“O que você está fazendo para mudar o mundo?”. Assim, de cara, a pergunta soa dura e pede uma reflexão. Para te ajudar a pensar sobre essa questão, o Delas está contando histórias de mulheres inspiradoras que fazem, cada uma a sua maneira, o que podem para deixar o mundo um lugar melhor.
Líder comunitária, maratonista, costureira e voluntária, Neide Santos é a entrevistada da vez da série " Mulheres inspiradoras ". Ela é uma dessas pessoas iluminadas que está aí para te mostrar que tempo e dinheiro se tornam relativos quando você faz as coisas com amor e dedicação.
Aos 59 anos, a baiana de Porto Seguro radicada em São Paulo é um exemplo para tantas mulheres e crianças que fazem parte do seu projeto social no Capão Redondo. Conheça sua história:
Mulheres podem tudo, inclusive correr
“Se essa velinha está correndo com essa maluquinha, nós também podemos”, foi o que pensaram as primeiras mulheres a se unirem a Neide para correr na década de 1990. Ao verem a costureira do bairro em seu traje esportivo, treinando ao lado de uma senhora de 60 anos, um grupo se mobilizou e quis se juntar às duas.
A senhora era Maria Gonçalves, a primeira mulher a ter a influência de Neide no mundo da corrida. “Foi ela quem me pediu para treiná-la. Disse que seu sonho era correr a São Silvestre, porque era a única corrida que ela conhecia. Eu aceitei, tudo voluntariamente, e logo outras mulheres quiseram correr com a gente”, conta a maratonista, que, na época, já participava de maratonas e corridas de rua.
Maria não só conseguiu correr na prova mais famosa e tradicional do País, como também, em 2012, foi a única mulher que, aos 75 anos, conseguiu cruzar a linha de chegada da Maratona Internacional de São Paulo, tudo graças ao apoio de Neide.
Em 1999, além de Maria, o grupo já somava 30 mulheres que se reuniam sob os cuidados de Neide para correr no Parque Santos Dias, que fica no Capão Redondo, comunidade onde vivem, na Zona Sul de São Paulo. Foi a partir daí que ela decidiu organizar o Projeto Vida Corrida.
A iniciativa, que era para ter duração de 15 dias, completou 20 anos em janeiro de 2019. “Uma das coisas que mais me chamou atenção, na época, era ver que o número de mulheres que fazia alguma atividade física era pequeno”, lembra ela. O incômodo levou a costureira a ter vontade de mudar essa realidade.
“Não só na minha comunidade, mas na maioria das periferias, é normal chegar o fim de semana e o homem ir jogar futebol. Eles, geralmente, também levam os filhos meninos. E o que a mulher da comunidade faz? Fica cuidando da casa, limpando, passando, lavando, fazendo as coisas que não conseguiu dar conta durante semana, porque teve que trabalhar, e as meninas acabam ajudam a mãe nessas tarefas”, afirma.
Foi então que a maratonista se deu conta de que poderia oferecer lazer e um estilo de vida saudável a essas mulheres. “Eu sempre me preocupei com as mulheres da comunidade. O que a comunidade não me ofereceu eu vi que eu poderia oferecer a elas. Então, mesmo com muita gente falando que não ia conseguir, resolvi insistir e o projeto está aí, até hoje.”
Mudar o mundo mudando o entorno
Neide conta que o Projeto Vida Corrida nasceu pra mudar a realidade de uma comunidade. “Todo mundo pode mudar o mundo de alguém. Eu não posso mudar o mundo todo, mas posso mudar o meu entorno. A única coisa que eu tinha para ajudar minha comunidade era a corrida. Pode soar piegas ou clichê, mas o esporte mudou a minha vida, e eu achei que poderia mudar a de muitas pessoas.”
Atualmente, o projeto atende 320 crianças e 348 adultos do Capão Redondo, sendo a maioria composta por mulheres. Com 17 membros na diretoria, todos mulheres, a ONG é administrada e gerida pela força feminina da comunidade.
