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"“As pessoas ainda não estão acostumadas com uma filha não querer falar com a mãe porque romantizam muito a maternidade", diz mulher que escolheu se afastar da mãe











Pensar na própria  mãe pode ser uma fonte de dor para muitas pessoas. É assim para a profissional de TI Thayla Marques, 26, que precisou cortar os laços com a mãe por tempo indeterminado. “Decidi não falar mais com ela porque percebi que faz mal para mim. Realmente não dá. Até hoje tenho pesadelos com ela”, afirma.

Thayla explica que o motivo pelo qual não consegue ter um relacionamento com a mãe está ligado aos abusos que sofreu na infância . Ela e seu irmão eram espancados e eram comumente trancados em casa sozinhos por longos períodos, às vezes com um macarrão instantâneo para comer. “Ela vivia me dizendo que não queria que eu tivesse nascido”, diz.


O principal motivo que a fez desistir do relacionamento foi um  abuso sexual cometido pelo padrastro, ao sete anos. “Quando contei, ela disse que era brincadeira, que não acreditava e que o amava. Ela preferiu ficar do lado do estuprador do que da própria filha”, diz. O abuso foi denunciado pela avó, que percebeu a mudança de comportamento de Thayla e a levou para fazer exames no Instituto Médico Legal (IML).

A partir desse período, a avó passou a abrigar a neta e se tornou responsável por ela. Thayla e a mãe perderam contato quando ela tinha 11 anos. Sem a possibilidade de visitar Thayla, era comum que a mãe a seguisse na rua ou aparecesse de surpresa durante o recreio. Isso contribuiu para que a filha desenvolvesse  Síndrome do Pânico anos depois.

Quando nada é suficiente

No caso da designer Maria*, 30, os ataques começaram a acontecer no início da adolescência, quando seus pais se divorciaram. A mãe passou a dizer que só aceitou se casar porque estava grávida e passou a culpá-la pelo fim do casamento.

A partir daí, Maria percebeu que era constantemente sabotada pela mãe. “Ela passou a dar risada de todos os meus interesses e a me desencorajar. Se eu gostava de ler, era nerd. Se gostava de desenhos japoneses, era esquisita”. Com o tempo, os comentários passaram a vir acompanhados de agressões. “Um dia, quando ia sair com alguns amigos, precisei me trancar no banheiro para não apanhar porque ela não gostou da minha roupa”, lembra.

A situação se intensificou na época da faculdade. Maria conta que em 2012 passava por uma depressão profunsa. Sua universidade estava em greve e ela estava desempregada. Foi quando a designer passou a ser proibida de comer a mesma comida que a mãe. Além disso, o papel higiênico era racionado e ela não podia usar a máquina de lavar roupa ou sequer as panelas da casa.

A relação com a mãe fez com que Maria precisasse lidar com transtornos alimentares. Isso porque, além de ter a comida controlada, a designer recebeu comentários negativos sobre seu corpo. “Ela já chegou a filmar meu corpo na praia enquanto eu dormia. Estava curvada e apareciam dobrinhas na minha barriga, algo normal. Ela tirava sarro das dobrinhas e dizia que eu estava gorda”, diz. 

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A gota d’água foi quando a mãe a perseguiu pela casa com uma faca. “Eu estava guardando dinheiro para viajar . Tinha que guardar em espécie, porque ela não me deixava ter uma conta bancária. Às vezes, minha mãe pegava um pouco emprestado e devolvia depois. Senti falta de R$ 300. Quando perguntei para minha mãe se tinha usado, ela insinuou que eu estava chamando de ladra e pegou a faca. Minha irmã, com 11 anos na época, precisou afastá-la de mim”.

Depois dessa situação, Maria passou seis meses morando com um tio. Posteriormente, o pai decidiu alugar um apartamento para mantê-la em segurança. “Meu pai me disse que, se eu não me mudasse para o apartamento, poderia morrer na casa dela”, diz.

Cortando o laço

Maria afirma que só não parou de falar com a mãe para não chatear um parente e para conseguir monitorar a situação da irmã, que ainda mora com ela. Mas afirma que a relação das duas é protocolar. “Conversamos em aniversários, dia das mães, Natal, Páscoa e só. Dificilmente a vejo fora dessas datas”, diz.

No caso de Thayla, não existe mais nenhum contato. Ela afirma que todas as situações com a mãe impactaram muito sua vida e a impedem de ter um relacionamento. “Tentamos uma reaproximação, mas ela está agressiva por conta de surtos psicóticos, que começaram recentemente, e não está se medicando. Então, não nos falamos. Decidi que seria importante priorizar minha saúde mental ou eu iria adoecer mais do que já adoeci”, explica.

Thayla continuou tendo o apoio da avó até conseguir ter sua própria casa com o marido. Além disso, começou a fazer  acompanhamento psicanalítico e psiquiátrico para amenizar as crises de pânico. Além disso, Thayla recorreu a grupos de apoio na Internet que reúnem vítimas de mulheres que passam pela síndrome de mães narcisistas. “É muito bom conseguir desabafar sem precisar ficar explicando muito, porque outras pessoas entendem”, diz.

