Com avanços a passos curtos, participação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro é marcada por desigualdades e preconceitos
Felipe Carvalho
Com avanços a passos curtos, participação das mulheres no mercado de trabalho brasileiro é marcada por desigualdades e preconceitos


Ao longo do último ano, o Brasil tem enfrentado diversos obstáculos econômicos como consequência dos avanços da pandemia do coronavírus . O setor econômico tem sido imerso em um cenário de incertezas e crise. Diante disso, a situação das  mulheres no mercado de trabalho passou por mudanças significativas, que contribuíram para ampliar ainda mais a desigualdade enfrentada por mulheres no mercado de trabalho.

Segundo dados do Pnad Contínua, 8,5 milhões de mulheres ficaram desempregadas no ano passado, sendo que 7 milhões delas já estavam sem emprego no primeiro trimestre, antes da primeira onda da pandemia atingir seu pico no país. A participação delas no mercado de trabalho caiu de 53,3% para 45,8% no terceiro trimestre. Com esses índices, o nível de participação de mulheres atingiu seu patamar mais baixo desde 1990, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) .

No entanto, há muito mais explicações por trás desses números do que meramente a crise econômica da pandemia, isso porque as experiências das mulheres no mercado de trabalho é marcada por falta de oportunidades iguais, precarização e desvalorização ligada a estereótipos.


“Mesmo que a quantidade de famílias sustentadas por mulheres tenha crescido bastante nos últimos anos, ainda sofremos com algumas resistências no mercado de trabalho”, explica Grazielle Sbardelotto, executiva, sócia e vice-presidente de Marketing Cloud Services da empresa Pmweb. De acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 45% das mulheres são a principal fonte de renda de seus lares.

Sbardelotto explica que, independente do cargo, as mulheres estão sujeitas a passar por situações de assédio moral e sexual, baixa representatividade, preconceitos e questionamentos sobre capacitação profissional; além de precisar lidar com falta de espaço,  dupla jornada e desigualdade salarial. De acordo com uma pesquisa realizada pela empresa de tecnologia para recrutamentos Infojobs, 51% das mulheres afirmaram já ter passado por algum tipo de preconceito .

“Parte dessas barreiras que enfrentamos é de ordem cultural. A verdade é que a mulher ainda é estigmatizada como a responsável por cuidar do lar e gerar filhos, enquanto aos homens é destinado o papel de provedores da casa”, diz Renata Spallicci, vice-presidente executiva da Apsen, executiva e palestrante sobre empreendedorismo, diversidade e inclusão .

As mais demitidas durante a pandemia

A taxa de desemprego entre mulheres estava em 17,2% em novembro do ano passado, segundo o Pnad, enquanto isso entre os homens era de 11,9%. Das que tinham ocupação no mercado, 3,6% estavam afastadas do trabalho devido às medidas de distanciamento social, contra 1,7% dos homens.

“Alguns dos setores mais afetados pela pandemia, como educação, alimentação e serviços domésticos, contam com muito mais mulheres trabalhando, o que fez com que acabassem sendo mais afetadas”, explica Spallicci. Sbardelotto acrescenta que muitos negócios chefiados por mulheres não conseguiram se sustentar em meio aos longos períodos de isolamento social, resultando em desemprego.

Além dos fatores econômicos, o cenário sócio-cultural e os pensamentos estruturais que relacionam as mulheres aos cuidados domésticos e familiares também entraram no caminho. O fechamento de creches e escolas e a impossibilidade de conseguir ajuda para cuidar dos filhos foram agravantes.

Cresce a ocupação de cargos de liderança

Apesar da crise econômica mundial, a pesquisa Women In Business 2021, realizada pela empresa Grant Thornton, aponta que a média global de mulheres em cargos de alta administração cresceu para 31%. A empresa estima que, em breve, um terço dessas ocupações sejam de mulheres.