As atividades oferecidas são atletismo, para quem já pratica corrida de rua de 5 km a 42 km; atletismo lúdico, para crianças; e treino funcional, para iniciantes. “Só vai para a corrida quando a pessoa estiver bem condicionada”, afirma Neide.
As aulas são ministradas por oito professores formados em educação física. “Ainda sonho em ter um quadro de professores 80% composto por mulheres, mas é difícil, porque a maioria dos formandos no curso são homens, infelizmente”, pontua.
Através do projeto, além de impactar no estilo de vida de centenas de moradores do bairro, Neide já conseguiu levar oito mulheres da comunidade para correr no exterior e conta com o patrocínio vitalício da Nike - que só tem esse tipo de acordo com três frentes: Michael Jordan, Ronaldo Fenômeno e o Vida Corrida.
Pular, cair e levantar
No início do projeto, quem via Marineide Santos Silva, a porto-segurense que chegou em São Paulo com apenas 6 anos, não imaginava que ela chegaria tão longe. Adotada, ela conta que assim que veio para a capital paulista viveu em uma oficina de costura onde foi exposta a situações de trabalho escravo e abuso sexual.
“Vi muitas pessoas questionando o que uma nordestina, que veio para São Paulo atrás de uma vida melhor e que enfrentou muitas barreiras, está fazendo. Mas uma coisa que o atletismo me ensinou foi a pular, cair e levantar”, afirma.
A paixão pelo esporte é de longa data. Começou há 45 anos, quando tinha apenas 14, e participava de um campeonato no colegial. “Uma menina do revezamento 4x100 não tinha ido e, como eu corria bem em quadra, meu professor pediu para substituí-la”, conta.
Naquele dia, ela ganhou uma medalha pela primeira vez e, esse fato foi responsável por mudar sua vida para sempre. “Eu nunca tinha ganhado nada novo, nada para mim. Tudo o que eu tinha era sempre usado, de alguém. Eu falo hoje que, eu não sabia na época, mas aquela medalha me empoderou. Depois disso, eu nunca mais parei de correr.”
Sonho olímpico
Como toda esportista, Neide tinha o sonho de se tornar uma atleta olímpica. “Meu professor sempre dizia que eu tinha condições de ser uma atleta de alto rendimento. E eu até cheguei a treinar para isso, mas nas décadas de 1970 e 1980 precisei trabalhar para ajudar no sustento da minha família e meu sonho se foi.”
Você viu?
Mesmo sem poder se dedicar ao esporte como queria, Neide viu mulheres correrem pela primeira vez na São Silvestre, em 1975. O marco rendeu um estalo: “Se elas podem correr na rua, eu também vou correr”.
Foi assim que ela partiu para a nova modalidade e se revezava a corrida de rua
entre o trabalho de costureira, a maternidade e, depois, o trabalho como líder comunitária.
O esporte fez com que ela chegasse a ganhar medalhas, mas, mais do que isso, fez com que ela tivesse o poder de transformar outras vidas através da sua paixão pela corrida.
E, como um presente por tudo o que fez e está fazendo, em 2016, o universo deu a ela uma nova oportunidade de realizar seu sonho, mas de um jeito diferente do que tinha planejado. “Além de poder assistir aos Jogos Olímpicos sendo sediados no meu país, tive o privilégio de participar do revezamento da tocha olímpica”.
O momento ficará eternizado na memória da corredora que, não bastasse toda a emoção de estar no evento e do que aquela situação representa em sua vida, ao segurar a tocha, Neide pôde ouvir das pessoas ao seu redor o nome de um de seus três filhos, vítima de violência do bairro, assassinado por um menor durante um assalto.
“Júlio Cesar Agripino dos Santos estava nas Olimpíadas”, disse. Foi a morte do filho, que quase fez com que ela desistisse do sonho e do projeto, também a fez repensar e incluir crianças da comunidade na ONG para que elas ocupassem seus tempos ociosos.
