A pandemia do novo coronavírus colocou a saúde no centro da discussão mundial em 2020. A situação lançou luz sobre obstáculos como falta de informações e, em alguns casos, de estruturas e até mesmo acesso ao tratamento adequado. Para pessoas LGBT no Brasil, esses empecilhos não são inéditos, mas fazem parte da rotina de quem precisa de quem precisa se consultar periodicamente.
“A gente sempre viveu essa pandemia”, pontua Daniel Dutra, advogado e fundador do Lacrei, site e aplicativo fundado em fevereiro deste ano . Além da saúde, o Lacrei também tem como objetivo facilitar o acesso de LGBTQIAP+ a serviços jurídicos e de assistência psicossocial.
Falta de informações sobre saúde de LGBTs no Brasil motivou criação de app
Durante a pesquisa de desenvolvimento para o aplicativo, Dutra afirma que ficou muito surpreso com a falta de materiais de pesquisa e de conexões entre pessoas LGBTs e a área da saúde. “Não tinha referência, não tinha para onde ir, nem departamento de saúde ou de direitos humanos. Não tinha nada”, explica.
O advogado explica em entrevista ao iG Delas que a população LGBT no país é muito grande. Mesmo sem dados de censos oficiais, ONGs e associações da comunidade estimam que existem entre 18 milhões e 20 milhões pessoas que se consideram LGBT no Brasil. Portanto, demanda é o que não falta.
O advogado explica que a saúde LGBT é muito complexa, pois envolve uma diversidade de cuidados e de especialidades. Para se ter uma ideia, apenas uma pessoa trans precisa passar por ao menos seis especialidades diferentes. Contudo, existe uma falha ao oferecer esses cuidados tão individuais, já que profissionais de saúde não sabem como oferecê-los por falta de treinamentos e informações sobre esta população.
“Quando chega um homem trans na ginecologia, o médico não sabe o que fazer. Isto porque ele não consegue relacionar o motivo de um homem precisar ir ao ginecologista, se o ‘correto’ é ir ao urologista”, ilustra Daniel. “A saúde LGBT é de uma complexidade enorme. Você tem mulher trans, o homem cis , a lésbica , a pessoa não-binária… Cada um ali precisa de uma especialidade diferente”, acrescenta.
Atendimento público é o mais preparado quando o assunto é saúde
Frustração e trauma. Esses são os dois principais sentimentos que pessoas LGBT sentem quando passam pelo atendimento clínico no sistema particular de saúde. Isto porque essas pessoas não sentem que têm abertura para falar ou que sequer são compreendidos pelos profissionais que realizam a consulta.
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O fato de não existir um protocolo para o tratamento de pessoas LGBT e a escassez de documentos acadêmicos são alguns dos principais fatores que tornam essa aprendizagem difícil, segundo Daniel.
Por outro lado, o Sistema Único de Saúde (SUS) possui caminhos que visam a inclusão e atendimento especializado de pessoas LGBTs. É o caso do Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA), que atende pacientes portadores de HIV. Boa parte dos pacientes é composta por pessoas trans, travestis e homens gays.
O SUS também dispõe de Ambulatórios Trans desde 2010, especializado no atendimento de pessoas do espectro transgênero e travesti. No entanto, existem apenas cinco em todo Brasil e em razão da PEC 241/2016, que estabelece o teto de gastos para as áreas da saúde e educação, esse pode ser um dos serviços, ao lado do Ambulatório da Mulher, a serem cortados nos próximos anos.
“Quando acabar esse ambulatório, a comunidade LGBT vai perder a pouca referência que tinha sobre saúde”, diz Daniel. “Quando a gente fomenta as questões LGBTs estamos falando de diversidade e inclusão. Mas quando a gente fala de saúde, a gente não fala na solução. E agora as soluções estão sendo fechadas”, continua o advogado.
Aplicativo quer conectar LGBTs a uma rede confiável e segura de atendimento médico
No Lacrei, médicos e pacientes podem se cadastrar gratuitamente. O paciente pode consultar profissionais por nome, localização e especialidade, realizar o agendamento e fazer o pagamento (inicialmente, apenas consultas pagas estão sendo realizadas).
Os profissional de saúde passam por uma curadoria, em que são verificadas a regularidade do CRM, se há antecedentes criminais e processos administrativos. O profissional precisa ainda enviar uma carta de interesse relatando o motivo de querer trabalhar com pessoas LGBT.
Por outro lado, o paciente deve informar sua identidade de gênero, orientação afetivo-sexual , cidade e bairro. Desta forma, Daniel também espera que o Lacrei possa começar a fazer uma coleta de dados demográficos que ajude a mensurar a pluralidade das pessoas LGBT nas áreas em que o app opera.
Com todas as informações previamente disponibilizadas, o fundador acredita que o atendimento será mais confortável tanto para o paciente quanto para o profissional. “O médico já vai entender e não vai fazer perguntas incômodas. O atendimento vai fluir muito melhor”, diz.
A intenção de Daniel é que, com o Lacrei, seja possível estender a mão a instituições que acolhem pessoas LGBTs em situação de vulnerabilidade e cheguem, por exemplo, a pessoas do interior dos estados, que tendem a sofrer ainda mais violência e precisam “se esconder” para sobreviver.
“Nós, LGBTs
, temos que começar a despertar. Precisamos ter melhor qualidade de vida e melhor atendimento. Se não fizeram nada até agora, então nós temos que fazer”, afirma.