Lipedema é erroneamente relacionada à obesidade; entenda a doença
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Lipedema é erroneamente relacionada à obesidade; entenda a doença


Quando a farmacêutica Gabriela Pereira, 41, tinha 15 anos, ela estava na casa de algumas amigas da escola assistindo televisão. Ao sentar no sofá e dobrar as pernas, a irmã de uma das colegas disse: “Nossa, a Gabi tem celulite na perna”. Naquela época, ela nem mesmo sabia o que significava ter celulite — e nem o que era lipedema, uma doença que provoca acúmulo de gordura e impacta mais mulheres.

Depois da observação, todas as amigas de Gabriela começaram a dobrar a perna para ver se as “bolinhas”, como chamaram a celulite na época, apareciam também na perna delas, o que não aconteceu. Daquele dia em diante, a farmacêutica começou a reparar mais em suas panturrilhas e percebia que elas eram diferentes, só não sabia como.

Foi também aos 15 anos que a nutricionista e influenciadora digital Gabriela Martinez, 31, se deparou com o aspecto diferente das pernas. Na época ela já frequentava a academia e pensava que a celulite existia por inadequação do treino e da alimentação. “Sempre fui saudável, mas minha perna não ganhava massa muscular. No decorrer da vida eu sempre soube que tinha alguma coisa na minha perna, mas achava que era minha genética”.

"Desde que me lembro por gente, minhas pernas já eram mais grossas do que as das minhas amigas. Mas comecei a sentir incômodo no fim da faculdade, com 23 anos", lembra Lyvia Nascimento Salem, 32, dermatologista. Nessa época, ela passava muito tempo em pé e sentia muito cansaço. Dois anos depois ela iniciou a residência médica, o que piorou o quadro.

“Não me alimentava direito e nem bebia água, mal ia ao banheiro. Minhas pernas foram aumentando e senti mais dores”. Lyvia chegou a ganhar um pouco de peso durante um intercâmbio, mas conseguiu emagrecer, exceto na parte das pernas.


“Elas continuaram grossas. Meu corpo ficava desproporcional, porque sempre fui magra no tronco e as pernas eram maiores. Há dois anos, tive um emprego em que ficava dez horas de pé, com salto, e sentia muita dor e inchaço, queimava”, lembra. O aspecto das pernas fizeram com que a dermatologista tivesse vergonha. Para escondê-las, ela vestia apenas saias longas e calças.

Pereira se lembra do inchaço e das dores nas pernas, que a acompanhavam sempre no fim do dia. “Minha perna sempre dobrava de tamanho quando eu andava de avião ou comia mais sal, mas nunca entendi de onde isso vinha já que sempre me alimentei bem e mantinha uma rotina de exercícios físicos”.

Menezes sentiu as mesmas dores quando fez 30 anos, o que a fez buscar por respostas no Instagram. Enquanto isso, Pereira reclamava tanto das dores que o marido jogou os sintomas no Google. Foi assim que as duas chegaram ao nome lipedema.

“Meu marido me mandou um link dizendo que eu tinha aquilo. Abri só depois de dois dias e chorei enquanto lia, pensando que tinha aquele negócio. Tudo que eu passei, desde o dia da panturrilha até ali, fez sentido. Foi como se tivesse colocado todos os pingos nos is”, conta Pereira. No caso de Menezes, o nome veio por uma seguidora no Instagram. “Quando comecei a ler vi que nem precisava de um médico. Eu já sabia que tinha aquilo só de ler”.

No caso de Lyvia, a resposta foi encontrada em um site de Portugal, enquanto ela fazia pesquisas para encontrar uma meia compressiva que diminuísse o inchaço das pernas. A primeira sensação que ela teve foi de alívio por poder dar nome aos incômodos.

“Foi um divisor de águas nos primeiros dias. Ao mesmo tempo que foi libertador saber que era uma patologia, e não culpa minha, também foi desesperador porque a doença é potencialmente progressiva”, descreve.

Além dos impactos físicos, as três definem o lipedema como um sentimento de culpa que não passa. Isso porque, sem explicações, elas começam a culpar os próprios hábitos pelas dores e pela estética das pernas. “Por eu ser nutricionista, sempre recebi uma pressão externa muito forte. As pessoas achavam que eu mentia quando dizia que não comia chocolate ou que me alimentava bem”, lembra Martinez.


O que é lipedema?

O cirurgião plástico Fábio Kamamoto, considerado pioneiro no tratamento cirúrgico de lipedema no Brasil, explica que a doença surge por meio do acúmulo e crescimento de células gordurosas em regiões específicas, como braços, coxas, joelho e pernas.

Uma em cada dez mulheres no mundo possuem lipedema, sendo que no Brasil 5 milhões delas podem ter a doença, mas ainda não sabem. A doença afeta majoritariamente as mulheres porque a lipedema precisa de hormônios femininos, o estrógeno e a progesterona, para se desenvolver.

“Por isso, essa doença se desenvolve a partir da puberdade e piora nos momentos em que existe um aumento dos hormônios femininos; ou seja, na gestação, nos tratamentos para engravidar e mais tarde na menopausa. Todas essas mudanças hormonais são gatilhos para o desenvolvimento da doença”, explica o especialista. Além disso, o uso de anticoncepcionais pode piorar o quadro.

A ciência ainda não possui respostas para o surgimento do lipedema apenas em membros específicos. No entanto, Kamamoto explica que a célula de gordura dessas regiões do corpo, chamada de adipócito, possui um receptor de hormônios diferente dos que existem em regiões como rosto, mama e abdômen, por exemplo.