Mãe perfeita

Rastrear a origem exata da imagem de uma mãe perfeita é uma tarefa muito difícil, de acordo com Jaqueline Vargas, psicanalista, roteirista e autora do livro de poesia “Aquela Que Não É Mãe”, publicado pela Editora Buzz . Isso porque as mães eram vistas como seres divinos desde o início da civilização. “Temos como exemplo a própria Virgem Maria, muitas Nossas Senhoras, diversas deusas. E são todas mães”, explica.

Esse tipo de idealização acaba ignorando que mães são seres humanos, passíveis de erros ou dotadas de defeitos. “Antes da mãe, existe a mulher. É um equívoco atribuir a todas as mulheres o mesmo tipo de amor. A idealização pode ser danosa tanto para a mãe quanto para o filho e pode gerar muitas questões que o sujeito terá que lidar durante a vida”, diz.

Da mesma maneira que a imagem da mãe perfeita pode causar pressões danosas às mães, também pode aprisionar filhos que querem quebrar um relacionamento tóxico com uma mãe. “Existem momentos em que o sujeito não consegue coexistir com a mãe e precisa se afastar não para fugir, mas para encontrar a si mesmo”, diz.

Isso não quer dizer que uma boa mãe não pode cometer erros, mas que existem traços que podem indicar uma relação tóxica. “Uma relação em que o sujeito não possa expressar sua subjetividade, seja colocado no anonimato, tenha sua imaginação castrada e não seja visto como é são sinais de um não entendimento”, acrescenta.

A psicanalista chama atenção para o fato de que o amor entre mãe e filho é construída e não algo inato para nenhuma das partes, que existe  simplesmente devido ao laço biológico. Assim, não é possível obrigar que uma mãe ame um filho pelo laço familiar, e vice-versa.

“Muitas vezes, o filho não consegue amar porque a mãe não é capaz de vivenciar o amor materno. Por muitos motivos, muitas mulheres fazem mal aos filhos sem saber”, explica a psicanalista.

Estranhamento social

Tanto Maria como Thayla dizem que se sentem livres depois de decidir cortar os laços com suas mães. Porém, com o afastamento, as duas passaram a sentir outro tipo de pressão. “Quando saí de casa eu fiquei pensando que tinha algum problema sério comigo. Que tipo de pessoa não se dá bem com a própria mãe? O problema era comigo?”, diz Maria.

Os comentários começaram a vir dos colegas de trabalho que souberam da situação. Inconformados com o distanciamento de mãe e filha, cobravam por um desfecho. “Me falavam coisas como: ‘mas é sua mãe, é sangue, você tem que voltar a falar com ela’”, lembra a designer.

Thayla também passou por isso, mas as falas vinham de familiares. “Vinham com aquele discurso pronto: ‘Tem que perdoar, tem que entender, mãe é mãe’. Sei que o perdão é importante, principalmente para as vítimas, mas nem sempre é assim”, diz Thayla.

“O questionamento de quem está de fora ao se deparar com alguém que cortou relações com a mãe, muitas vezes, é de inquisição, como se a pessoa estivesse transgredindo uma lei, pervertendo um mito, sendo ingrato”, completa. “ Ser mãe não dá passe livre para fazer maldade com os filhos”.

Maria acrescenta: “Muita gente me pergunta como eu posso ficar assim com a minha mãe, mas nunca se perguntam: ‘como alguém pode fazer isso com a filha?’”.

Sobrevivência

Maria conta que por muito tempo, observar a relação de pessoas próximas com suas mães foi motivo de inveja, algo que a fazia lembrar do vazio de não ter esse laço. “Dói um pouco saber que nunca vou ter isso. Mas aceitei que a mãe que eu tenho é daquele jeito e eu não tenho poder nenhum de mudar quem ela é”, explica.

A pressão que sentia por não ter esse vínculo, bem como sensação de que algo estava errado, foi passando. Agora, ela consegue encarar tudo o que viveu como uma questão de sobrevivência. “No começo eu me senti um monstro, mas depois fui entendendo que não fiz nada. Juntei toda minha força e saí de uma situação horrível”, diz.

Thayla aproveitou a ocasião do Maio Laranja, que simboliza a campanha de enfrentamento do  abuso sexual infantil, para compartilhar sua história nas redes sociais. Isso a ajudou a criar ainda mais força para encarar seus próprios traumas.

“Quis usar minha experiência para alertar famílias e para que vítimas não se sintam sozinhas”, diz. “Ainda sinto as dores pelo que aconteceu, mas posso dizer que hoje vivo melhor do que vivia naquele ambiente tóxico”, continua.

Maria diz que a distância deu um novo significado para seu relacionamento com sua mãe. “Sinto que consigo ter um pouquinho de uma mãe, uma amostra do que ela poderia ser. Isso é o máximo que vou ter dela. Prefiro isso do que ter uma convivência mais presente e perceber que essa amostra não é real”, diz.

*Este nome foi alterado para manter a privacidade e proteção da fonte.

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