Acervo pessoal
"Sempre fui uma geek, daquelas que veste a camisa de tudo o que gosta, que faz questão de mostrar”, diz Mayara Grosso, editora do Séries Em Cena



O Dia do Orgulho Geek , celebrado em 25 de maio, é uma das datas comemorativas mais importantes e esperadas para nerds e geeks no mundo todo. A escolha do dia faz referência ao livro “O Guia do Mochileiro das Galáxias”, escrito pelo autor Douglas Adams, e também por ser a data de lançamento do primeiro filme da saga Star Wars , “Star Wars: Episódio IV - Uma Nova Esperança”, em 1977. Apesar de contar com uma comunidade gigantesca, ser uma mulher nerd nesse meio ainda pode ser muito difícil.

Ser nerd  não era motivo de orgulho durante a infância e a  pré-adolescência da farmacêutica Bruna Altieri, 26. Na verdade, o termo era considerado ofensivo até pouco tempo atrás, mas ela nunca o encarou dessa forma. Para ela, ser uma mulher nerd sempre foi parte de sua personalidade, algo que ela começou a abraçar melhor depois dos 18 anos.


“Durante a faculdade, eu precisava de um escape da realidade corrida. Achei isso em filmes, livros e  quadrinhos que me permitiam ser parte dessas histórias. Além do escape, isso fez com que eu me conhecesse mais e melhorasse meu lado criativo e comunicativo. Me ajudou a ser a pessoa que sou hoje”, diz.

Em 2015, Bruna foi com duas amigas ao cinema para assistir “Vingadores: Era de Ultron”. “Devo ter visto algum outro filme antes desse, mas dividir essa experiência fez com que aquilo virasse algo especial”, explica. A farmacêutica começou a se interessar pelas histórias criadas pela  Marvel e passou a pesquisar informações sobre o contexto dos personagens. Além disso, ela também se identificou com os enredos e com os heróis e heroínas.

Mayara Grosso, editora-chefe do site Séries em Cena, sempre foi fascinada pelas franquias da cultura pop , cinema e séries, mas somente em 2016 que passou a se declarar como uma geek. “Foi quando comecei a frequentar eventos desse universo, mas se for parar para pensar eu sempre fui uma geek, daquelas que veste a camisa de tudo o que gosta, que faz questão de mostrar”, diz.

Essa paixão genuína já foi, por muitas vezes, questionada. “Diziam que eu gostava de coisas de criança, que eu precisava crescer ou que vivia em um universo paralelo”, diz Mayara. No entanto, ela explica que sentia a necessidade do escape da vida real, assim como Bruna.

“Você não sabe do que está falando”


Além da ridicularização por parte de conhecidos, as duas já lidaram inúmeras vezes com  comentários machistas feitos por homens nerds. “Muitas vezes um simples comentário levava a grandes discussões. Diziam que eu não sabia do que estava falando, que não deveria ler ou assistir nada porque as histórias eram feitas por e para homens”, explica Bruna.

A farmacêutica afirma que, além disso, já foi muito criticada por seu apego aos personagens. “Por serem histórias fictícias, diziam que isso não agregaria nada na minha vida”, lamenta.

Mayara lembra de uma vez em que um conhecido a questionou sobre uma foto de um filme do Homem-Aranha que ela postou em seu Facebook. “Ele estudou comigo por muitos anos e, quando eu era criança, não demonstrava interesse pelo super-herói. Ele quis dizer que gostar agora era errado, que eu não tinha esse direito”, afirma a editora. A razão de não ter descoberto a paixão antes, ela explica, foi devido a uma criação pautada em  estereótipos do que são coisas de menino e de menina.

“Me senti menosprezada. E se você gosta de algo, não basta! Você tem que provar a todo momento que conhece tudo sobre o universo, lê quadrinhos e é especialista no assunto, questionamentos que homens não precisam passar”, diz. Por isso, Mayara busca sempre ter as informações na ponta da língua. “Debato e mostro que sei tanto quanto qualquer pessoa, mas queria que isso não fosse necessário.”

Você viu?

Gamers


As mulheres gamers não estão isentas desse tipo de preconceito. Na realidade, ele pode ser ainda mais agressivo para jogadoras e streamers. “É muito comum nos depararmos com comentários estereotipados, dizendo que o mundo gamer não é lugar para mulheres”, explica Daniela Biedzicki, idealizadora do projeto #TrocoLikePorRespeito.

A quadrinista, streamer e roteirista Fran Briggs diz que só não sofreu tanto com os comentários maldosos porque não joga com desconhecidos e o público de seu canal da Twitch ainda está em formação. “No entanto, tenho consciência de que é questão de tempo e que vai acontecer. Desde já tento me preparar mental e emocionalmente para a situação”, explica.

Mesmo assim, ela não deixa de receber comentários menosprezando seu trabalho como streamer. Alguns deles são direcionados ao seu marido, o ator e dublador Guilherme Briggs. “Em certa ocasião estava trocando a roupa do personagem para adquirir mais proteção contra arcano (gamers entenderão) e um rapaz entrou e saiu da live. Ele foi gracejar no Twitter do meu marido, dizendo que ‘eu estava escolhendo roupinhas para o meu personagem’ e que isso é ‘coisa de mulherzinha’”, lembra.

