O que faz de uma mulher inspiradora? Seja pela sua sensibilidade materna, o cuidado com as outras , ou a dedicação de uma vida em prol de uma causa humanitária, durante o mês de março, o Delas conversou com “mulheres comuns” e que fazem a diferença na vida de outras mulheres para mostrar que todas nós podemos mudar, nem que seja um pouquinho, o (nosso) mundo.
Para fechar a série “ Mulheres inspiradoras ”, a última entrevistada veio de longe, lá de Luanda, na Angola, para contagiar as terras brasileiras com o brilho e a força de seus ancestrais através do corpo em movimento de Gabriela Cabo Verde, dançarina e coreógrafa, especializada em danças africanas.
Há cinco anos, Gabb, como também é conhecida, dá aulas de danças africanas e já participou de inúmeros projetos musicais. como clipes da cantora Elza Soares e do rapper Rincon Sapiência.
Através da dança, ela tem sido uma fonte de inspiração para muitas mulheres que querem, assim como ela, entrar em contato com seus corpos de maneira mais cuidadosa e entender como o movimento corporal pode ser capaz de mudar muito mais do que músculos.
Mulheres inspiradoras: Gabb Cabo Verde
O contato com a dança veio ainda menina. Aos 11 anos, Gabriela, que hoje tem 23, viu um banner do Centro Cultural José Bonifácio, que ficava perto de sua casa, na Zona Portuária do Rio de Janeiro, fazendo a propaganda de uma aula de dança afro gratuita e quis experimentar. Foi amor à primeira vista.
Aos 14, praticante de dança afro há três, ela conta que sentiu a necessidade de expandir seus conhecimentos para outros estilos musicais. “Criei um grupo com os amigos que dançavam comigo e, a partir daí, fomos conhecendo outras pessoas que também dançavam e nos interessando por novos ritmos”. Foi nessa época que ela entrou em contato com o hip hop , dancehall , afro house e kuduro .
Apaixonada pela dança de raízes africanas, Gabb Cabo Verde sempre sentiu que essa ligação era intensa e especial, mas só em 2016 ela conta que entendeu o motivo desse laço tão forte, quando finalmente descobriu sua origem.
“Nunca falei muito sobre meu pai com minha mãe. Ele nos abandonou quando eu tinha 4 anos e minha mãe evitava o assunto. Mas um dia, arrumando umas coisas antigas, achei fotos dos dois que me despertaram curiosidade. Foi então que ela me disse toda a verdade”, conta.
Gislene Evangelista, mãe da dançarina, conheceu um angolano quando morava em Goiânia, sua terra natal. Os dois foram morar em Luanda, na Angola, e Gislene, grávida teve o bebê lá. A vida no país africano, contudo, não durou muito. A família precisou se mudar às pressas, porque o local estava em guerra, com chacinas acontecendo nos bairros próximos.
Aos oito meses, Gabb fugia com os pais para Moçambique. De lá, eles ainda se mudaram para Salvador e Recife. Mas só quando ela tinha dois anos eles finalmente chegaram no Rio de Janeiro, onde foi registrada, em Niterói.
“No início, quando soube de tudo, fiquei em choque. Foi uma mistura de sentimentos. Claro que fiquei chateada com minha mãe por ter escondido isso durante tanto tempo. Depois entendi os motivos dela por não ter dito a verdade e hoje fico muito feliz de saber sobre a minha história, minha raíz.”
Quebrando padrões
Descobrir a conexão direta com a cultura africana fez com que a dançarina entendesse o motivo pela paixão que sente pelo ritmo que, não só lhe deu uma oportunidade profissional para seguir, como também influenciou totalmente a sua relação com seu corpo e a ajudou a entender seu lugar como mulher e negra.
Ela conta que quando eu tinha 8 anos, estudava em um colégio onde era comum que as turmas fizessem apresentações de danças como parte do projeto cultural da escola. Apesar de sempre participar dos ensaios e dançar muito bem, ela nunca era escolhida para a apresentação oficial pela professora.
