Cara Maria da Graça,
Tomo a liberdade de me referir a você por seu nome de registro, apesar de você ainda não me conhecer, você faz parte da minha vida desde 1986. Quando o Xou da Xuxa estreou, dia 30 de junho de 1986, eu estava aprendendo a ler. Lua de Cristal foi o primeiro filme que vi no cinema, sabe? Quando a Sasha nasceu, em 1998, eu estava entrando na faculdade. Quando sua filha ficou noiva , este ano, o site em que trabalho publicou a notícia.
Você fez parte da minha vida e vai continuar fazendo, pois, você é a Xuxa e tem certas pessoas que são imunes ao cancelamento. Contudo, tenho que te dizer fiquei INDIGNADA tal qual Gil do Vigor, do BBB21 (favor ler pensando no belíssimo sotaque pernambucano). Falei do Gil porque ele é negro, como eu e como a maioria das pessoas que lotam as prisões desse país.
Eu sou contra fazer testes em animais também, sabe, mas a gente não pode esquecer que estamos falando de vidas humanas. Não dizem que “todas vidas importam”? Pois é. Num exercício supremo de boa vontade, motivado pela relação emocional que eu tenho contigo, eu acredito que você não tenha tido intenção de propor eugenia em pleno século 21 e que tenha se atrapalhado com as palavras. Mas, veja bem, esse pano eu não vou passar não.
O que esse episódio infeliz mostra é que você sabe pouco sobre vacinas e prisões. Coisas que, dada a natureza do meu ofício, eu sei um pouco mais. E, como sempre cobram das mulheres negras que sejam didáticas e ensinem aqueles que não sabem, eu te ofereço essa carta com algumas informações sobre esses assuntos.
Bom, para começar, vacinas são sempre testadas em seres humanos, mas tratam-se de cobaias voluntárias. Foi assim que o Butantan conseguiu desenvolver a vacina. Viva a ciência e viva o SUS! A essa altura eu acredito que você já deve estar sabendo que quem usava prisioneiros como cobaias humanas eram nazistas. Não é ético, sabe. É cruel.
Infelizmente, para as vacinas chegarem na fase de testes em seres humanos, precisa necessariamente testar em animais antes. É cruel, mas no meu entendimento de que toda a vida importa, a preservação da nossa espécie prevalece. E, desculpa te avisar, mas para você também, Xu. Você é mãe, eu tenho certeza que nenhuma vida vale mais para você que a da Sasha.
Você viu?
Felizmente sua filha não vive diariamente exposta ao vírus, como é o caso dos filhos, maridos e irmãos das mulheres que fazem fila e passam por visitas vexatórias para ver seus entes queridos nas prisões.
É por isso que se testa em animais. Para evitar mães enlutadas devido a um vírus mortal e de uma política de saúde catastrófica, pois genocida. Não vou falar de necropolítica porque é um conceito complexo e eu suponho que a essa altura você já deve ter ouvido falar. Então vamos falar de prisões.
No seu pedido de desculpas, você menciona uma figura muito comum no imaginário popular a respeito das prisões: os violadores de crianças. Mas, ao contrário do que se supõe, assassinos e estupradores são minoria no sistema carcerário brasileiro. A maioria está presa devido a crimes relacionados a tráfico de drogas, uma economia informal muito rentável que abraça a juventude preta e pobre cada dia mais cedo.
Além disso, quase 30% dos presos no Brasil não foram condenados. Não, você não leu errado, é um absurdo mesmo. Sou de Humanas, então não vou fazer essa conta, mas 30% de 759 mil presos é gente pra caramba.
Sim, existem os condenados que realmente cometeram crimes. Todos eles são filhos de alguém. Isso porque eu nem mencionei as mulheres presas , muitas delas mães, grávidas, parindo e amamentando em celas, muitas vezes perdendo a guarda dos seus filhos. Apesar de corresponderem apenas a 8% da população carcerária no Brasil, esse número mais que dobrou nos últimos 10 anos. Eu não acho isso certo. Acho uma tragédia e creio que, diante destas informações, você também.
Sabe, Xu, eu não quero que você seja presa e não te desejo nada de ruim, porque eu não acredito que prisão resolva. Eu acredito na justiça restaurativa e na política anti-prisional. Eu não acredito em punição, mas em reparação. E eu acho que você tem toda condição de reparar o erro que cometeu apoiando a luta anti-cárcere, usando a sua imagem para denunciar os horrores das prisões e pensar em como quem errou pode compensar quem foi machucado.
Você tem condições financeiras e prestígio o suficiente para fazer isso. Se não sabe por onde começar, eu te recomendo acompanhar os trabalhos de algumas mulheres incríveis sobre isso: Angela Davis , Suzane Jardim e Aline Passos . Elas podem explicar melhor sobre abolicionismo penal e a situação das prisões. Também recomendo apoiar o " Nós, Mulheres da Periferia " e as "Mães de Maio" e muitos outros coletivos de mulheres negras mães, esposas, irmãs, avós de presos. Apoiar projetos de ressocialização de egressas do sistema prisional pode ser uma boa também.
Você foi a primeira pessoa que me ensinou que “tudo pode ser, só basta acreditar”. Eu acredito que essa carta vá chegar até você e tocará seu coração. Você tem recursos e tem a sua imagem. Você tem poder para fazer a diferença. Quando isso acontecer, esteja certa de que a fábrica de panos estará novamente aberta para você.
Cordialmente,
Fhoutine