Diversos setores artísticos e comerciais estão passando por um momento de reestruturação para se tornarem mais diversos e, assim, incluir as populações dissidentes. A moda também é um exemplo desse movimento, e tem tentado se atualizar para abarcar diferentes tipos de corpos e existências. Dentro desse processo, a designer de moda, educadora e ativista Carol Barreto contribuiu com a criação do conceito ModAtivismo, que busca repensar os atuais pilares que guiam a moda a partir das lentes do antirracismo e do feminismo negro.
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Mulher negra oriunda de Santo Amaro da Purificação, município do Recôncavo Baiano marcado pela história de resistência da população negra, Carol usou das suas experiências sociais e de atravessamentos políticos para oferecer ferramentas capazes de incluir narrativas como as dela nas criações.
Em entrevista ao iG Delas, ela conta que se trata de uma postura crítica que visa transferir a estética, ancestralidade, culturas e saberes de pessoas pretas ao centro do processo criativo.
“Passo a pensar a produção das corporalidades nesse sentido que me dá a possibilidade de lidar com a moda de uma outra maneira, compreendendo o poder de produção dos estereótipos moldados pelas estruturas racistas e sexistas”, explica Carol.
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O intuito também é de promover capacitação e gerar oportunidades para mulheres negras que querem se consolidar nessa área. “O projeto age a partir do aprendizado da nossa origem e com a construção de relações respeitosas e afetivas que potencializam o processo criativo. O que dá o fluxo atual no meio dessas oportunidades é a falta de entendimento e de pertencimento cultural relevante. É preciso entender que cada experiência de vida diferente tem muito mais a contribuir e ter um olhar respeitoso à relevância das origens subalternizadas”, acrescenta.
Por que uma moda ativista?
A ModAtivista, como se autodenomina em referência ao conceito, é um dos principais nomes da moda brasileira da atualidade. Carol recebeu prêmios e reconhecimento a nível global por suas criações afrofuturistas que não só vestem os corpos, mas criam obras de arte inspiradas na ancestralidade, vida e experiências do povo negro do Recôncavo.
A designer já marcou presença em passarelas do Brasil e do mundo, passando por Senegal, Angola e França – aliás, Carol acredita ter sido a primeira brasileira negra a apresentar uma coleção de moda em Paris –, além de ter trabalhos expostos em galerias de arte pelos Estados Unidos e México.
No entanto, ela conta que, depois de adulta, começou a perceber como as estruturas do racismo e do sexismo dificultaram a trajetória dela na moda – bem como o reconhecimento dentro de seu próprio país.
Como exemplo está o seu próprio processo criativo, que começou bem cedo na infância. “Já fazia croquis e os levava para a escola para mostrar às amigas. Tinha uma mãe de uma amiga e vizinha que costurava e escolheu alguns dos meus desenhos para fazer. Isso me trouxe um senso de potência, me fez me relacionar comigo de forma diferente das demais crianças”, lembra.
Mesmo crescendo em uma região em que a cultura negra é fortemente manifestada, ela lembra que os desenhos dela daquela época repetiam o padrão construído no imaginário de gênero considerado padrão: “Sempre tive interesse em desenhar essas imagens lidas como femininas, mas acabava reproduzindo as imagens de cinturinha fina, roupas de princesa e, provavelmente, brancas”.
Aos 14 anos, viu em uma revista de moda que era possível estudar e viver daquilo. Naquela idade, ela enviou um fax à Universidade Federal do Ceará pedindo o currículo do curso de moda. Ali, percebeu que precisaria aprender alguns pré-requisitos, como costura, inglês, francês e modelagem, de forma autodidata – e foi o que fez.
“De onde eu vinha tinha poucas possibilidades, e minha família teria de custear os estudos, seja fora do país ou fora de Salvador”. Ela acabou cursando Letras, mas nunca desistiu do sonho de ser designer de moda. “Hoje, consigo entender a estrutura que me cerca como mulher negra, nordestina e do Recôncavo Baiano, vinda de uma família trabalhadora Considero essa força coletiva do propósito, sem ilusões, mas entendendo de autogestão”.
É dessa força que o conceito ModAtivismo foi sendo criado e expandido ao longo dos anos. Depois de se formar em Letras com um trabalho que se aprofundava nas vidas de travestis profissionais do sexo do Recôncavo, quis aprofundar o assunto no mestrado em moda. O tema chegou a ser rejeitado por uma orientadora, que disse que não havia base científica para desenvolver esse trabalho.
Tanto como aluna quanto como educadora, a designer foi notando a dificuldade de dialogar sobre estruturar políticas no processo de criação e de aprendizado da moda. Para não reproduzir esses estereótipos e apagamentos, ela precisou criar o próprio material de base.
