Mulheres negras contam como foi raspar a cabeça e romper com os padrões
Conheça as histórias de quatro mulheres diferentes que falam de autoestima e empoderamento negro e vão muito além do cabelo
Por iG Delas |
Você já refletiu sobre qual o significado do cabelo na sua vida? Para muita gente é a marca da identidade. Tem quem encara os fios como aliados no processo de empoderamento. E ainda há mulheres que fizeram o caminho oposto: rasparam a cabeça para explorar outras formas de beleza.
Foi o caso de Laressa Teixeira, Débora Raquel, Laís Carvalho e Gessica Justino. Elas têm motivações diferentes para ficar careca, mas compartilham da ideia de que há muita beleza para além dos fios. “Entender que minha beleza e minha feminilidade estão para além de ter ou não cabelo me ajudou a questionar e explorar o conceito de beleza”, pontua Laressa.
Para Débora, raspar o a cabeça está muito longe de ser algo para negar o cabelo. “Ser uma mulher preta e careca não é porque não amamos o nosso cabelo, é porque nossa beleza está para além de uma estética imposta pela sociedade”, diz. Laís comenta que o processo tem a ver com liberdade e reconhecimento: “Quando raspamos a cabeça é como se a gente passasse a se ver de verdade, sem disfarce.”
Para Gessica o cabelo raspado é sua forma de expressão e está ligado às suas referências: "Ter a cabeça raspada é algo comum entre mulheres negras. Eu via elas e já reconhecia a beleza ali. E as minhas referências são elas".
Laressa Teixeira, 23 anos, Rio de Janeiro (RJ)
“Raspei a minha cabeça em março de 2019. Eu sentia que minha beleza era refém do meu cabelo e não gostava disso. Sentia que as pessoas não me enxergavam direito. Eu já tinha consciência racial, gostava do que enxergava no espelho e me sentia à vontade com meu rosto. Cortar o cabelo foi uma forma de mostrar isso para o ‘mundo’. Mostrar que eu sou mulher negra consciente da própria beleza. Hoje eu me sinto livre.
Entender que minha beleza e minha feminilidade estão para além de ter ou não cabelo me ajudou a questionar e explorar o conceito de beleza. Não me acho bonita todos os dias, mas consigo colocar os pés nos chão com mais facilidade nos dias ruins. Hoje sei que padrões de beleza foram empurrados e são empurrados para nós mulheres a vida toda.”
Débora Raquel, 28 anos, Teresina (PI)
“Eu decidi raspar a cabeça em março de 2019 e foi a melhor decisão da minha vida. Sempre admirei mulheres carecas, principalmente se fossem negras. Referências nas redes sociais alimentaram meu desejo, mas o filme Pantera Negra com as guerreiras wakandanas carecas me fez ter uma visão muito diferente. Vi que ser careca e negra é mais do que um estilo e tendência. É força. Também tive o apoio da minha namorada que também foi muito necessário no processo.
Eu sofria de autoestima baixa severa e ainda não tinha me encontrado como uma mulher negra, pois não sou retinta. Tornar-se careca foi um processo de libertação e emponderamento que aconteceu de dentro para fora. Ao contrário do que achava, fiquei emocionada quando me vi sem o cabelo. No início, os olhares estranho me afetavam um pouco. As pessoas perguntavam se eu tinha alguma doença. O tempo foi passando e hoje não me incomodo mais. Minha autoestima melhorou de forma surpreendente.
O que me faz concluir que tomei a melhor decisão da minha vida é olhar no espelho e me achar uma mulher preta e poderosa, além da quantidade de outras mulheres pretas que me param para dizer o quanto se sentem inspiradas por mim. Ser uma mulher preta e careca não é porque não amamos o nosso cabelo, é porque nossa beleza está para além de uma estética imposta pela sociedade e é sinônimo de guerreira, de poder e de inspiração.”
