Mulheres lésbicas e bissexuais vão menos ao ginecologista do que as heterossexuais. Segundo dados do relatório Atenção Integral à Saúde das Mulheres Lésbicas e Bissexuais, do Ministério da Saúde, apenas 47% deste grupo faz consultas ginecológicas anualmente, enquanto o número sobe para 76% quando falamos de mulheres hétero, segundo Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia).

Para entender porque isso ocorre o Delas ouviu 45 mulheres não-heterossexuais sobre o tema. Os relatos anônimos revelam negligências, despreparo e preconceito de profissionais da saúde quando o assunto é sexo entre mulheres .

Mulheres lésbicas e bissexuais relatam negligência no consultório ginecológico
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Mulheres lésbicas e bissexuais relatam negligência no consultório ginecológico


A realidade nos consultórios

As entrevistas contam que o preconceito começa logo nas primeiras falas, quando médicos partem do pressuposto que a paciente é heterossexual e ignoram o sexo para além da penetração. “Nunca perguntam com quem você se relaciona. Questionam ‘você é sexualmente ativa?’ e já pulam para receitar um anticoncepcional, como se todo sexo pudesse engravidar”, diz uma mulher bissexual. “Quando você fala que só se relaciona com mulheres muitas vezes fica um clima estranho e pouco se discute sobre saúde sexual na consulta. As perguntas das médicas se resumem a camisinha e pílula”, pontua o relato de uma mulher lésbica. 

A necessidade de “sair do armário” no início da consulta é um dos incômodos apontados pelas mulheres. Algumas se sentem intimidadas e constrangidas por precisar pontuar isso. “As perguntas e o viés da consulta sempre é a partir da experiência da mulher que se relaciona sexualmente com homens. É desconfortável, sempre ter que responder no começo de uma consulta que, por exemplo, não uso nenhum método contraceptivo porque não me relaciono com homens”, relata uma das fontes ouvidas pela nossa reportagem.

Ao apontar que o sexo também inclui ter relações com outras mulheres, algumas pacientes já tiveram que lidar com reações de espanto e desconforto por parte dos profissionais. Há ainda quem passou a ser tratada como “virgem”. Foi o caso de uma mulher lésbica ouvida pelo Delas, que parou de ir à ginecologista por ter suas experiências sexuais invalidadas. “Sempre fui tratada como virgem por todas as profissionais com quem me consultei quando falava que me relacionava exclusivamente com mulheres. Não examinam, não perguntam mais nada e dispensam”, revela. 

O episódio não é isolado. Uma mulher bissexual relata: “Por não ter me relacionado com homens até aquele momento, a médica disse que eu ainda era virgem, sendo que eu tinha relações com mulheres. Eu mesma tive que apontar isso a ela”. 

Com isso, as negligências começam. “As médicas nunca souberam se portar comigo. A última, inclusive, afirmou com veemência que eu não precisava fazer nenhum exame, pois não tinha risco de doenças, já que não fazia sexo com homens”. Outras falas indicam que há profissionais que encaminham apenas para o exame de sangue e ainda há quem afirme que o papanicolau (exame preventivo do câncer de colo de útero) não é necessário quando não há relações com homens cisgêneros.

Ao Delas, Érika Mendonça, doutora em obstetrícia e ginecologia pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), explica que, na verdade, o sexo entre mulheres cisgêneras também pode transmitir IST’s (Infecções Sexualmente Transmissíveis). “As mais comuns são HPV, gonorreia, clamídia, sífilis, herpes e candidíase”, explica. Por isso, os exames são fundamentais. 

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A especialista aponta a necessidade das consultas ginecológicas de lésbicas e bissexuais irem para além das perguntas iniciais. Segundo ela, o sexo entre mulheres cisgêneras deve ser tão validado quanto o sexo hétero. “Uma mulher que faz sexo com mulheres também pode ter doenças. Ela precisa de exame físico, precisa ter o papanicolau colhido e o colo do útero analisado. Essa mulher precisa ter acesso a essas informações. Existem rotinas de prevenção que devem ser feitas e não podem ser deixadas de lado pelo simples fato de ser sexo com mulheres”, pontua. 