“Entendi que, para produzir um processo de ensino que respeitasse a mim, minha origem e minha comunidade, eu precisava refazer todo o material. Essa atitude individual me instrumentalizou como artista e educadora para pensar a partir da contribuição estética e política. Não dava para ficar falando de Maria Antonieta na Bahia”.
Foi só quando se tornou professora do Departamento de Estudos de Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia que conseguiu, de fato, entrelaçar a moda com os saberes de feministas negras brasileiras e estadunidenses, aproximando esse laço. Desde então, ela também criou o Laboratório Criativo em Moda Afrobrasileira (Afrolab), que debate as relações entre poder e imagem para desconstruir estereótipos relacionados à população negra no Brasil.
Conectora de oportunidades
Antes do reconhecimento internacional, Carol chegou a abrir uma loja de roupas assinadas no famoso bairro Rio Vermelho, no centro de Salvador. A loja foi encontrada por uma estilista senegalesa, que a convidou para participar da Dakar Fashion Week, no Senegal. Nesse meio tempo, Carol precisou fechar a loja, mas conseguiu fazer a viagem com apoio de amigos e coletivos negros.
Para a designer, é notável que o campo acadêmico de moda não consegue construir autonomia ou base política a quem estuda. Com essas ferramentas podadas, ela explica que o curso não ensina os alunos a viver da própria criação, tendo-a como uma fonte de renda. Ao perceber que essa seria uma dor para outras mulheres negras, ela decidiu criar o laboratório prático ModAtivismo, que aconteceu pela primeira vez em 2013.
O projeto que foi apoiado por entidades do movimento social e com coletivos negros para, segundo ela, “oferecer para as estudantes o que eu jamais teria acesso na minha trajetória”. No caso, ela se refere à troca de experiências de vida para pautar o processo criativo, mas também um amparo para que essas alunas possam ganhar visibilidade e viver de suas criações.
"Precisei me tornar uma conectora de oportunidades das meninas junto de empresas para, assim, reforçar a importância da contribuição da moda no campo das produções vestíveis. É uma contribuição efetiva das lutas feministas, antirracistas, anti capacitistas, antietaristas, entre outras”, começa.
“Foi quando entendi a relevância de compartilhar as minhas experiências da maneira mais plena e horizontal possível com as minhas estudantes. Esse debate político foi essencial para discutir esse lugar e essa imagem do profissional de moda. Assim, consegui envolvê-las e convocá-las a uma parceria transformadora. Depois dali, muitas abriram o próprio ateliê, começaram a fornecer serviços com mais complexidade ou passaram em seleções de lojas de alta costura internacionais, por exemplo”.
Das discussões e experiências práticas originadas no ModAtivismo, nasceram diversas coleções de moda pautadas por essa intersecção entre moda, gênero e raça, contemplando, principalmente, as narrativas das mulheres pretas brasileiras, principalmente do Recôncavo.
Alguns exemplos são as coleções Asé, que homenageia a ancestralidade afrobrasileira; Vozes, que foi para a Black Fashion Week Paris 2015 e questiona a colonialidade a partir de relatos de mulheres quilombolas do Recôncavo; e Fluxus, que faz referência aos cabelos das mulheres negras como conexão ancestral na diáspora africana.
Negritude na moda
Carol afirma que a invisibilidade de criadores negros é estratégica; ou seja, é uma falta de reconhecimento não pela qualidade do trabalho, mas pelo entendimento da potência que aquele trabalho gera para a população negra. A ativista vê avanços ao perceber um número maior de pessoas negras produzindo, bem como o aumento da preocupação de inclusão de pessoas pretas.
“Finalmente estamos tendo uma compreensão do racismo, mas ainda não mexemos na pirâmide social brasileira. Ainda temos pessoas brancas dotadas de todo o poder de existência, enquanto pessoas pretas precisam esperar pequenas brechas. Se tivemos algum avanço foi devido à reivindicação das próprias pessoas pretas”, analisa.
Carol cita a autora negra portuguesa Grada Kilomba ao afirmar que o alinhamento das pessoas brancas com o antirracista vem, por muitas vezes, do lugar de culpa e de vergonha, não por se acreditar genuinamente em inclusão. Mesmo assim, ela vê boas oportunidades: “O porquê acaba se tornando menos importante. Não é pelo reconhecimento de que pessoas brancas são forçadas a isso que vou deixar de produzir alianças que podem subsidiar elementos”, diz.
“É um avanço que não tem retorno. A partir do momento que começa, mesmo que de maneira ‘obrigatória’, o resultado é uma transformação efetiva. Porque a gente começa a modificar a ocupação das posições de poder e de decisão. A partir dessa potência, a gente consegue construir criações que mudam a nossa trajetória e os exemplos que a gente pode deixar no mundo”, conclui.