Mulata, mãe preta, mucama e raivosa: os estereótipos ligados às mulheres negras
Entenda como esses estereótipos funcionam e por que eles atingem negativamente às mulheres pretas
Maiara Maria, 18, é modelo e usa o Instagram para divulgar seus trabalhos. Por isso, ela recebe diversos comentários de pessoas a elogiando, mas afirma que se incomoda com a maneira como alguns homens falam dela. “ Gostosa ”, “Meu desejo de todos os dias” e “Essa pretinha é demais” são algumas frases na qual percebe má-intenção.
“Isso gera um desconforto emocional e faz com que minha autoestima fique lá embaixo”, afirma. Maria diz que sente que pessoas com esse tipo de pensamento a veem como um objeto sexual, “não como alguém que tem sentimentos e merece respeito”.
A pesquisadora, mestra e doutora em antropologia social Edilma Monteiro, 35, também notou que a relação de outros homens em relação ao seu corpo era de sexualização, desde quando ela era criança. Aos 9 anos, ela sofreu uma tentativa de estupro . “Anos depois, percebi que naquela tentativa de estupro já dava para perceber a forma que meu corpo era idealizado ou visto”, diz.
Esse tipo de atitudes, que estão diretamente vinculadas ao racismo e ao machismo , é em diversos momentos experienciadas por mulheres que, assim como Maria e Monteiro, têm a pele negra e estão ligadas a estereótipos que estão no imaginário da sociedade em relação a essas mulheres. Devido a essa ótica, elas são vulneráveis a encarar situações de constrangimento e de violências simbólicas e físicas.
Monteiro explica que os estereótipos
foram criados por pessoas brancas como uma maneira de construir seus próprios imaginários em relação às pessoas negras. “Esses pensamentos acabam norteando e trazendo para a sociedade uma ideia de que a mulher é uma coisa. Ela é colocada no lugar pejorativo das relações, até mesmo no campo profissional”, afirma.
Em 1933, o escritor Gilberto Freyre lançou o livro ‘Casa Grande e Senzala’, em que defende a manutenção da estrutura escravocrata na sociedade moderna e vê com “fraternidade” a relação entre senhores e pessoas escravizadas.
Em passagens do livro, também foram difundidos os principais estereótipos ligados às mulheres negras no Brasil. Em uma das passagens do livro, ele descreve a relação com mulheres por meio da seguinte hierarquia: “Branca para casar, mulata para f*der, preta para trabalhar”, ditado que se perpetua até os dias atuais.
Anos mais tarde, em 1989, esses estereótipos foram analisados pela autora e feminista negra brasileira Lélia Gonzales, em seu artigo ‘Racismo e Sexismo na Sociedade Brasileira’. Nele, a pensadora diz que a mulher negra é vista por três perspectivas principais: a mulata; a doméstica (também chamada de mucama) e a mãe preta.
A mulata, a mucama e a mãe preta
Os episódios narrados acima pela modelo e pela pesquisadora indicam o estereótipo da mulata, que é uma mulher hiperssexualizada, considerada fervorosa, quente e vista meramente como um objeto de prazer. De acordo com Monteiro, é uma visão muito comum, mas equivocada, sobre as mulheres negras .
“As tentativas de estupro e outros episódios de abuso sexual que sofri na infância, sempre me fizeram ter medo de certas questões, além de muita culpa. Demorei muito até entender que isso está muito ligado ao nosso corpo, que é visto como objeto de uso e como se qualquer um pudesse tomar posse dele”, explica a pesquisadora.
Quando essas mulheres não são consideradas “bonitas o suficiente” para entrar no estereótipo da mulher desejada, elas tendem a ir para as duas outras categorias analisadas por Lélia. A mãe preta, explica Monteiro, se refere às mulheres cuidadoras. “É aquela que cozinha, que está sempre nesse movimento do cuidado, do envolvimento afetivo, fraterno”.
Já a mucama, ou doméstica, possui raízes do período da escravidão e diz respeito ao imaginário de que mulheres negras são muito mais aptas ao serviço doméstico e de limpeza. “Nós somos a todo tempo aferidas pelas ações desses pensamentos, que reforçam a relação de poder que nos exclui de ter direitos e nos proporciona medo de falar e denunciar todo o históricos e violências sofridas, mesmo que seja narrando nossas próprias histórias”, afirma Monteiro.