As mulheres brasileiras ultrapassaram essa média e agora ocupam 39% dos cargos de liderança sendo que, só no primeiro trimestre deste ano, esse avanço foi de 5%. Também cresceu o número de mulheres CEO e COO no país. O primeiro passou de 32%, registrado em 2020, para 36%, enquanto o segundo teve um salto mais expressivo, de 16% a 28%.

No entanto, a mudança caminha a passos curtos em relação a outras áreas. O IBGE aponta que as mulheres ainda são minoria nos cursos de ciências exatas e de produção. Em engenharia, elas são menos de um quarto dos alunos. Por outro lado, as mulheres são maioria nos cursos relacionados a cuidados e assistência, representando 90% dos estudantes.

“O mercado em geral é muito machista . Mulheres em áreas predominantemente compostas e lideradas por homens precisam provar muito mais o seu valor, competência e expertise em relação aos companheiros de trabalho homens. Para sermos valorizadas, nosso trabalho precisa ser ainda melhor que o deles. É uma cobrança infinitamente maior”, explica Sbardelotto.

Disparidade de salário ainda é alta

De acordo com o último ranking do Fórum Econômico Mundial, realizado em 2019, o Brasil está em 130º lugar em igualdade salarial entre homens e mulheres que realizam a mesma função. A lista analisou a situação de 153 países. Dados do IBGE do mesmo ano apontam que as mulheres recebem 77,7% do salário dos homens no país.

Em cargos de diretoria e gerência, essa diferença é ainda maior: as mulheres recebem 61,9% do salário que é pago aos homens que exercem o mesmo cargo. O Sudeste lidera como a região brasileira com maior desigualdade salarial, além de ter apenas 34,7% de cargos gerenciais ocupados por mulheres.

Sbardelotto diz que o Brasil não possui nenhum tipo de regulação ou controle que garanta a equidade salarial. “O mercado de trabalho reflete a realidade do preconceito e da discriminação histórica que as mulheres enfrentam”, completa Spallicci.

No último dia 26 houve uma movimentação legislativa para garantir a reparação de desigualdade salarial. Foi aprovado requerimento que pede urgência para a aprovação do PLC 130/2011, que estabelece multas para empresas que pagarem salários diferentes para homens e mulheres na mesma função. Em breve, o projeto deve voltar a tramitar na Câmara.

Sbardelotto afirma que esse tipo de política foi implementada em 1997 na Noruega, que estabeleceu cotas para conselhos de administração empresariais e punições. “Apesar das dificuldades de conseguir chegar nesse patamar, hoje o país conta com mais de 40% de mulheres nos conselhos das empresas”, diz.

O nível de escolaridade também é um pilar importante para garantir a equidade salarial, explica Spallicci. Para 73,8% das mulheres, essa é uma porta para conseguir as mesmas oportunidades que os homens, principalmente em cargos de liderança, segundo o Infojobs.

O IBGE diz que 25,1% das mulheres entre 25 e 34 anos terminaram o ensino superior, enquanto apenas 18,3% dos homens o concluíram. “Embora ainda ganhem menos, as mulheres estão estudando e se preparando mais. Isso tende a impactar no mercado profissional, inclusive nos salários”, diz.

Mães no mercado de trabalho

O Brasil possui cerca de 79 milhões de mães, segundo apuração da empresa B2Mamy. Assim que se tornam mães, 48% deixam o mercado de trabalho. Elas tendem a voltar a trabalhar depois de dois anos, mas ficam atrasadas em, ao menos, seis anos. Esse atraso está diretamente relacionado ao preconceito com profissionais que são mães.

De acordo com o IBGE, 54,6% das mulheres de 24 a 49 anos em lares com crianças de até 3 anos estavam trabalhando, mas a porcentagem era maior para mulheres sem filhos, com ocupação em 67,2%. O critério não impacta os homens da mesma maneira. No caso deles, a ocupação é de 89,2%, em casas com crianças, e 83,4%, em casas sem crianças.

