‘Para as mulheres negras, a transição capilar também é transição de identidade’
Às vezes, uma mulher só consegue se reconhecer negra depois de passar por uma transição capilar. Entenda como esse processo é libertador para as mulheres negras
Por Camila Cetrone | | iG Delas |
O processo de transição capilar pode ser muito complicado para muitas mulheres que querem tirar a química do cabelo. No entanto, esse processo tem um peso muito maior para mulheres negras . Isso porque além de lidar com questões de autoestima e beleza, a transição capilar muitas vezes é o primeiro contato que uma mulher negra tem com sua identidade racial.
Especializada em cabelos crespos e cacheados, Natália de Benguela é sócia do salão de beleza Casa de Pretas , voltado para o povo preto em Santo André, São Paulo. Ela conta que a transição capilar começa quando a pessoa negra começa a se questionar sobre como é seu cabelo sem químicas de alisamento .
Esses produtos são aplicados para que as mulheres negras possam “comportar” seus cabelos e se sentir pertencentes a um padrão de beleza imposto a elas. O processo de alisamento acaba resultando em traumas em relação à aparência natural de seus fios. “Como o próprio nome diz, a ‘transição’ começa a partir do momento que entendemos que nosso cabelo, nossa estética é uma forma de pertencimento e resistência”, diz a profissional.
A diretora de arte publicitária Beatriz Helena, 23, contou para o iG Delas que buscou a transição capilar em 2016 por necessidade e porque tinha pouco tempo para se dedicar ao secador e à chapinha. “Eu tinha que sair de casa às 4 horas da manhã para chegar às 7 horas no meu trabalho, do qual eu chegava a sair meia noite”, explica. A solução que encontrou foi raspar a cabeça.
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Esse processo pode mexer muito com a autoestima das mulheres . Portanto, existem grupos de apoio on-line para que elas possam compartilhar seu progresso, além de trocar ideias de produtos para testar nos fios e mensagens de apoio. No entanto, o significado disso para as mulheres negras é muito mais profundo.
“A transição capilar toca em dores, cicatrizes que carregamos desde a infância e que muitas vezes não estamos prontas para abrir. Porém, existe a transição consciente da importância e resistência que são nossos cabelos, nossos traços, nossa cultura”, afirma Natália.
Antes da transição, Beatriz já sabia que era negra. Mas foi com esse processo que ela começou a descobrir que o significado disso ia além da pele escura. Natália explica que esse processo de autoconhecimento é muito comum. “Muitas de nós não têm consciência racial e não sabem a importância de se afirmar como ‘negro’ ou ‘preto’ numa sociedade racista que tentou, de muitas formas, embranquecer nosso povo”, ressalta.
Foi com esse processo que Beatriz conseguiu enxergar esses padrões embranquecidos e começou a se sentir confortável com seus próprios fios e sua identidade. Ela cita como exemplo que pensava que o cabelo bonito era o “cabelo de novela das oito, liso e esvoaçante”.
A diretora de arte é fã do movimento cultural gótico, que é marcado pelo estereótipo de estilo protagonizado por mulheres de pele muito clara e cabelos lisos. Ao buscar referências, Beatriz foi encontrando referências pretas, o que foi fundamental para ela.
“É importante ter pessoas negras na cena para desembranquecer essa ideia. Às vezes a galera diz que a gente não pode fazer parte dessa tribo e nem gostar dessas coisas. Com a transição eu pude perceber que posso entender outros aspectos culturais e entender a história, posso ocupar outros espaços”, reflete.
Natália acredita que ao se aproximar da cultura e dos traços negros, por meio da transição capilar , as mulheres negras conseguem aprender a se amar. “Acredito que assim toda mulher consegue se libertar de tantos traumas e amar um cabelo tão maravilhoso que aguentou firme, mesmo quando era tão negado. A transição também é de identidade”, diz.