Mulheres relatam a gordofobia médica que viveram
Divulgação - Cintia Rizoli
Mulheres relatam a gordofobia médica que viveram











A pequena estátua da Vênus de Willendorf, datada de 25 mil anos A.C. e encontrada na Áustria no começo do século 20, trouxe à tona a valorização do corpo gordo ainda na Idade da Pedra. Mais recentemente, um dos maiores artistas colombianos, Fernando Botero dizia que gostava de expressar "o volume como uma parte da sensualidade da arte”, mas, apesar de já ter sido visto como belo, as curvas volumosas são vistas hoje com muito preconceito, inclusive em atendimentos médicos, quando a paciente está ali em busca de ajuda.

Rachel Patrício tinha 33 anos quando descobriu que estava grávida do seu terceiro filho e, desde cedo, conseguiu atendimento médico pelo  Sistema Único de Saúde (SUS) em São Caetano do Sul, onde morava na época. Por ser gorda , sua gravidez era considerada de alto risco, mas ela conta em entrevista ao iG Delas, que sua saúde estava ótima. “Tive um pré-natal ótimo, não ganhei peso ou diabetes gestacional , foi um momento tranquilo”, lembra. 



Como seus outros partos foram cesária, a cartomante decidiu que aquele também seria e aproveitaria para fazer uma laqueadura. “Já tinha três filhos e, por conta da idade, ficou combinado que seria outra cesárea para passar pelo procedimento de esterilização. Fiz o processo para ter a liberação para a laqueadura”. 

Quando chegou o dia da cirurgia, Rachel seguiu todos os procedimentos do pré-operatório: jejum, banho antes de ir, chegou horas antes e, assim que começaram a ser feitos alguns exames para checar se estava tudo bem com o bebê, ela percebeu que houve uma movimentação estranha entre a equipe médica e nada se resolvia para que ela fosse internada. 

“O médico veio falar comigo que não havia maca pro meu peso no centro cirúrgico nem uma agulha para a anestesia do tamanho certo. Não é como se eu tivesse ganhado peso para noite pro dia. Eles acompanharam minha gestação desde o começo. A cidade tinha ciência do meu peso desde o princípio e eles começaram a falar que iam me transferir para um hospital em São Paulo, então comecei a ficar nervosa”, acrescenta. 

Vendo que a situação não saia do lugar, ela decidiu falar com uma amiga jornalista que trabalhava na imprensa para relatar seu drama. Dessa forma, percebeu que o panorama mudou repentimanente: um dos médicos a alertou que havia uma sala especial para cirurgias bariátrica, ou seja, existia maca e equipamento para fazer o parto.

"Ele também disse que os médicos estavam sendo preconceituosos por causa do meu peso. A gordofobia não era tão falada na época. A anestesista veio falar comigo, disse que usaria outra anestesia que não precisava daquela agulha. Foi um parto supertranquilo, nem precisei usar a maca de bariátrica, a maca do centro obstétrico deu conta, meu filho nasceu bem, minha laqueadura foi tranquila e, logo que a anestesia passou, já consegui andar. Minha saúde estava ótima”, acrescenta ela, que hoje está com 37 anos. 


Gordofobia médica 

O que Rachel vivenciou na sala de parto é conhecido como gordofobia médica, e que foi uma situação de “exclusão e de estresse" porque os médicos tinham medo de lidar com uma pessoa gorda. 

“Parecia que os médicos achavam uma ousadia uma mulher de 150 kg engravidar. Quando, na verdade, meu parto foi tranquilo. É uma falta de preparo desses médicos, mostrou isso em várias esferas, já que eles não sabiam medir minha pressão, não conseguiam uma tomografia que aguentasse. São coisas que a gente passa dentro da esfera médica, se não tivesse tido a intervenção da imprensa eu não sei o que poderia ter acontecido. Se eu mudasse de hospital, poderia ter sofrido não só a gordofobia médica, mas alguma violência obstétrica.” 

A nutricionista Maristela Fidelis diz que a gordofobia médica não é algo raro de se acontecer. O termo se refere quando médicos e outros profissionais da saúde apresentam comportamentos gordofóbicos diante de uma  pessoa gorda menor ou gorda maior. 

“Esses comportamentos desses profissionais podem ser crenças inadequadas aceitas pela sociedade há muito tempo, pois muitos acreditam que ao depreciá-los e deixá-los com vergonha por serem gordos, talvez, seja uma forma de incentivá-los a perderem peso. Embora não haja uma constatação científica sobre a efetividade desses comportamentos", detalha.

"Pode-se afirmar que criar uma relação de confiança, empatia e respeito entre profissional-paciente traz maior adesão ao tratamento, pois esses aspectos melhoram a comunicação e qualidade da informação recebida pelo o paciente”, explica Fidelis. 

A notícia boa é que a medicina está encontrando uma maneira de reverter o preconceito com a medicina size Friendly, em que o profissional da saúde entende as necessidades da pessoa gorda e não a estigmatiza, sem tratar com diferença. Nele, o paciente não é julgado por seu peso, nem mesmo é submetido à reprodução de estereótipos e preconceitos relacionados ao corpo.

