A linguagem é uma das ferramentas mais importantes da sociedade, já que a partir dela pode-se criar laços e compartilhar informações que possibilitam a vida em sociedade. Ao passo que as palavras conseguem fazer os seres humanos avançarem, existem diversas delas que são ofensivas e que podem evocar o machismo presente em nossa cultura.
De acordo com a especialista em linguística da empresa de educação alemã Babbel, Camila Rocha Irmer, as ofensas tendem a ser veladas e podem crescer de maneira gradual. “A linguagem é um instrumento muito utilizado para testar até onde é possível ir com determinada pessoa. Também é por meio dela que passamos para frente diversos preconceitos”, explica.
Esses preconceitos citados por Irmer podem ser proferidos contra pessoas que fazem parte de minorias de direitos, como é o caso das mulheres. Segundo ela, existem raízes do patriarcado muito presentes no vocabulário de diversos idiomas diferentes.
“Nós falamos esse tipo de coisa, mas não temos consciência porque isso surgiu no momento em que o homem tinha mais força e poder social e a mulher, nenhum. A partir da linguagem percebemos que, sim, nós ainda vivemos no patriarcado”, diz.
Para ilustrar o exemplo, a especialista cita o uso de pronomes, substantivos e adjetivos usados em um grupo formado majoritariamente por mulheres. “Pode ter só um homem ali, mas você usa tudo no masculino porque é como nossa gramática funciona”, afirma. Esse padrão linguístico segue uma lógica excludente e de não pertencimento.
Machismo na linguagem
O machismo na forma de se comunicar pode acontecer tanto de forma sutil como escancarada. Como exemplo evidente, Irmer cita a frase “você não tem culhões pra fazer isso”. “As pessoas não têm consciência do que essa palavra significa”, diz Irmer. A palavra “culhão”, geralmente usada para definir coragem, está diretamente relacionada ao pênis ou ao saco escrotal.
Ela também cita a expressão “seja homem”, que também significa ter coragem ou ousadia. “Espelha-se características masculinas para dizer que algo é o ideal”, explica a especialista. Por outro lado, os dizeres usados para definir mulheres são geralmente vinculados à fraqueza, vulnerabilidade ou algo inferior, como dizer a frase “isso é coisa de mulherzinha” para algo considerado desinteressante ou fútil.
“Outra palavra super interessante é o ‘mas’. Muitas vezes nós a empregamos achando que estamos elogiando alguém, mas na verdade estamos fazendo o contrário”, afirma sobre falas como “você é bonita, mas inteligente” ou “ela é loura, mas sabe como pensar”. “Dizemos isso com a ideia de que uma pessoa bonita não pode ser inteligente. Não temos ideia de que isso é um preconceito ”, explica.
Há ainda as frases que emulam noções de que as mulheres são boas apenas para desempenharem funções da casa, como cuidar dos filhos e se encarregar das tarefas domésticas. Em português e em espanhol, uma das mais comuns é o ato de “prender um homem pela barriga”; ou seja, dizer que cozinhar bem é o segredo para fazer o casamento durar.
Ambiente de trabalho
O ambiente de trabalho é um espaço em que são reproduzidas ideias equivocadas sobre as mulheres devido aos estereótipos de que elas não têm capacidade ou inteligência o suficiente para desempenhar outras funções a não ser às domésticas. Além disso, Irmer explica que, por se tratar de um espaço de poder, muitos desses termos são usados de maneira proposital para desmoralizá-las.
“Até hoje é comum que digam que uma mulher só conseguiu chegar a determinado lugar porque fez isso ou aquilo com o chefe”, afirma Irmer, em relação aos comentários de que uma mulher só foi longe na empresa por ter tido relações sexuais com o patrão.
Chefes mulheres também tendem a ser mais criticadas por seus posicionamentos veementes e firmes, sendo frequentemente chamadas de "histéricas" ou “exageradas”. Além disso, a maneira como as mulheres se vestem também é alvo de ataques para desmoralizar suas carreiras. “Quando alguém se pergunta porque aquela mulher está de decote é porque ela simplesmente quis colocar um. Ela não deve ser menos respeitada por isso”, diz Irmer.
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Casamento e filhos
“Tem muitas coisas propagadas na linguagem que falam sobre isso. Desde criança você ouve as pessoas dizendo para você não varrer o pé, se não você não vai casar”, afirma Irmer. Mais tarde na vida, é comum que a mulher seja pressionada a se casar e ter filhos.