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Laís Carvalho, 31 anos, Salvador (BA)
“Decidi raspar minha cabeça em Julho de 2019, ideia que eu já vinha amadurecendo há um tempo, ao longo de um processo de autoconhecimento. A minha jornada no yoga, nos últimos anos, foi crucial nesse processo de reconhecimento, desapego e autoaceitação.
O que me motivou, primeiramente, foi me livrar do alisamento, que fiz por bastante tempo, mas já não me agradava. Sentia que fazia aquilo apenas para atender aos padrões e cobranças externas. A ideia veio também da praticidade que isso proporciona. Decidi que o cabelo, definitivamente, não seria mais algo com que eu tivesse que me importar. Meu tempo, minha energia e meu dinheiro deveriam ser direcionados para algo mais significativo para mim.
Existe uma cobrança muito grande com relação a aparência das mulheres, em especial relacionada ao cabelo. Sendo mulher negra, as exigências são ainda maiores e mais cruéis. É como se a nossa beleza estivesse atrelada ao cabelo, mas não está. Quando raspamos a cabeça é como se a gente passasse a se ver de verdade, sem disfarce. E encontra tanta beleza para além do que os padrões definem.
As críticas sobre o fato de uma mulher com a cabeça raspada não ser muito "feminina" existem. O racismo também fica mais evidenciado no cotidiano pelo fato da minha negritude ter se tornado "ainda mais aparente". Por isso, é difícil romper com esses padrões. Mas, quando a gente consegue exercer a liberdade de ser quem a gente é de verdade, tudo muda. Hoje eu me sinto muito mais bonita, com mais identidade e isso me torna também muito mais confiante e forte.”
Gessica Justino, 32 anos, São Paulo (SP)
“Estou há 12 anos com o cabelo raspado e, na verdade, não tenho nenhuma história de superação por trás da decisão de ficar careca. Mas, como toda mulher negra, passei por questões ligadas ao cabelo, já que somos vistas a partir dele. Eu também passei pela transformação química e pelo sofrimento que gira em torno disso, mas raspar o cabelo não está ligado a isso. Quando raspei, já tinha essas questões resolvidas. Não esperava uma aprovação social e não tentava me enquadrar, já que se enquadrar é impossível enquanto mulher negra.
Um dia eu acordei e pensei em me transformar. Como não tinha uma máquina para raspar o cabelo em casa, fui para uma barbearia, em um bairro nobre do Rio de Janeiro, e a primeira coisa que me perguntaram foi: “O seu marido vai deixar?”. Quando decidi o que queria fazer ainda ia ter alguém para me questionar? Mas cortei e me senti muito feliz. Falei que queria ser careca para sempre. Além de me sentir bem comigo mesma, é prático e é um tipo de expressão que fala sobre mim. Continuei indo a salões e passava pelos mesmos questionamentos, mas nada tirou a ideia de que eu deveria ser careca.
Um dia, na Mangueira, no Rio de Janeiro, passei por uma barbearia e vi que era exatamente o retrato da minha infância: música alta, crianças, mulheres e homens se cuidando. Quando olhei, vi que era a minha casa. Entrei e não ouvi nenhum tipo de comentário. Fui tratada com intimidade, carinho e afeto. Nunca mais voltei para aqueles salões. Passei a buscar lugares que trouxessem aspectos que se conectavam com a minha referência. Criei elos familiares com esses barbeiros. Com isso, nasceu o ‘Barbeiragem’, filme, instalação e projeto que resgata a trajetória de barbeiros de diversos lugares. A minha decisão de cortar o cabelo ficou muito maior com isso.
Eu falo que ter a cabeça raspada é algo comum entre mulheres negras. Eu via elas e já reconhecia a beleza ali. E as minhas referências são elas. Ver uma mulher negra careca nunca foi uma questão ligada à dor. Eram sempre mulheres muito expressivas e decididas.
Hoje não procuro nenhum tipo de aprovação estética. O mundo não sabe ler a beleza negra e cobra que pessoas negras correspondam à expectativa embranquecida da beleza. Sou bem resolvida em relação à beleza e autoestima, porque busco referências fora do padrão. Eu não me encaixo e não vou me encaixar."