Além de ter a sexualidade invalidada, pacientes receberam informações preconceituosas (e falsas) em relação à bissexualidade. “Um ginecologista falou que eu poderia pegar mais doenças por conta da minha bissexualidade. Outro me disse que era só uma ‘fase’”. Em uma experiência parecida, ao contar para o ginecologista que era bissexual uma mulher ouviu que “pessoas bissexuais são vetores de doenças para heterossexuais”.

Mendonça explica o equívoco na afirmação: “Ser vetor significa ter uma patologia que pode ou não estar manifestada e ser passível de passar para outra pessoa. Entendemos como vetores tudo e todas as pessoas que têm relação sexual e que, eventualmente, podem transmitir ou receber IST’s. Com quem eu faço o sexo não me torna mais ou menos vetor. Essa é uma fala bastante preconceituosa e carregada de incoerências”.

A médica ainda reforça a urgência de prestadores de serviço da Saúde deixarem de ter as relações heterossexuais como base. “Não podemos basear o atendimento em saúde na heterossexualidade compulsória. Não podemos emitir juízo de valor sobre algo que não foi questionado pela paciente”, afirma. 

Sexo entre mulheres x ISTs 

A principal queixa das mulheres lésbicas e bissexuais é a falta de orientação sobre como se prevenir de IST’s. De 45 mulheres que ouvimos, nenhuma recebeu informação sobre como se proteger no sexo. A consequência da escassez de informação sobre o tema pode ser observada nos números. Em 2012, um estudo do Centro de Referência e Treinamento DST/Aids, Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo, indicou que apenas 2% das lésbicas se previnem contra as ISTs. 

Não é só a falta de informação que faz com que o sexo lésbico seja desprotegido. Na verdade, não há nenhum método preventivo disponível no mercado. De acordo com Mendonça, o que existe são “gambiarras”, ou seja, as mulheres precisam adaptar produtos e acessórios destinados a outro objetivo para tentar se proteger de IST’s. 

No dia a dia, ao atender lésbicas e bissexuais, a ginecologista orienta o uso dos seguintes produtos:

  • Dental Dam: uma manta odontológica que pode ser usada para a proteção no sexo oral
  • Luva de látex: pode ser cortada, mantendo o dedo polegar, abrindo ela como se fosse um papelote 
  • Calcinha de látex

Os métodos parecem complexos e pouco práticos na hora do sexo, mas é a realidade que lésbicas e bissexuais enfrentam. “Não produzir dispositivos preventivos contra IST’s é não considerar que essas mulheres fazem sexo”, diz. Para ela, a falta de tecnologias e estudos sobre o tema são parte do preconceito. “Precisamos reivindicar métodos práticos e possíveis, desenvolvidos e aprovados pelos órgãos competentes. Parece que há um silenciamento e invisibilidade sobre o sexo entre mulheres”, completa.

A saída para garantir a saúde é fazer consultas ginecológicas e exames preventivos anualmente. Érika também orienta que as mulheres se observem mais: “Se olhe no espelho todos os dias. Observe o conteúdo da sua vagina, sinta o cheiro e o gosto. Esse é o seu ginecologista diário”.

Como denunciar preconceito e negligência médica

De acordo com o portal on-line do Conselho Federal de Medicina, é possível denunciar um profissional em caso de conduta inapropriada. Para isso, você deve se dirigir ao Conselho Regional de Medicina do local onde ocorreram os fatos relatando todos os detalhes do acontecimento, identificando o profissional e se identificando. Se você for de São Paulo, por exemplo, deve encaminhar a denúncia ao Conselho de Medicina do Estado de São Paulo. 

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