Sofrer algum tipo de assédio ou ser uma vítima de abuso sexual não é fácil em nenhum sentido. Mesmo com medo de retaliação e desencorajadas por pessoas que deveriam ampará-las, há mulheres que chegam a denunciar as agressões sofridas, mas isso não elimina o fato de que um trauma assim é capaz de se manifestar em diversas áreas da vida – especialmente quando o assunto é sexualidade.
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Conforme explica a psicóloga Livia Marques, ser vítima de abuso sexual pode fazer a mente gerar associações que, muitas vezes, se manifestam em forma de aversão ao contato sexual. “Sofrer esse tipo de violência é algo traumático, algo que invade sua privacidade sem autorização. Mexe com o psicológico e o físico da mulher, o que pode levar, em muitos casos, à associação do sexo com algo violento e sujo”, afirma ela.
Ela também afirma que é possível sentir esse trauma aflorar mesmo anos depois de a agressão ter ocorrido. É o que aconteceu com Carolina (nome fictício), que passou a sentir dificuldades em se envolver sexualmente um ano após sofrer um estupro e, hoje, cinco anos depois da agressão, sente o trauma se manifestar de forma ainda mais intensa.
*** O relato a seguir pode ser desconfortável para quem é vítima de abuso sexual ***
Tudo aconteceu quando Carolina tinha 17 anos. Ela conta que, na época, gostava de um garoto e acabou se envolvendo sexualmente com ele em uma festa – mas não da maneira que esperava. Como tinha ingerido álcool, Carolina afirma que estava alterada a ponto de dormir e vomitar, mas, ainda assim, o rapaz não respeitou o estado em que ela estava, estuprando-a e gerando lembranças desconexas em sua mente.
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Conforme explica a moça, a realização do que havia acontecido demorou um bom tempo para acontecer. “Geralmente a pessoa é abusada e sabe que é abusada. Eu demorei muito tempo para ter a certeza de que tinha acontecido. Sempre tinha lembranças muito vagas daquele dia e passei muito tempo dizendo a mim mesma coisas como ‘ele não faria uma coisa assim, é meu amigo’, até o momento em que percebi que, de fato, foi errado, foi abuso, foi estupro ”, relembra Carolina.
Quando percebeu a gravidade da situação e parou de tentar criar desculpas para o que havia acontecido, Carolina estava namorando outra pessoa, e, mesmo que ela confiasse nela, afirma que sua relação com o sexo já começou a mudar. “Eu comecei a me retrair demais, não queria fazer nada. Não queria mais transar com ele porque não me sentia segura fazendo nada, mesmo sendo uma pessoa que eu sei que nunca faria mal para mim”, explica, reforçando que, quando estava com o rapaz que a estuprou, também não achava que ele fosse capaz de algo assim.
Após o término desse relacionamento, Carolina passou a perceber uma influência ainda maior do trauma em sua vida amorosa. Ela relata que, recentemente, marcou um encontro com um rapaz e foi à casa dele, onde conversaram e, eventualmente, foram para o quarto dele. “Ele saiu para buscar água e, quando saiu, percebi o que estava acontecendo. Comecei a entrar em completo pânico pensando ‘eu preciso sair daqui’”, afirma a jovem.
Ela conta que, quando o rapaz voltou ao quarto, ela já não conseguiu mais conversar e passou a hora seguinte mexendo no celular para não interagir com ele. “Eu sabia que, se a gente começasse a interagir, alguma coisa poderia acontecer. Eu estava gripada, aí disse que ia embora, falei que tinha esquecido meu antibiótico em casa. Nunca mais falei com ele”, relembra, ressaltando que não se sente mal ao conversar com pessoas virtualmente, mas entra em pânico sempre que aparece a oportunidade de marcar um encontro.
“Mesmo com esse menino, eu estava querendo ficar com ele há muito tempo, só que, quando ia rolar, entrei em pânico. Na semana antes, eu passei todos os dias mal. Um dia antes, eu cochilei de tarde e acordei com uma crise de ansiedade, meu peito doía muito e eu pensava: ‘Como é que eu estou passando tão mal com uma besteira dessas?’”, desabafa ela. Segundo Livia, esse tipo de reação é algo comum para quem é vítima de abuso sexual ou assédio, e ela pode se manifestar de formas diferentes para cada pessoa.
“Pode ser que a figura masculina se torne um gatilho, pode ser que a escuridão se torne um gatilho. Tudo vai depender das condições pelas quais essa mulher passou, de como foi essa violência”, explica a psicóloga, ressaltando que, para algumas pessoas, o trauma torna a pessoa suscetível a relacionamentos abusivos e pode até fazer com que ela não sinta mais prazer sexual.
Além disso, Livia também afirma que essa reação não vale apenas para situações que aconteceram em um passado recente. Segundo ela, um trauma assim pode passar a se manifestar anos após um abuso, especialmente se a mulher guarda essa situação para si. “Essa possibilidade é grande, principalmente se essa menina não denuncia a violência ou se não é ouvida”, esclarece a psicóloga.
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O que pode ajudar uma vítima de abuso sexual a superar o trauma?
Apesar de já ter percebido os efeitos do trauma em sua vida, Carolina ainda não sabe como lidar com a situação. De acordo com Livia, denunciar o ocorrido e se abrir sobre o tema pode ajudar uma vítima de abuso sexual a espantar esse trauma – especialmente com acompanhamento psicológico. “Na terapia, trabalhamos várias questões associadas a essa violência. Fazemos um resgate da autoestima, do amor próprio, da possibilidade de relacionamentos saudáveis e do empoderamento dessa vítima”, afirma a especialista.