Em 2015 um escândalo sacudiu a comunidade negra estadunidense: o caso Rachel Dolezal. Antiga presidente da NAACP (Associação Nacional Para o Progresso de Pessoas de Cor), tradicional e importante associação para luta de direitos de pessoas de cor* naquele país, Dolezal passou anos fingindo que era negra, às custas de muita permanente, box braids , bronzeamento artificial e base em tons escuros.
Nascida loira de olhos verdes, filha e neta de pessoas brancas, Dolezal declarou, ao ser desmascarada, que se identifica como negra. Em outras palavras, Rachel se considera uma pessoa trans-racial. A história deu origem ao documentário "O Caso Rachel Dolezal (2018)", disponível na Netflix, e é sempre evocado quando surge um novo caso de pessoas brancas que alteram sua aparência na tentativa de aparentar pertencer a uma etnia que ela não pertence.
Outro caso famoso de pessoa que se considera trans-racial é o da modelo alemã Martina Big , que fez tratamento com injeções de melanina para escurecer a pele, colocou preenchimento nos lábios e agora se tornou “a maior negra que você respeita”, com direito a fazer comentários sobre o Black Lives Matter e tudo.
Esta semana o termo transracial ressurgiu na mídia por causa de Jimin London, que se submeteu a 18 cirurgias para se parecer com Park Jimin , do grupo coreano BTS. London - se identifica como uma pessoa trans não-binária e agora, trans-racial. Em entrevista ao site TMZ, disse: "Ser transexual é o mesmo que ser transracial porque você nasceu no corpo errado".
Na condição de pessoa cisgênera, não me compete julgar a identidade de gênero de ninguém. Porém, como cis-aliada e pesquisadora de gênero e sexualidade, no entanto, tenho a impressão de que London está um pouco equivocade sobre essa questão de corpo errado, pois o debate hoje sobre transexualidade não fala em corpos errados, mas em pessoas desconfortáveis com a identidade de gênero que lhes foi atribuída a partir de sua genitália.
Além disso, como acrescenta nosso repórter Miguel Trombini - consultado para redação desta coluna - cada vivência trans é única e existem pessoas trans que sentem a necessidade de mudanças corporais e outras não. Então mesmo não sendo o propósito desta coluna discutir transgeridade, creio que seja importante pontuar esse aspecto para o que vamos falar a seguir: falsa simetria.
Falsa simetria é um conceito que expõe algumas equivalências que podem parecer verdadeiras em termos retóricos, mas que não resistem a cinco minutos de argumentação baseada em dados. Um exemplo clássico de falsa simetria é “daqui a pouco vai ser errado ser branco/homem/hétero”, que sempre surge quando um caso de racismo, machismo ou homofobia vem à tona.
Desculpa se você se sente mal quando pessoas pretas, mulheres ou LGBTs evidenciam que você ocupa um lugar de privilégio que não depende da sua trajetória de vida individual. Esse privilégio é o de não ser assassinado, violentado ou discriminado pela cor da sua pele, gênero ou orientação sexual. As estatísticas de mortes de pessoas pretas, feminicídios ou por homofobia estão aí pra comprovar.
Você viu?
Um caso famoso de falsa simetria foi a declaração da cantora Mallu Magalhães no programa Encontro : “Essa é pra quem acha que branco não pode cantar samba” . Posso ter perdido essa aula de História, mas até onde me recordo, nunca houve nada que brancos não pudessem fazer nesse país, vide os casos de fraudes nas cotas raciais para ingresso nas universidade e em concursos públicos .
Todo esse preâmbulo é pra dizer uma coisa: trans-racial não existe, é mais uma dessas falsas simetrias, que ao mesmo tempo desqualifica pessoas trans e pessoas racializadas. Porque pessoas brancas que se sentem pertencentes a outra etnia, diferente de pessoas trans e pessoas racializadas, não passam a vida sendo alvo de violência física e psicológica.
Michael Jackson passou a vida dizendo que o clareamento de pele ao qual se submeteu era em razão do vitiligo , mas mesmo depois de morto segue acusado de ter tentado virar branco. Ludmilla, ao tomar partido no caso de racismo sofrido por João Luiz, no BBB21 , foi acusada de não aceitar seu cabelo natural por usar laces.
Camilla de Lucas, vice-campeã do reality, teve que vir a público explicar que usa laces e tranças porque gosta de mudar de estilo de cabelo com frequência , não por não gostar do seu cabelo natural. E todo dia uma pessoa negra que não é famosa precisa se explicar para alguém porque optou por alisar o cabelo.
Sou uma mulher negra de pele clara, filha de mãe branca e pai negro. Nunca houve um único dia na minha vida que eu não soubesse que não era branca. Porque quando você é uma pessoa racializada, não importa como você se sente ou se o seu avô era europeu. O que importa é a sua aparência.
É por isso que considera-se pardo para fins estatísticos e de direitos sociais quem tem características físicas de povos africanos e/ou ameríndios (indígenas). Ou seja, não importa a mistura que você traz no sangue, mas o que as pessoas veem quando olham na sua cara.
Em países colonizados - e neste caso estou me referindo à experiência americana - afrodescentes e populações originárias não tiveram a opção de se identificar mais com a cultura branca/europeia/católica. Foi uma imposição acompanhada do aniquilamento da cultura desses povos que ainda não se encerrou.
Nós negros não sabemos de onde vieram nossos ancestrais porque Ruy Barbosa, tataravô da atriz que leva o mesmo sobrenome , mandou queimar todos os registros do tráfico negreiro e escravidão no país . Fomos alvo de políticas de branquemento que distribuíram terras para pobres vindos da Europa, enquanto os pobres daqui, ex-escravizados, foram deixados à própria sorte.
Crescemos com uma mídia totalmente branca, idolatrando uma apresentadora de televisão que no auge da fama declarou que graças a ela as pessoas sabiam que não tinha só "mulata e negro no Brasil" . Convivemos hoje com o apedrejamento de terreiros de religiões de matriz africana , calúnias graves sobre militantes negros e tentativas de forjar relação entre a nossa cultura ancestral com assassinatos.
Os povos indígenas seguem sendo exterminados pelo latifúndio e, não obstante, sua luta pela demarcação de terras, segue sendo deslegitimada por pessoas que querem definir que é ou não “índio de verdade”, com base em usar ou não celular.
Dentro deste contexto, trans-racial, ao que parece, é mais uma face do privilégio branco. Não parece ser coincidência que no momento em que pessoas racializadas (ou seja, não-brancas) começam a ter mais acesso a direitos sociais e espaço de fala em lugares públicos, pessoas brancas comecem a se sentir pertencentes a um grupo no qual elas não têm lugar de fala.
O que me preocupa é que isso pode ser instrumentalizado para tentar invalidar a luta das pessoas transexuais - que não se beneficiam em nada ao publicizar uma identidade de gênero desviante do padrão. Ao contrário: estas pessoas se expõem ao risco de morte para ser quem são. Por esse motivo, a ideia de trans-racial é duplamente desrespeitosa. Que não sirva para nos fazer cair em mais uma falsa simetria.
*Pessoas de cor
é um termo comum na literatura étnico-racial nos países de língua inglesa. Diferente do sentido pejorativo que a expressão adquire ao ser traduzida, a opção por usar pessoas de cor visa incluir na classificação, além dos afrodescendentes, pessoas de origens étnicas não branca, como indígenas, árabes e latinoamericanos.