Existe uma ideia errônea de que todo corpo gordo é doente e precisa emagrecer. O foco desses profissionais está em investigar as queixas do indivíduo e evitam orientar restrições severas alimentares, bem como não comentam sobre o peso, forma e tamanho e não orientam o emagrecimento como solução. 

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Já a psicóloga Juliana Picoli discorre que é muito importante o acompanhamento da mulher para que ela consiga se recuperar de uma situação tão traumática.

“As mulheres têm trabalhado com uma quebra de padrão, mas ainda assim somos bombardeadas com profissionais da medicina falando que o senso de importância da mulheres está relacionado ao peso. A história vai apagando o lugar de fala e, por isso, é importante o cuidado da saúde emocional para conseguir cuidar e blinda-las”, diz. 

Ela ainda acrescenta que as construções sociais fazem com que a mulher gorda seja vista como algo fora do padrão e feio, isso é reforçado por meio da moda, construções sociais e pelo tempo. A profissional declara que a autoestima da mulher pode ser prejudicada quando ela tem um atendimento que rejeita o corpo gordo.

"Quando uma pessoa recebe uma crítica tão rude e cruel, a expressão que ela tem do seu corpo é prejudicada, não só ao se arrumar, mas ela acaba deixando de ser quem ela é no mundo. Também tem prejuízo nas relações, na ideia de produção que tem, na tentativa de evoluir no trabalho e no senso de importância na vida das pessoas. Uma pessoa gorda não necessariamente se sente infeliz por ser quem é”, esclarece. 

Gordofobia médica
Pexels
Gordofobia médica



“Seu corpo é um exagero”

A produtora cultural Jéssica Balbino, de 35 anos, conta que também passou por gordofobia médica, mas, por sua psicanalista há um ano. Ela frequentava a especialista fazia quatro anos e a profissional já se mostrava gordofóbica em falas e posturas que excediam à intervenção analítica.  

“Em alguns momentos disse que eu não conseguiria subir uma serra do Cristo em razão do tamanho do meu corpo, me chamou de sedentária, mas eu fui levando. Levei livros sobre o tema para ela ler, praticamente palestrei na ilusão de que isso pudesse abrir a mente dela e me fizesse continuar o tratamento, que, até ali, em outros âmbitos, me fazia bem, mas quando esbarrava na questão do corpo, me atravessava”, exemplifica. 

A gota d’água foi em janeiro de 2020, quando a produtora foi para um consulta meio doente e disse que saindo de lá, iria para o hospital. A psicanalista começou a perguntar se ela tinha convênio e se ia no ginecologista. 

“Isso é zero importante para o tratamento psicanalítico, mas eu disse sim e que queria mudar. Ela perguntou se era porque ele tinha falado do meu peso. Eu disse que sim (porque, claro, quando conheci o ginecologista eu fui no pronto-socorro  com uma inflamação na glândula de bartholin e ele quis saber porque eu não tinha feito ainda uma bariátrica) e que estava a fim de mudar.” 

A profissional continuou insistindo dizendo que Jéssica nunca iria arrumar um médico que não falasse do peso dela, já que estava em excesso e a produtora disse que ela estava sendo gordofóbica. A produtora cultural conta que psicóloga ainda insistiu que seu corpo estava volumoso demais. 

“Ela disse que, do ponto de vista da medicina, meu corpo era um exagero. Então eu levantei e fui embora e interrompi o tratamento com ela. Quando eu saí dali, lutei muito com uma vontade que tive de ir embora e me enfiar em casa e nunca mais sair. Dentro do consultório da analista seria o último lugar do mundo que eu poderia ter meu corpo questionado”, acredita. 

Ajuda jurídica 

Após o terrível incidente, Jéssica agora encontrou um psicanalista que a entende e não a julga pelo seu peso. A produtora decidiu que não iria processar a profissional, mas a advogada especializada em Direito Médico e à Saúde Melissa Kanda garante que se ela quisesse poderia ter feito. 

A especialista comenta que não existe uma lei específica que trate do assunto, mas que a gordofobia médica pode ferir o direito fundamental à saúde e dignidade do paciente.

“O médico pode responder a um processo ético disciplinar junto ao CRM, cujas penalidades variam desde uma advertência sigilosa até a cassação do registro no conselho.

"Em casos extremos, quando a gordofobia médica resultar na omissão de um diagnóstico, e isso causar um dano ao paciente, existe a possibilidade de responsabilização do profissional na esfera judicial, inclusive com pedido de indenização por dano moral pelo paciente lesado”, acrescenta Kanda. 

Apesar de poder denunciar, muitos pacientes optam por não fazer isso, pois se sentem culpados por serem quem são. “As pessoas não compreendem que este comportamento é repreensível e que pode causar dano ao paciente. Isso acontece porque o estigma em face das pessoas gordas já está arraigada na nossa sociedade e as vítimas estão acostumadas aos olhares julgadores.” 

Se, assim como Rachel e Jéssica, um paciente passou por alguma situação semelhante, tem o direito de denunciar o profissional junto ao Conselho Regional de Medicina do Estado de atuação do médico.

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