"Essas pessoas elaboram tipos de sujeitos que merecem respeito e cuidado, em detrimento a outros que não. São nessas elaborações que percebemos os danos de esteriótipos e imaginários elaborados sobre pessoas negras", continua.
Raiva e arrogância
Atualmente, mulheres que falam em tons assertivos são vistas como “mal-humoradas” ou “arrogantes”. No caso das mulheres negras, a situação é ainda mais complicada. “Algumas de nossas expressões são lidas como se estivéssemos sempre com raiva”, diz Monteiro. Por esse motivo, o estereótipo da “negra barraqueira” é conhecido como angry black woman (ou mulher negra com raiva, em tradução livre).
Esse tipo de estereótipo está muito relacionado à representação de mulheres negras na mídia, principalmente nos Estados Unidos, que têm fortes raízes de como eram vistas mulheres escravizadas: pessoas hostis, agressivas, “barulhentas” e consideradas masculinas.
“Sempre somos vistas como pessoas que estão causando problemas, em conflito, muito briguentas”, afirma Monteiro. Ela afirma que esse tipo de visão é muito perpetuada às mulheres negras que trabalham em ambientes científicos, acadêmicos e intelectuais.
“A filósofa Sueli Carneiro fala muito sobre os epistemicídios [significa a morte de um tipo específico de conhecimento] e sobre o quanto os trabalhos de mulheres negras são descredenciados e, quando denunciamos, é assim que somos vistas”, diz.
Sempre no mesmo lugar
Nay Teodoro, 25, empreendedora, sentia que era colocada em um lugar diferente, mas igualmente incômodo. Na época da faculdade, quando começou a estudar sobre raça, ela era considerada menos importante ao falar sobre negritude por não ser uma mulher pobre.
Quando começou a entender sobre pautas relacionadas ao racismo no Brasil, Teodoro diz que chegou a sentir vergonha de sua classe social. “Fiquei mal por não ter sofrido tanto racismo e opressão, por ser privilegiada. Acho que eu fui muito protegida pela minha família e minha condição financeira me protegeu”, diz.
“Eu era a pretinha patricinha, como se fosse muito ruim você ser uma mulher preta e ter uma condição social diferente de algumas pessoas pretas”, afirma. De patricinha, ela passou a ser denominada como uma mulher raivosa. Monteiro afirma que esse tipo de ação por parte de pessoas brancas é muito recorrente.
“Se uma mulher negra que vem de uma classe social superior fala dos acessos que ela tem, as pessoas brancas a veem como arrogante. Com pessoas brancas, são vistas como ‘uma pessoa difícil de lidar’”, explica a pesquisadora. Isso, segundo ela, se dá pelo fato de que a sociedade age com complacência e normalidade quando pessoas brancas ascendem financeira e socialmente. No entanto, isso é visto como uma afronta se quem fala é uma mulher negra.
“É uma ofensa para o branco escutar uma mulher preta se dando bem. Parece que a narrativa que eles querem que a gente construa é sempre a de tristeza, escassez e pobreza”, afirma.
Desmontando caixinhas
Monteiro explica que é preciso se lembrar que não existem apenas três ou quatro formas de existência de mulheres negras no mundo, mas uma multiplicidade muito grande. “Não somos só a mulher que cuida, nem a fogosa e nem a trabalhadora. Somos intelectuais, gostamos de dormir, queremos ser mães, sonhamos, queremos estabilidade financeira… Cada uma tem sua realidade e sua trajetória de vida”, diz a pesquisadora.
Para que mulheres negras não sejam mais sujeitas a serem vistas por esses estereótipos, ela afirma que é preciso reconhecer essas várias formas de existência e dissolver ideias pré-criadas. “A sociedade tem que se engajar numa luta antirracista e compreender todo processo histórico de opressão que é preciso desconstruir para, assim, nos recolocarmos nessa sociedade como já deveriamos estar”, afirma Monteiro.