"Sonho que se sonha junto é realidade"
Há quatro anos, Neide deixou o emprego de costureira e passou a dedicar todo seu tempo ao Vida Corrida, graças ao apoio de um empresário que a ajuda financeiramente. Todos os dias ela é a primeira a chegar na sede do projeto social para fazer o acolhimento de quem vai lá pela primeira vez.
“[A ONG] não pode perder o lado humano, que é o de acolher a mulher quando chega por lá. Então eu sempre faço questão de recebê-la e perguntar o que a levou e quais os objetivos dela”, conta. Além disso, ela também costuma fazer outras ações sociais fora do projeto e, claro, continua correndo. “Não fico fora de uma corrida”.
Neide não só ensina a correr, como também ensina a sonhar. E se o sonho for partilhado com outras pessoas, maiores são as chances de se tornar real. A maratonista falou ao Delas sobre suas inspirações para conseguir trilhar essa trajetória e como lida com a influência que tem na comunidade onde vive. Confira:
- Delas: você acha que a sua história pode inspirar outras mulheres? Como você lida com essa influência?
“Eu acredito que minha história não só impacta a vida das mulheres da comunidade, como impacta a vida de outras [mulheres] quando me dão o poder da voz.
Hoje tenho uma responsabilidade muito grande na comunidade, que é a de trazer o melhor para essas mulheres, sou uma formadora de opinião porque elas se inspiram em mim. Por isso, hoje, minha preocupação com meu caráter e idoneidade é levada muito em conta.”
- Delas: você também teve alguma mulher para se inspirar?
“Eu conheci muitas mulheres que me inspiraram e que foram fantásticas na minha vida. Uma delas é Alice Gismonte, que me fez enxergar que o que eu fazia era extraordinário e que eu precisava compartilhar com outras pessoas.
E também a promotora pública Maria Gabriela de Prado Mansour, que só por ser uma promotora mulher já me inspira. Além disso, foi ela quem me deu voz e me encorajou a falar sobre os abusos que sofri sem sentir vergonha e sem ter medo de ser julgada. Ela me fez enxergar que assim eu iria impactar outras mulheres a ter coragem de denunciar situações semelhantes.
Vivi numa oficina de costura e, nessa oficina, eu fui submetida a trabalho escravo e abusada sexualmente por várias vezes. Convivi com isso por anos e anos, porque as pessoas não acreditavam que meu cuidador faria algo de mal a mim.
Quando eu conheci Gabi, que é assim que eu a chamo, já que ela é uma amiga minha, que vai na minha casa e vivemos em família, fui encorajada a não ter vergonha de falar sobre isso e eu só falei sobre meu abuso depois que ela me deu a voz.
Além disso, me inspiro em todas as ‘Marias’ que, assim com eu, perderam seus filhos e resolveram reescrever sua história”.
- Delas: como você analisa o momento que as mulheres vivem hoje?
“Hoje vejo que as mulheres estão mais conscientes do seu papel e lutando com mais afinco pelos seus direitos. Mas o futuro ainda está distante do que almejamos. Vejo que essa igualdade que procuramos, de termos o mesmo reconhecimento dos homens, eu não vou viver para ver, mas acredito que chegará.
Eu, com 59 anos, tento empoderar mais e mais mulheres para que elas celebrem essa igualdade em todos os espaços que temos que conquistar.”
- Delas: qual é a mensagem que você gostaria de passar às mulheres no mês em que é celebrado o Dia Internacional da Mulher?
“‘Acreditar nos seus sonhos’. Todo mundo fala isso, mas é a verdade. Tem uma frase que gosto muito, do Raul [Seixas], que é: ‘Sonho que se sonha só, é só um sonho só. Mas sonho que se sonha junto é realidade’, e eu acredito que se todas nós sonharmos o mesmo sonho, ele será real."
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Para mais histórias de mulheres inspiradoras como essa, acompanhe nossa próxima reportagem da série na sexta-feira que vem (29).