Nesta quarta-feira (7), celebra-se em todo o país o bicentenário da Independência Brasileira. Neste dia, em 1822, D. Pedro I, então imperador do Brasil, proclamou o grito de independência às margens do Rio Ipiranga, evento que é considerado o clímax para que o Brasil se tornasse um país soberano e com autonomia sobre seu próprio território. No entanto, os processos que levaram à independência ocorreram por muito tempo, e algumas mulheres foram figuras centrais para que isso acontecesse.
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"Houve um apagamento das mulheres porque as narrativas oficiais privilegiaram contar a história sob o ponto de vista dos homens. Alguns pesquisadores falam sobre documentos da época que atestam a existência de manifestos de mulheres em favor da independência. Isso desmistifica a ideia de que apenas homens estavam presentes nos movimentos de independência do país", aponta Danielle Nigromonte, historiadora e diretora-geral da organização social Amigos da Arte.
A OS é responsável pela Agenda Bonifácio , plataforma online com conteúdos relacionados ao bicentenário que dedicou uma sessão a relembrar figuras importantes que participaram do processo de Independência, mas têm menos destaque. “É uma maneira de mudar a forma como se observa essa efeméride, jogando luz em histórias que muitas pessoas desconhecem”, acrescenta Nigromonte.
Grande parte das mulheres que se envolveram com eventos que levaram à independência do Brasil sofreram apagamentos com o passar dos anos – principalmente as que estavam relacionadas a organizações populares. “É essencial dar visibilidade a trajetórias pioneiras de mulheres comuns, conectadas com as demandas do seu tempo”, afirma a historiadora.
São os casos, principalmente, de Maria Felipa de Oliveira, Maria Quitéria e Joana Angélica. As três tinham relação com o movimento de independência na Bahia, evento histórico que aconteceu entre fevereiro de 1822 e julho de 1823 com o intuito de emancipar a população.
A figura feminina mais fortemente relacionada a esses eventos é a imperatriz Maria Leopoldina da Áustria, esposa de D. Pedro I. "Dona Maria Leopoldina acaba ganhando visibilidade ao longo da história não apenas por ser a primeira imperatriz do Brasil, mas também por ser reconhecida como conselheira política de D. Pedro I no processo de independência. O primeiro decreto relacionado à independência do Brasil foi assinado por ela, em agosto de 1822", aponta a historiadora.
Maria Felipa era uma mulher escravizada liberta e fez parte de uma organização popular que atraía soldados portugueses para, depois, atear fogo em seus navios. Maria Quitéria precisou aderir à identidade de um homem para entrar no exército brasileiro. Atuou entre 1822 e 1823, mais de um século antes das mulheres poderem se alistar às Forças Armadas.
Por fim, a abadessa Joana Angélica foi assassinada por soldados portugueses que tentavam adentrar em um convento em busca de homens escondidos. Ela tentava proteger as outras freiras que residiam ali e, por isso, é considerada um mártir da Independência.
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O iG Delas conversou com Danielle Nigromonte sobre a atuação dessas mulheres na Independência do Brasil, o significado de seus apagamentos e qual é o legado delas para a população brasileira.
iG Delas: Como você avalia a abordagem relacionada à participação das mulheres nos eventos da Independência?
Danielle Nigromonte: Houve um apagamento das mulheres porque as narrativas oficiais privilegiaram contar a história sob o ponto de vista dos homens. Alguns pesquisadores falam sobre documentos da época que atestam a existência de manifestos de mulheres em favor da independência. Isso desmistifica a ideia de que apenas homens estavam presentes nos movimentos de independência do país. Parte do conteúdo da Agenda Bonifácio aborda as trajetórias de pessoas pouco lembradas – entre elas as mulheres – na seção "Outros Heróis". É uma maneira de mudar a forma como se observa essa efeméride, jogando luz em histórias que muitas pessoas desconhecem.
iG Delas: A figura feminina mais relacionada à Independência é Maria Leopoldina. No entanto, a austríaca representava de fato os interesses da população brasileira diante da Independência naquele momento? Por que as outras ficam à sombra dela?
Danielle Nigromonte: Dona Maria Leopoldina acaba ganhando visibilidade ao longo da história não apenas por ser a primeira imperatriz do Brasil, mas também por ser reconhecida como conselheira política de D. Pedro I no processo de independência. A psicanalista, jornalista e escritora Maria Rita Kehl escreveu um ensaio para o livro "D. Leopoldina – Cartas de uma Imperatriz", e, em entrevista à Agenda Bonifácio, afirmou que a imperatriz veio ao Brasil com expectativas de exercer um papel político ao casar com D. Pedro I. Nessa época, os casamentos reais significavam uma aliança entre Cortes e, por causa de um acordo, ela veio representando o império do seu pai, o imperador Francisco I, da Áustria.
O primeiro decreto relacionado à independência do Brasil foi assinado por Dona Maria Leopoldina, em 13 de agosto de 1822, quando foi nomeada Chefe de Estado e Princesa Regente interina, porque D. Pedro I estava em viagem para resolver questões políticas. Quando a imperatriz percebeu a pressão da corte depois que o marido se recusou a voltar para Portugal, ela convocou o Conselho de Estado do Rio de Janeiro e assinou, em 2 de setembro, mais outro decreto que declarava o Brasil oficialmente separado de Portugal.
iG Delas: Qual a importância de trazer à tona a existência e a memória de mulheres como Maria Quitéria e Maria Felipa, bem como seus feitos durante a Independência?