Um dia, com o apoio da mãe, Gabb chegou a ir a um dos eventos escolares com o figurino da apresentação, pronta para dançar na Festa da Primavera. A professora que organizava o projeto, no entanto, barrou sua participação. “Naquele dia ela me puxou de canto e perguntou o que eu estava fazendo ali e disse: ‘Do que adianta você dançar como uma bailarina, se você não tem um corpo de bailarina?’”.
A frase da professora deixou Gabriela arrasada, e a fez voltar para casa chorando. A situação do colégio ficou na memória e, mesmo depois de crescida, ela percebeu que continuou lidando com as mesmas falas.
“Conforme fui crescendo, me profissionalizando com a dança, fui percebendo que em audições para participar de vídeoclipes e musicais, apesar de as pessoas ficarem impressionadas com meu talento, acabavam me dizendo que eu não tinha o perfil buscado por elas.”
O tal “perfil” sempre acabava sendo preenchido por mulheres com corpos esbeltos, sarados, onde ela não se enquadrava. “Sempre me perguntava o motivo pelo qual as pessoas querem criar um ideal de corpo para se dançar. Fazendo isso elas se esquecem que a dança é um lugar de autoconhecimento. Acho engraçado como elas se preocupam em formar um padrão, em querer modificar os corpos sem ao menos conhecê-los”.
A dança e a descoberta como potência
Por um tempo, a pressão estética e padronização racial chegaram a influenciar a vida de Gabb. “Sempre tive consciência de que algumas coisas seriam difíceis para mim. Já passei por fases em que queria ser branca, ter cabelo liso… Sempre fui a menina mais ‘zoada’ do colégio e hoje eu entendo o motivo de eu sempre ser afogada na piscina do acampamento da escola, sendo que eu não sabia nadar.”
Sendo sempre “a mais étnica” entre suas amigas, ela conta que era considerada “feia” pelos colegas, e que, com o tempo, foi entendendo o que aquelas definições e atitudes significavam.
Você viu?
“Fui entendendo meu lugar, entre aspas. A dança ajudou a me descobrir como potência. Quando vi mulheres dançando dancehall foi a primeira referência de como o corpo pode ser uma potência em geral e do feminino como potência. Isso me deu um mega start !”
O dancehall é um estilo musical popular jamaicano, que nasceu no fim da década de 1970. A dançarina conta que se identificou com o ritmo pela questão corporal empoderada que ele apresenta e pelo espaço dado às mulheres, as dancehall queens (rainhas do dancehall , em tradução livre), que, com diferentes padrões corporais, protagonizam competições com movimentos expressivos encantadores e de tirar o fôlego de quem assiste.
Do interesse pelo dancehall , Gabb começou a pesquisar sobre passos, costumes e cultura dos praticantes do estilo, conhecendo também pessoas e outras danças afro-urbanas, como azonto e afrobeats - esse último, seu preferido, o qual se identifica e prática.
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Celebre seu corpo
Cansada de tentar se adequar aos moldes sugeridos, em 2015 ela resolveu criar um projeto de dança chamado “Celebre seu corpo”, uma “oficina tecno-criativa em danças negras, que trabalha a corporeidade, sociabilidade, autocuidado e autoestima”, como ela mesma define.
Além disso, a consciência corporal e a autoestima também são trabalhadas através da dança. “É uma maneira de autocuidado, de aceitar o corpo do outro e o nosso”, afirma. A ideia é propor uma relação de amor com o próprio corpo, ocupando-o e ocupando o espaço em que ele se movimenta.
Gabb também está à frente de outro trabalho, que envolve levar a cultura da africana para ambientes onde ela geralmente não é comum. A convite do grupo de diretores criativos MOOC, ela está ministrando aulas de Afrobeats em unidades da academia Smart Fit, em São Paulo.
“Quando as pessoas ouvem falar de dança afro elas só pensam na referência religiosa, nos orixás… gente, a África é muito grande. As pessoas precisam entender e normalizar essa cultura, que já foi muito marginalizada.”