Nesses casos a palavra “ainda” tem um papel linguístico muito similar ao “mas”. “‘Você ainda não teve filhos ?’ ou afirmar que ‘a mulher só é completa com filhos’ são frases ditas como se essa mulher tivesse traído a sociedade por não ter tido um ainda”, afirma.
No caso das mães no mercado de trabalho, é errôneo afirmar que ela consegue trabalhar porque o marido “ajuda” com as crianças. “Repare bem nessa escolha de palavra. Não afirmam que é um marido presente, como deveria ser, mas que a função é esperada apenas por parte da mulher e ele dá uma força”, diz a especialista.
Essas noções repassadas para as mulheres desde a infância repercutem no comportamento da vida toda. Por exemplo, mulheres são muito mais perguntadas sobre casamento e filhos do que os homens e sofrem muito mais pressão em relação a essas decisões do que eles, que tendem a ser mais questionados sobre a vida profissional.
“Quando você começa a pensar nessas expectativas e não as cumpre percebe que recebe rótulos como ‘ficar para titia’. Será que existe o ‘ficar para titio’? Eu nunca ouvi”, explica Irmer. “Essas perguntas direcionadas a eles são muito menos comuns porque é parte da cultura que vem sendo transportada na maneira como falamos'', continua.
Nem sempre é por mal
Segundo Irmer, há ocasiões em que não existe intenção de machucar, mas se trata de uma mera reprodução daquilo que fomos habituados a ouvir ao longo de nossas vidas. “A linguagem influencia a continuação de alguma coisa, e a gente usa o que a gente vê ou está acostumado a presenciar”, afirma.
Mesmo assim, ela explica que as palavras não precisam ser necessariamente violentas para serem consideradas de mal gosto, já que são os detalhes que podem minar uma pessoa. “Tem toda uma história contida na frase ‘mas você vai sair com essa saia?’, por exemplo. É uma fala simples, mas que tem outras intenções ligadas à ela”, explica.
Por esse motivo, a especialista explica que é importante que todas as pessoas busquem entender o porquê de determinadas palavras serem tão ofensivas para adequar seus vocabulários. “Se você fala a primeira vez, você não faz de propósito. Agora se você repete o termo muitas vezes, sabendo que é ofensivo, se torna um erro”, explica.
Além disso, a especialista ressalta que pessoas que sabem que algo ofensivo chamem a atenção de quem está falando. “A gente nunca sabe o que incomoda as pessoas até que a gente ouça que está fazendo algo de errado”, diz. “A gente vai continuar errando algumas coisas, mas ao menos tentar não repetir é uma forma de tentar progredir”, completa.
Consciência linguística
Para Irmer, a melhor maneira de evitar que esse tipo de situação aconteça é adotando uma linguagem consciente. Ou seja, saber de onde os termos vêm e qual sentido eles realmente carregam. Dessa forma, você passa a adotar uma maneira de falar que não discrimina e nem limita as mulheres ou outras minorias - como pessoas negras, LGBTQIAP+ , indígenas, pessoas portadoras de deficiências físicas e muito mais.
“É preciso ser muito claro e objetivo na linguagem que você usa. É interessante estar aberto para perceber quais são as palavras que machucam. Quanto mais você ouve ou lê algo, mais chance você tem de se autoanalisar”, explica.
Para se empenhar nessa transformação, buscar informações é algo fundamental. “É legal pesquisar mesmo que seja para admitir que cometeu um erro no passado, porque todo mundo já passou por isso”, afirma Irmer.
As mulheres não estão isentas a cometer esse tipo de erro, já que é comum que todas reproduzam falas escutadas a vida toda. “Por exemplo: se sua chefe cometeu algo que você considera incompetente, não adianta chamá-la de ‘vaca’ ou ‘vagabunda’, mas foque no erro. A palavra incompetente serve para mulheres e homens”, cita Irmer, como exemplo.
“A gente precisa se analisar muito nos momento de raiva, porque é neles que a gente transparece o que realmente pensa. Opte por ficar de boca fechada por 10 segundos e filtrar o que você vai dizer. Existem preconceitos que a gente já não quer mais repassar. Se não for possível segurar, é bom analisar o que fez e entender o que dá para mudar para uma próxima”, acrescenta.