Xenofobia: “Zombaram meu sotaque e perguntaram se na minha terra tinha Internet”
Entenda de onde vem os estereótipos preconceituosos e como eles atingem a autoestima de mulheres nordestinas e nortistas
Nas últimas semanas, o termo xenofobia - usado para designar ações que envolvem preconceito e violência em relação a alguém de uma origem geográfica diferente - ganhou as redes sociais devido à relação de participantes do BBB 21 com a advogada e maquiadora paraibana, Juliette Freire .
Juliette começou no programa animada e falante, mas foi se calando aos poucos porque não sentia que conseguia se comunicar com os brothers. Alguns participantes passaram a interrompê-la , imitar seu sotaque e até mesmo duvidar de sua sanidade mental.
Após a primeira eliminação no reality, Juliette afirmou para alguns brothers que percebia o tratamento e que não se sentia compreendida. Em seguida, ela disse que sabia das imitações feitas de seu sotaque nordestino. “As pessoas ironizando na minha cara, debochando, achando que eu estava mentindo, mangando, tirando onda o meu sotaque, me imitando”, desabafou.
Os ataques motivados por xenofobia não são novidades e nem exclusivos à Juliette. Para pessoas nascidas nos estados pertencentes às regiões Norte e Nordeste, ter seu jeito de falar desmerecido e sua inteligência subestimada é rotina.
MEUS GATOS E EU ESTAMOS PRONTOS PRA TE ELIMINAE, VITÓRIA DESGRAÇADA pic.twitter.com/mirudpwDw0
— matheus / afterglow (@mpdelicate) February 3, 2021
Correções e imitações
A primeira vez que a engenheira de pesca e modelo Abthyllane Amaral, 25, sofreu xenofobia foi em um evento científico. Era a primeira vez que ela saía de seu estado natal, o Amapá, e estava em um grupo formado, principalmente, por sudestinos e sulistas. Ao se apresentar, ela foi questionada, corrigida e imitada, segundo ela, de forma maldosa, a ponto de pedir desculpas ao terminar de falar.
Amaral também teve que ouvir perguntas em tom jocoso sobre se no Amapá havia Internet, se assistia televisão e até mesmo se havia carros em seu Estado. Sua fala sobre todos os assuntos era interrompida, o que a intimidou. “Foi como se eu não entendesse sobre nada. Aquilo foi me constrangendo a ponto de eu me retirar daquele local onde não era bem-vinda”, relata.
A estudante de direito e modelo Emilly Andrade, 18, afirma ter passado por uma situação similar. Nascida em Sergipe, ela diz ter ouvido diversas vezes que seu sotaque é “arrastado” e que esses comentários, muitas vezes disfarçados de brincadeira, lhe causaram muita insegurança. “Percebi que repetiam palavras que eu dizia e que meu sotaque era ‘bem de interior’. Também zombaram do meu tom de voz, o que, às vezes, me faz querer ficar mais calada”.
Amaral e Andrade, ambas representantes de seus estados na competição Miss Brasil Mundo 2021, não entenderam que estavam sendo vítimas de xenofobia enquanto os ataques aconteciam. Andrade só associava muito tempo depois, mas o constrangimento era imediato. Amaral sentia muita tristeza, mas achou que a melhor maneira de agir era reprimindo seus sentimentos e esquecendo.
Xenofobia no BBB 21
Diante dos ataques xenofóbicos dentro da casa, Juliette passou a ganhar força do lado de fora, principalmente nas redes sociais. Até o momento ela é uma das preferidas do público ao prêmio de R$1,5 milhão. Em duas semanas, a advogada alcançou a marca de 6 milhões de seguidores, ultrapassando colegas famosos como Karol Conká , Projota, Nego Di, Camilla de Lucas e até mesmo Fiuk e Carla Diaz.
Amaral não acompanha o programa, mas este ano se deparou diversas vezes com vídeos de Juliette ou de pessoas que estavam zombando dela. A modelo diz que fica de coração apertado e lágrimas nos olhos. “Como mulher e como nortista sei o que ela sente. Me sinto triste e decepcionada em ver como o ser humano pode disseminar ódio com uma pessoa pelo simples fato de não ser de sua região”, diz a engenheira.
"A surpresa foi maior porque pessoas que demonstram lutar por causas nobres, que entraram dizendo que sentiram o quão duro é ser 'cancelado' e mostraram que não têm empatia, acham que são os donos da razão", afirma Andrade. Apesar de ser fã do BBB, ela parou de assistir esta temporada. “Não estou muito confortável e o clima está muito pesado, me sinto angustiada”.
Os estereótipos do Norte e Nordeste do Brasil
Edilma Monteiro, pesquisadora, mestra e doutora em antropologia social, afirma que para explicar a xenofobia contra nordestinos e nortistas é preciso olhar para o passado. “Com a chegada dos portugueses e espanhóis, no século 16, e em meio ao processo colonizador, a região Nordeste foi extremamente explorada. As riquezas e os poderes sociais e econômicos foram monopolizados nas mãos de poucos”, explica. Esse momento foi o que consolidou a visão desfavorecida do Nordeste, que perdura até hoje.