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Entre os desconfortos que podem acompanhar a lipedema estão dores nas regiões do quadril, pernas, braços e antebraços; sensação de peso e queimação nas pernas (que pode piorar com reação inflamatória), hematomas que surgem com mais facilidade e crescimento de células dentro dos nódulos, como caroços que são palpáveis à pele.

Nos estágios dois e três da doença, começam a aparecer deformidades e excessos de pele, além de ocorrer acometimento de vasos sanguíneos e da derme. Também é possível ocorrer perda de mobilidade dos membros afetados. “É importante destacar que essas reações não acometem as regiões da face ou do tronco. Tudo isso é sinal de alerta que pode indicar um quadro de lipedema”, reforça Kamamoto.

Uma das principais marcas do lipedema no corpo são os “garrotes”, que são volumes de gordura localizados no tornozelo que não acometem os pés. “[O garrote] parece um elástico ali na região do tornozelo, um acúmulo de gordura na região do joelho, na frente da canela e na coxa que leva à deformidade dos nódulos”.

Diagnóstico de lipedema

Kamamoto explica que o diagnóstico é clínico e é baseado nas histórias contadas pela paciente, que vão desde dificuldade de emagrecimento na região até dores, hematomas e presença de hormônios.

Alguns exames reforçam a hipótese diagnóstica a partir da dosagem de gordura corporal, calculada em uma bioimpedância elétrica, ou exames de imagem, como ressonância magnética. “Isso exclui outros diagnósticos que podem confundir o médico, como acúmulo linfático, que pode ser checado com cintilografia, ou acúmulo de sangue nas varizes, checado na ultrassonografia doppler”, orienta.

Tratamentos

Por ser uma doença crônica que pode piorar ao longo da vida, Kamamoto explica que o tratamento está atrelado à qualidade de vida e hábitos capazes de evitar uma inflamação da lipedema, como a prática regular de exercícios físicos e alimentação correta.

“É importante evitar alimentos que aumentam a inflamação da gordura, como glúten, presente em farinha de trigo, leite de vaca, carne vermelha e no consumo excessivo de álcool. Se poupar desses excessos diminui a reação das pernas e, normalmente, melhora a dor”, indica o médico.

No caso das atividades físicas, o médico explica que é comum que o volume das pernas dificulte a realização de esportes com impacto, como corrida e crossfit, ou que forcem as articulações. “Para quem tem essas dificuldades, vale fazer exercícios de baixo impacto. Ciclismo, elípticos e atividades aquáticas normalmente não machucam a articulação da mulher com lipedema”, afirma.

A realização de fisioterapia, a adoção de dietas anti-inflamatórias, drenagens linfáticas e o uso de plataformas vibratórias também auxiliam na redução dos sintomas. Mas, até o momento, a remoção das células do corpo só pode ser feita por meio de cirurgia em que se remove as células de gordura da região afetada.

O método utilizado é de lipoaspiração com resultados definitivos “Uma vez removida, esta gordura não volta mais pois não há multiplicação dessas células”, explica Kamamoto. “É normal que se associe alguma técnica para retração de pele para que não haja flacidez, como aplicação de laser”, acrescenta.


Lipedema não é obesidade

Apesar de ser uma doença conhecida há algum tempo, o lipedema só vai entrar no Código Internacional de Doenças (CID) em 2022, o que deve tirar um pouco do estigma e levar informações tanto para a população como para os próprios profissionais. A maior desinformação sobre a doença até o momento é a relação incorreta feita com obesidade.

“Diferente da obesidade, o corpo responde à perda de peso corporal diante de dieta ou da academia. No entanto, essa gordura fica acumulada e vai progressivamente piorando. A obesidade acomete mais o tronco e tem respostas às atividades físicas e alimentação, o que não ocorre no lipedema”, diz o médico.

Apesar do reconhecimento do lipedema como patologia, Kamamoto explica que muitos médicos ainda a desconhecem. “É um grande problema porque os médicos vão orientar erroneamente essas pacientes ou vão pedir para que façam dietas super restritivas e atividades físicas intensas. Só que mesmo com esses hábitos a doença não vai embora”, explica.

Esse diagnóstico equivocado pode impactar ainda mais o estado psicológico das pacientes, já que a falta de resultados diante da orientação do médico pode causar frustração e culpa, como descreveram Lyvia, Martinez e Pereira. “Elas têm uma doença que causa crescimento anormal das células de gordura. É uma doença hormonal, não tem nada a ver com falta de esforço físico ou falta de disciplina”.

Com isso, Kamamoto alerta que é muito frequente que pacientes com lipedema passem a sofrer de depressão e transtornos de alimentação, como anorexia e bulimia. “Se a gente não dominar direito a doença e não der uma orientação correta, vamos desencadear problemas psicológicos nessas mulheres”, ressalta o médico.

Para levar informação sobre a doença, Kamamoto decidiu criar o Instituto Lipedema Brasil, que tem como missão fomentar o conhecimento científico acerca do lipedema. “Estamos fazendo uma série de pesquisas para melhorar o diagnóstico e tentando fazer um tratamento de ponta que vai levar orientação nutricional, mudança em relação aos hormônios e tratamento cirúrgico”, conta.

Além de médicos e pesquisadores, há um movimento sendo criado pelas próprias pacientes nas redes sociais para disseminar informação e criar uma rede de apoio para mulheres com lipedema. Pereira está em um grupo no Telegram e fala sobre o assunto em suas redes sociais. “A gente tem que saber que não está sozinha, que é uma luta de todas. Por ser uma doença de mulher, se a gente não se unir, não teremos tratamento efetivo tão cedo”, diz.

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