fila nos presídios masculinos é enorme, cheia de companheiras que persistem na relação. No caso da cadeia feminina, as que vão são as mães para levar os filhos que ficam do lado de fora”, afirma a diretora.

A explosão do encarceramento feminino no Brasil

Dados do Infopen Mulheres, de 2017, apontam que o tráfico de drogas é motivação de quase 60% das sentenças, seguido de roubo (12,90%) e furto (7,80%). 

A Lei nº11.343, conhecida como Lei de Drogas, aprovada em 2006, que tinha como objetivo reduzir o  tráfico e o consumo indevido de drogas ilícitas no país incentivou esses números a aumentar. De acordo com a doutora em Antropologia e pesquisadora especializada em sistema prisional, Kátia Sé Mello, a lei impactou diretamente nesse ritmo acelerado de crescimento de mulheres encarceradas. Atualmente, esse efeito tem o nome de encarceramento em massa ou hiperencarceramento.

Segundo a advogada Camila Martins, mestre em Direito na área de Estado, Jurisdição e Poder, pesquisas mostram que o perfil médio dessas mulheres encarceradas eram desempregadas e residentes de bairros pobres. No caso das que trabalhavam, eram babás, diaristas e faxineiras, que foram excluídas do mercado de trabalho.

“Com isso, elas passam a exercer a função de ‘mulas’, muitas vezes para garantir o sustento dos filhos, que já possuem histórico familiar de presos pelo tráfico”, explica Camila. A advogada acrescenta que é muito comum que essas mulheres acabem entrando no tráfico por pressão de seus companheiros.

Há ainda as mulheres que são presas por associação para o tráfico. Essa situação é caracterizada por alguém que está próximo de uma pessoa que está traficando, mas que não está praticando ilegalidades. Mello explica que essa situação pode resultar na duplicação ou até triplicação da pena.

Maioria das detentas são negras

O Infopen aponta que mais da metade das  mulheres presas são negras: até 2018, elas integravam 62% de toda comunidade de mulheres em privação de liberdade. Além disso, 45% de todas as mulheres não terminaram o Ensino Fundamental. Ao longo da gravação do documentário, Cunha também percebeu que grande parte das detentas são rés primárias e mulheres muito jovens.

Martins e Mello explicam que não existe uma resposta simplista e universal para justificar esse perfil majoritário, mas ambas concordam em suas falas que o sistema carcerário teve como herança as consequências do racismo e, no caso das mulheres, da sociedade patriarcal. “Embora os homens ainda representem mais de 90% da população prisional, dados do Infopen de 2018 mostram que as mulheres negras são, proporcionalmente, o grupo que mais cresce, o que demonstra uma simbiose entre raça, pobreza e punição”, explica Martins.

Segundo Mello, o Brasil possui um histórico de exclusão, desigualdade social e opressão de pessoas negras oriundo da escravidão. “Depois da mudança do Império para a República, quando aconteceu a libertação, as pessoas negras não foram plenamente inseridas em nenhuma esfera da sociedade, seja no mercado de trabalho ou no acesso à saúde e educação, empurrando-as para a periferia ou moradias insalubres”, diz a antropóloga.

Ela define esse efeito como racismo estrutural ou institucional, conceito muito abordado principalmente desde o último ano. Segundo Mello, são atos históricos que promovem a exclusão de pessoas negras e pobres de determinados espaços.

Para as mulheres negras, essa opressão é maior. Historicamente, as mulheres são vistas como objetos e silenciadas nos países ocidentais. Por esse motivo, Mello explica que o julgamento delas no sistema é baseado em valores e morais que são parte do patriarcado (ou seja, de valores machistas que moldam a sociedade). Em grande parte dos casos estudados por ela, existe moralidade ao analisar o comportamento da mulher, o território em que estava quando foi presa e o horário do dia em que foi presa.

Mello observou esse tipo de comportamento por parte de juízes, principalmente em relação ao julgamento de mulheres grávidas e de mães de crianças de até 12 anos . A pesquisadora explica que essas mulheres preenchem os requisitos previstos no artigo 318 do Código Penal que permitem pena alternativa para essas detentas, desde prisão preventiva até prisão domiciliar.