“Ative seu ziriguidum”
Para Gabb, o ritmo africano é muito mais do que um som que entra nos ouvidos e distrai. Há uma história por trás da vibração sonora que faz com que o corpo se movimente. E é essa ideia de dança que ela tenta passar aos alunos.
Além das aulas e coreografias, o estilo de vida que decidiu levar, que envolve autocuidado e empoderamento feminino, acaba sendo mais um motivo para que muitas pessoas se inspirem. Pensando nisso, o Delas questionou a dançarina sobre como ela lida com esse “poder” e como vê o momento que as mulheres vivem atualmente. Confira as respostas.
- Delas: como você acha que sua história pode inspirar outras mulheres e como você lida com essa influência que tem?
Acho que por partir de um ponto muito comum, que todas nós sofremos, que é a dificuldade de aceitação de quem e como somos, posso contribuir com outras mulheres porque passei a questionar e não aceitar o que as pessoas querem dar pra gente. Quando olho minha trajetória, vejo que dei um start e percebi que eu devo decidir o que fazer. Não é fácil, mas eu escolhi isso.
Em relação à influência, confesso que ainda é engraçado. Recebo algumas mensagens de algumas pessoas porque sempre compartilho sobre minha vida e meus pensamentos de uma maneira muito natural, então quando vejo que outras pessoas se identificam, eu fico muito surpresa e muito feliz.
- Delas: você teve alguma mulher para se inspirar?
“Minha mãe é uma mulher muito inspiradora. Sempre esteve ali para me proteger, aguentou sozinha muitas coisas e sempre seguiu em frente.
Também me inspiro em Giovana Xavier, que é uma intelectual, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, coordenadora do Grupo Intelectuais Negras. Dei aula para ela e entrei em contato com o trabalho que ela tem. Foi com ela que aprendi sobre posicionamento e lugar de fala. Como dançarina, ela me inspira a ser também uma ‘intelectual em movimento’.
A [dançarina francesa] Maryam Kaba também é uma inspiração. Foi com ela que aprendi a importância de ter uma alimentação saudável. Conheci ela quando trabalhei na marca dela, a Afrovibe Dance Workout. Lá eu acompanhei ela, me formei pela modalidade fitnessclass com danças africanas e, desde então, ela tem todo um cuidado comigo, de me escutar, me acolher e sempre me colocou muito pra cima.
Outra mulher é a Nayara Barros, que é minha melhor amiga e também fez parte de todo o meu processo de ser saudável quando quis cuidar melhor do meu corpo, também me ajudou a entender o que é amizade, a importância de sermos objetivos, de falarmos a verdade, sermos sinceros e leais”.
- Delas: como você analisa o momento em que as mulheres vivem hoje na sociedade?
“Acho que é um momento propício, mas ainda assim vejo que precisa de mudanças. Temos espaço em muitos lugares, mas sempre temos que ‘dar aula’ sobre como devemos ser tratadas, quão importante é estar igual, em conjunto. Isso é muito cansativo, apesar de ser benéfico e positivo.
É muito chato ter que falar ‘Olha não é assim que se fala’, por isso é cansativo. É benéfico porque assim a pessoa vai entender que as coisas precisam mudar. E é positivo porque essa pessoa também vai passar esse pensamento para outras e quando isso se espalha, todo mundo ganha. Sinto que é um momento de atuação e atenção”.
- Delas: qual a mensagem que você gostaria de passar às mulheres?
“Acho que o slogan que criei para meu projeto ‘Celebre seu corpo’ pode ser uma boa mensagem. Antes de assumir meu nome artístico, meu apelido era “ziriguidum”. E eu gosto muito dele porque é uma expressão que remete aquilo que vibra, que toca, que chama atenção, então aproveitei e usei nessa frase, que é: ame a sua luz, ative seu ziriguidum e celebre seu corpo”.
Assim se encerra nossa série de entrevistas com mulheres inspiradoras . Para conferir matérias anteriores, clique aqui .