Danielle Nigromonte: É curioso perceber que ambas foram notáveis no movimento de independência realizado na Bahia. Maria Quitéria, por exemplo, entrou no exército disfarçada de homem e, como tinha habilidades no manejo de armas, acabou se tornando um elemento importante. Ela permaneceu na corporação mesmo depois de todos saberem que era mulher. Registros do Arquivo Nacional atestam que por causa dos serviços prestados durante a guerra de independência na Bahia, na reconquista de Salvador, D. Pedro I concedeu a ela o direito de usar a insígnia de cavaleiro da Ordem do Cruzeiro, ressaltando os relevantes serviços prestados por alguém de seu “sexo”.
Maria Felipa de Oliveira era uma marisqueira de Itaparica e descendente de pessoas escravizadas do Sudão. Em 2018, por seu legado no movimento de Independência da Bahia, ela foi declarada oficialmente Heroína da Pátria Brasileira e teve seu nome inscrito no “Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves”, em Brasília (DF).
É muito importante trazer ao conhecimento público o legado heróico de mulheres negras, a exemplo de Maria Felipa, que foram apagadas do processo histórico não apenas pelo machismo, mas também pelo racismo. É essencial dar visibilidade a trajetórias pioneiras de mulheres comuns, conectadas com as demandas do seu tempo.
iG Delas: Há ainda Joana Angélica, que é nomeada mártir e heroína da Independência após ser assassinada por soldados portugueses. Como podemos situar a importância dela nesses eventos e para a história do país?
Danielle Nigromonte: Joana Angélica tinha 60 anos quando morreu ao se colocar na porta do convento Nossa Senhora da Conceição da Lapa, em Salvador, diante das tropas portuguesas, que tentavam entrar no local com a suspeita de que adversários estariam escondidos ali. A abadessa foi assassinada em 1822 ao receber um golpe de um soldado por resistir e tentar impedir a invasão do local, onde a entrada de homens era proibida. A bravura dela, que lhe custou a vida, resguardou as demais freiras do convento onde atuava.
iG Delas: Maria Felipa foi uma escravizada liberta que se articulou com outras mulheres para revidar contra os soldados portugueses e incendiar os navios deles. Como se pode enxergar essa atuação e essa organização popular que ela criou?
Danielle Nigromonte: Segundo relatos difundidos pela tradição oral, ela era a encarregada de atrair os guardas dos navios portugueses para a praia durante a madrugada. Quando se aproximavam, eles eram dominados com peixeiras e surrados com folhas de cansanção, uma planta com espinhos que provoca sensação de queimadura na pele. A partir disso, outras pessoas invadiam e tocavam fogo na embarcação e assim, dezenas de navios portugueses foram destruídos. Essa atuação de Maria Felipa aliada a outras mulheres foi notável na história da Independência da Bahia.
A história de Maria Felipa foi sustentada ao longo dos anos pela tradição oral, pois não há registros oficiais de sua participação nos eventos a ela atribuídos. A trajetória dela foi inicialmente resgatada pelo historiador, escritor e político baiano Ubaldo Osório Pimentel.
iG Delas: Alguns historiadores ou mesmo páginas na internet sobre Maria Felipa reforçam que as informações sobre elas são dadas como controversas por seu legado ser mantido apenas pela tradição oral. Por que essa tradição é considerada duvidosa?
Danielle Nigromonte: A atuação das mulheres sempre é posta em dúvida. A legitimidade delas é sempre questionada, e o mesmo acontece quando essa fonte é baseada numa versão oral, que, supostamente tem menos legitimidade, o que não é correto. Na verdade, a tradição oral é formalmente um documento, do ponto de vista historiográfico. É uma matéria, uma disciplina, e também uma ferramenta muito importante como fonte historiográfica ou para povos que não tenham a escrita formal. Então, a tradição oral tem sua legitimidade como registro historiográfico. Ela tem a mesma validade que um documento escrito, que um registro sonoro ou uma imagem fotográfica, por exemplo.
iG Delas: Maria Quitéria se tornou um símbolo de resistência brasileira no exército, tanto que é um nome muito mais frequentemente citado, apesar de igualmente pouco abordado. Qual legado ela deixou para as mulheres com a própria atuação?
Danielle Nigromonte: Maria Quitéria foi a primeira mulher a entrar nas Forças Armadas Brasileiras, mas para isso teve que se disfarçar de homem e adotar a identidade do cunhado. Como "soldado Medeiros", ela esteve na luta da Independência da Bahia para expulsar os portugueses, movimento que ocorreu entre 1822 e 1823. Maria Quitéria é Patrona do Exército Brasileiro e, certamente, seu pioneirismo abriu portas para outras mulheres ocuparem lugares antes inimagináveis. A entrada das mulheres nas Forças Armadas só foi autorizada mais de um século mais tarde, na década de 1980.
iG Delas: De que forma a Agenda Bonifácio pretende contribuir para difundir a memória dessas mulheres à sociedade brasileira?
Danielle Nigromonte:
É importante trazer informações sobre mulheres de vida comum que tiveram papel de vanguarda em movimentos importantes na História do Brasil para que seus legados sejam reconhecidos e difundidos, fazendo jus às suas trajetórias de pioneirismo e bravura. É muito sugestivo que esse material possa ser usado no ambiente escolar, porque acreditamos que a Agenda Bonifácio é uma plataforma aliada de quem busca conteúdo vasto e diverso relacionado ao tema do bicentenário da Independência do Brasil. Também buscamos oferecer reflexões de questões relevantes da nossa sociedade.