“Elas têm esse direito negado porque juízes questionam suas condutas: ‘já que ela é mãe, ela não podia ter se metido com essas pessoas’, ‘o que ela estava fazendo às onze da noite em um lugar ermo?’, ou ‘se ela queria ser mãe, deveria ter pensado antes’ são alguns dos argumentos”, afirma.

Martins reforça que esse tipo de comportamento de pessoas que fazem as aplicações da lei, e não à legislação em si. “O que se observa em diversas pesquisas em nível acadêmico é que o Brasil é um país eminentemente racista e patriarcal, marcado por influência de atuação policial quase que totalmente branca, de modo que os pretos acabam alcançando apenas cargos mais baixos na segurança pública. A lei penal, no entanto, não faz qualquer diferença entre cor da pele para a realização de prisões e condenações”, afirma a advogada.

Penas injustas

Em anos de pesquisas sobre o sistema prisional, Mello notou que o tempo decretado da pena é, em muitos casos, desproporcional ao delito que as mulheres cometeram. Atualmente, ela estuda o caso de uma detenta que foi sentenciada a cumprir 159 anos em regime fechado, por tráfico.

De acordo com a antropóloga, essa sentença é dada para fins de não só punir, como demonstrar poder sobre a pessoa sentenciada. “Ninguém vive 159 anos. É que nem cobrar uma multa de alguém que você sabe que nunca vai ter esse dinheiro para te pagar. É uma espécie de humor macabro”, explica. Essas sentenças iriam de encontro com a Lei de Execuções Penais (LEP) em que, ela afirma, existem outras maneiras de se aplicar penas proporcionais e de forma mais justa.

Ressocialização

Entre as situações experienciadas por mulheres do cárcere, Cunha diz que é evidente a dificuldade de pessoas egressas, homens e mulheres, de conseguirem continuar suas vidas depois da cadeia. Com isso, elas evitam relacionamentos e dificilmente conseguem se recolocar no mercado de trabalho.

Em ‘Flores do Cárcere’, os diretores querem mostrar que a realidade pode ser diferente. “A gente quer sublinhar que um erro define as egressas e que elas podem reescrever suas histórias”, explica Cunha.

Mas de acordo com Mello, é muito difícil que as egressas tenham qualquer perspectiva além do sistema penitenciário. Ao seu ver, o sistema não está preocupado em ressocializar as pessoas presas, mas punir e oprimir ainda mais. “A verdade é que a egressa vai sair dali e não vai ter outra chance na vida, principalmente se o empregador, por exemplo, sabe que ela foi presa”, continua.

A única iniciativa que ela vê como uma tentativa de reinserção social são os estudos, a leitura e o trabalho feito dentro das penitenciárias, que podem diminuir suas penas em 2 a 3 dias por ano. No entanto, caso uma detenta apresenta má conduta, como brigar com um agente, por exemplo, ela recebe uma falta disciplinar, o que a impede de fazer atividades que podem diminuir suas penas.

“Impedir que elas estudem, trabalhem ou façam leitura também são formas de punir”, afirma a antropóloga. O próprio trabalho de remição é uma demanda das mulheres presas, que pedem que essa proporção seja menos rígida.

A maneira como o Brasil lida com o sistema carcerário como um todo também diz muito sobre a pouca preocupação do país em atender as particularidades de cada uma das pessoas presas e, além disso, conseguir fazer com que elas tenham uma vida depois da cadeia.

Mello usa de sua experiência própria para ilustrar as dificuldades que teve para começar a pesquisar em campo. Com o intuito de pesquisar em cadeiras do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, ela passou quase 2 anos esperando por uma aprovação. “Existe muita resistência e desconfiança à presença do pesquisador”, diz.

Ela cita como oposto a França, país que não só autoriza os estudos com mais rapidez como incentiva as pesquisas em penitenciárias. “Eles querem saber mais sobre quais são os problemas e como agir para minimizá-los. O Brasil é muito associado à necropolítica: você tem uma política de deixar essa população morrer”, afirma a pesquisadora.

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