Foi esse passado de exploração, somado ao desejo de melhorar a situação econômica de si próprio e da família e fugir da exploração, que impulsionou a migração desses povos a outros estados brasileiros, principalmente no eixo São Paulo-Brasília. Lá, eram contratados como mão de obra para construção civil e outros trabalhos relacionados ao processo de urbanização. “Essa relação de trabalhadores braçais sempre traçou um perfil de que nós, nordestinos, sempre estivemos aptos apenas a serviços mais pesados”, diz.
De acordo com Gregory Rial, professor e mestre em filosofia, a chegada desses povos ao Sul e Sudeste fez nascer uma fronteira simbólica e um choque de culturas. Assim, foram colocadas no lugar de estrangeiros e trabalhando em subempregos. “Soma-se isso ao ‘ódio ao pobre’ que estigmatiza e marginaliza ainda mais um povo castigado que ao migrar apenas buscava uma vida melhor”, explica.
Essas relações fazem com que surjam os estereótipos em relação ao nordeste. De acordo com Rial, esses preconceitos são tanto estéticos quanto culturais. Do ponto de vista cultural, essas pessoas são consideradas preguiçosas e improdutivas por não gostarem de trabalhar. “Há também generalizações em termos como ‘aquele nordestino’, ‘o paraíba’ ou ‘baianos’ para falar de um grupo multicultural e diverso como a população do Nordeste”, afirma.
No campo estético, os corpos das pessoas nordestinas e nortistas — cabeça arredondada e/ou achatada, estatura baixa e traços indígenas, por exemplo — não condizem com os padrões de beleza do Sudeste e do Sul e, por isso, são ridicularizados.
Rial cita como exemplo a representação da mulher nordestina e nortista no Axé, em que são objetificadas e, por isso, reforçam preconceitos de gênero. Por seus traços considerados mais masculinos, elas sofrem com o estereótipo chamado de "mulher macho".
“A gente não precisa ser macho para ser valente, ter opinião e força. Essa visão diminui nossa intelectualidade e nossa condição de sujeito, nos trata como subservientes. É por essa estrutura que as pessoas começam a achar que compreendem o Nordeste”, diz Monteiro.
Em relação ao Norte, Rial cita o desconhecimento sobre a região e habitantes que se instauraram ainda mais no século 20. “Além de uma imagem folclórica da região, construiu-se também uma ideia de inferioridade relacionada ao antigo preconceito com indígenas que, se bem lembrarmos, não eram considerados como gente quando os portugueses chegaram aqui”, explica.
Imaginários culturais de Norte e Nordeste
Para explicar a visão dos povos sudestinos e sulistas em relação ao Nordeste e Norte, Monteiro cita os estudos do antropólogo norte-americano Roy Wagner, principalmente no livro ‘A invenção da cultura’.
Nele, o estudioso argumenta sobre a necessidade de entender como os pensamentos são reproduzidos na sociedade com base na cultura que lhes é concebida ao longo da vida. A especialista afirma que é esse ponto que faz com que a xenofobia seja tão naturalizada em algumas regiões brasileiras, já que essas não vêem interesse em compreender essas regiões.
“Esse Nordeste é inventado pela lente que existe para pessoas do Sul ou Sudeste, que acham que são detentoras do poder e que conhecem a verdade. Nesse processo, criam um Nordeste de miséria, seca, pessoas ignorantes e sem pensamento político. Por isso, é muito comum a fala de que não temos educação”, afirma Monteiro.
Ao mesmo tempo que essas falas incitam xenofobia, a pesquisadora explica que a culpa não deve ser atribuída ao indivíduo que diz, mas sim a estrutura do lugar de onde aquela pessoa veio. “Se eu estou no Sul e aprendo determinadas questões sobre uma determinada região, eu vou acabar replicando aquilo. Não é uma opinião própria. Nossas opiniões são formadas por várias outras que foram estruturadas no decorrer da história”, afirma.
Falta de representação correta e generalização
Se os comportamentos são moldados dessa forma, Monteiro explica que também existe um problema de representação verídica do Nordeste e do Norte por parte da mídia. Ela dá como exemplo as novelas e programas de televisão.
De acordo com o censo demográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a população das regiões Norte e Nordeste possuem, somadas, é de mais de 68,9 milhões de habitantes. “Cada um dos estados têm uma forma de se expressar, de linguagem, com dialetos próprios, mas nossa representação é sempre com o mesmo sotaque, da mesma maneira”, diz Monteiro.
As representações de nordestinos e nortistas em novelas e outras produções da dramaturgia, além de serem imitações realizadas por atores e atrizes de outras regiões do país, tendem a simplificar e, como consequência, anular a diversidade cultural e étnica desses lugares.
A antropóloga explica que essa representação rasa também é herança do período de colonização no Brasil, em que se concentra o pensamento de culturas e povos superiores e inferiores. Dessa forma, certas regiões não se sentem no lugar de compreender outras.
Rial reforça que, ao concentrar as produções audiovisuais nacionais apenas no sudeste, as diversas linguagens brasileiras não são representadas. “Nossa formação auditiva vai se condicionando a um determinado modo de pronunciar a língua que, quando se defronta com o diferente, reage imediatamente de modo preconceituoso”, diz.