Para conseguir se proteger, Fran evita jogos com estilos MOBA (Multiplayer Online Battle Arena, sigla em inglês para jogos de batalha com multijogadores, como League Of Legends) e FPS (First Person Shooter, ou seja, jogos de atiradores jogados em primeira pessoa, como Counter-Strike). Isto porque, segundo ela, são jogos em que mulheres são mais maltratadas e desrespeitadas.


Fran afirma que gostaria de ver algum tipo de movimento que garanta espaços seguros para jogar e produzir conteúdo. Apesar de se cercar de amigas streamers em seu perfil, ela afirma fazer sozinha o que está ao seu alcance para reverter esse cenário.

Rede de apoio

Como consequência dos comentários preconceituosos, Daniela comenta que é comum que mulheres se escondam em pseudônimos neutros ou masculinos para que não sejam identificadas e, assim, não sofrerem ataques. “É triste termos de pensar que precisamos esconder a nossa identidade e quem realmente somos apenas para ter a liberdade de jogar e nos divertir como uma pessoa qualquer”, afirma.

Foi dessa forma que o projeto #TrocoLikePorRespeito surgiu. A intenção dela é criar espaços seguros onde mulheres não precisam se esconder ou ter medo de jogar, além de dar visibilidade às mulheres gamers, empoderar streamers e conscientizar sobre o preconceito sofrido por elas. “Sabemos que, muitas vezes, essas vozes são silenciadas por conveniência. Isso está cada vez mais difícil de aceitar”, diz.

Daí também surgiu o grupo de Gamer Girlz BR, cujos posts incentivam mulheres que querem começar a fazer lives, além de conter instruções para as novas gamers. O grupo é administrado só por mulheres e tem 540 membros. Os pedidos para entrar são rigorosamente monitorados para manter a integridade e segurança das participantes.

Além disso, uma das regras principais do grupo diz que só podem ser divulgados conteúdos que sejam produzidos por mulheres. “Fazemos isso para promover e dar cada vez mais visibilidade para as tantas mulheres que buscam uma chance nesse mercado. Podemos compartilhar experiências, medos e vitórias sem medo de sermos julgadas”, detalha Daniela.

Representatividade


Dos últimos anos para cá, as referências para mulheres no universo nerd têm crescido cada vez mais. A própria franquia Marvel, por exemplo, tem dado destaque maior para suas personagens femininas. Também é o caso da concorrente direta, a DC Comics, que tem investido cada vez mais em suas personagens femininas, como a Mulher Maravilha e, mais recentemente, Angela Abar, personagem interpretada por Regina King que protagonizou a série Watchmen.

Mas essa importância equiparada ao de personagens homens chegou com atraso. Para se ter ideia, foi só em 2018 que a Marvel colocou uma protagonista mulher em destaque em um pôster promocional, no caso de “Homem Formiga e a Vespa”. Também foi a primeira vez que o nome de uma heroína foi citado no título do filme.

“A Viúva Negra aparecia com o Homem de Ferro no pôster do segundo filme do herói, mas ela não era a protagonista do filme e não tinha tanto destaque”, afirma Bruna.

De lá para cá, a franquia tem apostado em filmes e seriados com maior destaque para as super-heroínas . É o caso de “ Capitã Marvel ”, em 2019, " WandaVision ” e o filme solo de Viúva Negra, que chega ao Disney+ em julho deste ano.

Com o crescimento da representatividade de mulheres no universo geek, as nerds também se fortalecem para conseguir ocupar espaços de discussão e expressar sua paixão. Para Bruna, é visível que mulheres têm se unido cada vez mais para criar uma rede de suporte.

“O assunto acaba sendo mais fluido, pacífico e até mais detalhado”, acredita. A farmacêutica cita o Tumblr como uma das redes sociais que permitem um acesso seguro para esses tópicos, mesmo que ela não saiba identificar o gênero das pessoas com quem se corresponde.

Mayara fala que essa representatividade tem crescido não apenas na mídia, mas na comunidade em si. Há cada vez mais grupos de mulheres produtoras de conteúdo sobre a cultura nerd. Além dela, no 'Séries Em Cena', é o caso de nomes como Carol Moreira, Natália Kreuser e o canal Entre Migas, por exemplo.

“São muitas mulheres falando de quadrinhos, super-heróis, fazendo cosplay de personagens masculinos... vejo que aquele medo do que os outros vão pensar diminuiu, mas temos muito a conquistar”, afirma.

Desta maneira, o acolhimento e o apoio acaba se tornando cada vez maior, o que faz com que essa demanda fure a bolha e vá parar em mais espaços. “A internet e a criação de conteúdo de alguma forma me trouxeram isso. Fez com que eu me sentisse um pouco menos ‘esquisita’ e mais acolhida”, afirma Mayara.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!