Nos últimos anos, ativismo e militância LGBTQIAP+ tem avançado cada vez mais no âmbito dos direitos civis. O casamento entre pessoas do mesmo gênero e o direito ao nome social por pessoas trans são algumas das conquistas da comunidade.
Dentre diversas outras reivindicações, a linguagem neutra tem sido objeto de discussão nas redes sociais, já que muitas pessoas não entendem seu funcionamento ou sua importância em termos de inclusão.
Quem participa ativamente da vida nas redes sociais já viu alguma pessoa utilizando “x”, “@” (que, aliás, são usados de maneira equivocada) ou “e” para se referir ao coletivo sem necessariamente falar no masculino. Por exemplo: ao invés de escrever "todos", usa-se "todxs", "tod@s" ou "todes". Essas são algumas tentativas para fazer com que mulheres e pessoas LGBTQIAP+ se sintam pertencentes.
A linguagem neutra e inclusiva são maneiras de se referir às pessoas que não se identificam com os gêneros binários homem e mulher. Essas pessoas podem se identificar como não binárias ou que fazem parte deste guarda chuva, como pessoas agêneras, gênero neutro ou gender queer. O grande problema é que, por se tratar de uma modernização da língua muitas pessoas ficam em dúvida de como usar esta linguagem.
“Morei Em São Francisco, nos Estados Unidos, por um tempo. Na hora de voltar para o Brasil eu não consegui explicar para as pessoas o que eu era e o que era essa questão de identidade não binária ”, explica Pri Bertucci, CEO do instituto [SSEX BBOX], responsável pela 1ª Marcha do Orgulho Trans no Brasil , e [DIVERSITY BBOX], que presta serviços para empresas que querem tornar seus ambientes de trabalho mais inclusivos e, atualmente, está elaborando uma carta sobre o uso da linguagem neutra para a Academia Brasileira de Letras.
Segundo Pri, um dos precursores da linguagem neutra no Brasil, as adaptações para uma linguagem neutra foram vistas como uma necessidade para navegar e sobreviver sem que ile precisasse se anular ou se diminuir para caber em “caixinhas”. O episódio aconteceu há cerca de uma década atrás.
“ Se hoje ainda é difícil falar desse assunto, imagina há 10 anos. Ninguém estava muito aberte* a enxergar outras possibilidades de existência fora da binariedade ”, completa. Foi aí que Bertucci percebeu que, tanto no Brasil como no mundo, esse era um debate que precisava avançar. Com a falta de maneiras de falar sobre e com pessoas não binárias, essa fatia da comunidade era invisível. “ É importante a gente saber a maneira correta de falar com essas pessoas porque o que não tem nome não existe ”, diz Pri.
Linguagem neutra ou não binária: modos de usar
Um dos conceitos da linguagem neutra é o de substituir as letras “a” e “o” em adjetivos para tornar essas palavras ainda mais neutras. Por isso durante a entrevista, Pri usou o termo “abertes” no lugar de “abertos”. Como já foi explicado no início da reportagem, usar o “e” é a maneira correta, pois é acessível aos deficientes visuais, já que “@” e “x” não conseguem ser lidos por leitores ortográficos utilizados por essas pessoas.
No caso dos pronomes, “ILE” é o ideal na linguagem neutra para se referir às pessoas que não se identificam como homem (ele) ou mulher (ela).
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Por que o mundo precisa de uma linguagem neutra
Na introdução do Guia Todxs Nós de Linguagem Inclusiva, criado pela [DIVERSITY BBOX] Consultoria e usado pela HBO Brasil para a divulgação da série Todxs Nós, a primeira no mundo a apresentar um persoangem não binário, e o Guia Para Promover a Linguagem Inclusiva em Português, que pode ser baixado aqui , Bertucci explica que “a comunicação é essencial para estabelecer um ambiente seguro” e que a linguagem é primordial para “ouvir nossas necessidades e as de outras pessoas”.
“Comunicar-se de forma mais inclusiva significa ter a consciência de que a sociedade e o ambiente de trabalho são compostos por pessoas com diferentes características e identidades. É uma garantia de respeito, valorização e acolhimento da diversidade humana”, diz.
Bertucci acredita ainda que falar de maneira menos polarizada pode ser uma chave para um avanço na civilização. Ao falar com neutralidade, as pessoas poderão ir além e reconhecer que existe um caminho que vai além da polarização e da binariedade.
“Só porque você desconhece um sistema além das polaridades, não significa que esse sistema não exista. Alguém pode ser uma terceira coisa ou algo diferente dessas duas possibilidades de existência”, indaga.
A linguagem neutra não é uma nova linguagem
Eduardo Calbucci, mestre em Linguística, explica que por mais que cause estranheza no mundo atual, a linguagem neutra não é nenhuma novidade. No latim, a palavra illud dizia respeito ao gênero neutro e estaria em um lugar além do “ela” e “ele”. Segundo ele, esse pronome foi perdido ao longo dos anos e das adaptações da língua.
“A mentalidade binária fez com que o mundo entendesse que se tudo fosse repartido entre masculino e feminino estava tudo certo. A gente sabe hoje que as coisas não são assim”, explica.
Bertucci acredita que esse pronome neutro foi apagado propositalmente. Em sua visão, essa polarização entre o “macho” e “fêmea” coloca seres humanos em posições muito extremas. Assim, é difícil imaginar que possa existir uma pessoa que não seja nenhum dos dois e exista de uma maneira diferente.
“Isso não é uma invenção das pessoas não binárias, porque nós existimos desde o início dos tempos. Nas aldeias indígenas norte-americanas, as pessoas não binárias trabalhavam com os xamãs e eram chamadas de two spirits , porque transitavam entre gêneros ou eram uma mistura deles”, explica.
Segundo ile, muitas informações sobre essa população se perdeu durante a colonização. “Ao reviver a linguagem neutra, estamos simplesmente relembrando o que foi apagado e tirado de nós por, talvez, uma intenção de deixar a gente preso no pensamento binário", acrescenta.
A linguagem neutra pode se popularizar?
Devido a seu ativismo em defesa do uso da linguagem neutra, Bertucci está acostumade com mensagens de ódio nas redes sociais do [SSEX BBOX]. “Muitas pessoas acham um absurdo estarmos preocupades com a língua enquanto tem gente passando fome. É verdade, acho que só podemos pensar nisso se tivermos nossas necessidades básicas atendidas. Mas minha provocação é que essa espiada para fora da caixa tem potencial de integração muito maior para que consigamos sair desta polarização nefasta que nos destrói enquanto civilização. Quem já tem essas necessidades básicas atendidas tem como dever avançar nessa discussão”.
Segundo, Calbucci tentar alterar um sistema linguístico é algo totalmente complexo. Ele cita como exemplo a tentativa de criação do Esperanto, um idioma que foi idealizado como uma língua universal mas não teve avanços. “Uma nova linguagem começa dentro de um grupo. Dependendo da força desse grupo, aos poucos isso começa a ultrapassar os limites e a se expandir. Quem vai manter isso são as próprias pessoas”, analisa.
O linguista lembra que existem idiomas que não têm gênero, como o finlandês e o húngaro. Apesar da dificuldade de entender quais rumos essa linguagem neutra tomará, ele não tira a importância da reflexão sobre uma nova maneira de se comunicar e como isso reflete nos comportamentos de toda sociedade. Afinal, se há resistência e críticas, há também muitas pessoas receptivas e com vontade de aprender.