A média salarial das mulheres mães também diminui, tornando-se R$1.560,50 contra R$2.115,39 de mulheres sem filhos. As  mulheres negras são ainda mais afetadas, já que ocupam menos postos de trabalho do que as brancas: são 49,7% de ocupações de mães negras contra 62,6% de mães brancas.

“A questão cultural joga muito pesado, que é a noção de que as mulheres estão aí para reproduzir e cuidar do lar. Essa visão é reforçada desde sempre e acaba impactando no mercado de trabalho”, explica Spallicci.

Os preconceitos recaem nas mães pelo fato de as empresas não acreditarem que ela assumirá suas responsabilidades maternas e profissionais. “Por outro lado, existem as dificuldades práticas em relação à criação dos filhos, como a ausência de políticas públicas que facilitem esse retorno da mulher ao trabalho, agravadas pela mentalidade de uma sociedade que relega unicamente à mulher essa tarefa de cuidar dos filhos”, diz a executiva.

A extensão do período da licença paternidade também é um caminho que pode fazer com que esses preconceitos sejam diminuídos. Isso pode auxiliar tanto em esfera profissional, já que existe um tempo em que o homem é obrigado a se ausentar, até uma forma de dividir as demandas domésticas e parentais com a mulher. “Alguns países, em especial os escandinavos, têm licenças semelhantes ou compartilhadas entre os pais, que podem definir como parte dos dias serão divididos. Recentemente, a Espanha também avançou nesse sentido”, explica Sbardelotto.

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Trabalho não remunerado e dupla jornada

De acordo com o IBGE, é considerado como trabalho não remunerado atividades voluntárias, trabalho para consumo próprio, tarefas domésticas e cuidados a familiares, sejam eles residentes no mesmo domicílio ou não. Se as mulheres já eram encarregadas a esse tipo de trabalho, Spallicci diz que a carga aumentou ainda mais durante a pandemia.

A sobrecarga do trabalho não remunerado gera o que é conhecido como dupla jornada. De acordo com a Infojobs, a dupla jornada é parte da rotina de 85,8% das mulheres no mercado de trabalho. O IBGE contabiliza que elas gastam 21,4 horas por semana com afazeres domésticos , enquanto os homens gastam só 11 horas. O censo aponta que a dupla jornada e o trabalho não remunerado continua sendo um dos principais pilares a dificultar a inserção das mulheres no mercado de trabalho.

As donas de casa também se enquadram na categoria de trabalho não remunerado. De acordo com a pesquisa “Sem parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia”, do Datafolha, 23% das mulheres não tiveram mudanças na rotina de trabalho durante a pandemia do coronavírus, já que são donas de casa; 58% delas são negras.

Por outro lado, 47% das mulheres que começaram a realizar trabalho remunerado em casa acumularam a maior parte dos afazeres domésticos. Destas, 50% são negras e 49% são brancas. Cerca de 41% delas dizem que o volume de trabalho aumentou muito.

O censo afirma que o motivo pelo qual elas fazem mais trabalho não remunerado do que os homens é a falta de divisão igualitária da demanda doméstica e a noção de que essa é uma função estritamente da mulher. “As relações entre trabalho e atividades domésticas se imbricaram e, se antes pagar por serviços era a solução possível, a pandemia mostra que solução será a não-divisão sexual do trabalho”, explica o dossiê.

Quando se trata do cuidado de outras pessoas, 57% das mulheres passaram a cuidar de filhos de até 12 anos, demanda que teve um aumento de 40%; além de cuidar de pessoas fora do núcleo familiar. Cerca de 50% das mulheres passaram a se responsabilizar por outros familiares (80,6%), amigos (24%), vizinhos (11%), filhos de outras pessoas (6,4%), idosos sem vínculo familiar (27%) e pessoas portadoras de deficiência (3,5%).

Mulheres negras e a precarização

Se as mulheres brancas precisam enfrentar tantas barreiras no mercado de trabalho, as  mulheres negras estão vulneráveis a consequências ainda maiores. O Datafolha indica que 58% delas ficaram desempregadas durante a pandemia e aponta que, historicamente, as pessoas brancas têm maior taxa de ocupação no mercado formal do que as negras.

Além da falta de oportunidades, elas recebem as piores remunerações: menos de R$0,50 para cada R$1 recebido por um homem branco, o que equivale a menos da metade do salário. Estudo realizado pela plataforma Indique Uma Preta aponta que 47% delas estão no trabalho informal contra 8% no mercado formal.

Fora do mercado formal de trabalho, elas são maioria do núcleo de empregadas domésticas. O Ipea mapeou em 2018 que, de 6,2 milhões de brasileiros fazendo trabalhos domésticos, 5,7 milhões eram mulheres. A maioria, 3,9 milhões, formada por negras. A pesquisa estima ainda que a maioria dessas trabalhadoras têm idade avançada.

Mesmo sendo maioria, a pesquisa afirma que não houve avanço na fiscalização da regulamentação desse setor, deixando as empregadas domésticas mais vulneráveis, sem direito à proteção social. No ano em que a pesquisa foi realizada, apenas 28,6% trabalhavam com carteira assinada.

As mulheres negras são empurradas para os trabalhos precarizados devido aos fatores raciais que impedem acesso igual ao concedido para mulheres brancas em setores educacionais, sociais e financeiros. Segundo o IBGE, apenas 10% das  mulheres negras completaram o ensino superior, número 2,3 vezes menor do que as mulheres brancas.

Mulheres trans e travestis fora do mercado de trabalho formal

Apesar de homens e mulheres trans serem amplamente impactados pela transfobia no país de forma similar, são as mulheres trans e travestis que enfrentam mais barreiras para conseguir um trabalho no mercado formal.

Dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) apontam que 90% das pessoas trans recorrem à prostituição como principal fonte de renda, sendo a maioria esmagadora composta por mulheres trans e travestis. O trabalho sexual se torna alternativa para essas pessoas porque não conseguem se inserir no mercado de trabalho devido ao preconceito e à falta de oportunidades.

Sbardelotto destaca que há ainda falta de informação por parte das empresas, que não sabem identificar ou lidar com a cisgeneridade e a transgeneridade, confundindo ambos com orientações sexuais. “Outros fatores que estão ligados à pouca presença da comunidade trans no mercado são a evasão escolar e o preconceito da sociedade, que não é visto só no mercado de trabalho, mas também em casa, nas escolas, nas comunidades, na religião”, explica.

A executiva também chama atenção para a falta de políticas públicas de capacitação e inserção social no Brasil, o que se torna um impeditivo para que mulheres trans e travestis tenham acessos a postos de trabalho formais.

Oportunidades para todas

Apesar dos avanços, Sbardelotto explica que as empresas ainda funcionam com base no estereótipo de que uma boa liderança é feita por homens. O desafio para as empresas é desmantelar essa imagem e criar políticas de inclusão, capacitação e informação para formar equipes mais diversas.

Ela aponta que os principais pontos a serem adotados é a valorização da qualificação profissional dos candidatos às vagas, garantir a igualdade dos salários e reformular a cultura empresarial. “Tudo isso para acontecer efetivamente deve depender inicialmente de políticas que façam com que as empresas cumpram essa obrigatoriedade, até que se torne natural no mercado”, explica.

Para Spallicci, diversidade e inclusão devem fazer parte das agendas de lideranças empresariais para que, assim, a empresa possa agir de acordo com estratégias para ampliar o posicionamento de mulheres e outras minorias. Para isso, é importante que as empresas promovam conversas e trocas de informações relacionadas à diversidade étnica, racial, de idade e de gênero.

Mais do que falar, a executiva salienta que é preciso atraí-las para oportunidades de maneira com que se sintam confiantes e seguras a se aplicar para as vagas, sabendo que sua capacitação será respeitada. “Isso é bom para todos: para as contratadas que terão uma nova oportunidade; para a empresa, que certamente ganhará riqueza criativa e inovação, e para os clientes, que passarão a receber soluções muito mais abrangentes”, diz.

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