O iG Delas realizou nesta quinta-feira (7) uma transmissão ao vivo pelo canal do Portal iG no Youtube sobre assédio sexual. Na conversa, Marina Ganzarolli, advogada e presidente do Me Too Brasil, e Mayra Cotta, advogada e representante das vítimas de assédio sexual do ator e ex-diretos da Globo, Marcius Melhem, abordaram como realizar o reconhecimento do assédio e as necessidades de mudanças estuturais para garantir um ambiente de trabalho mais seguro para mulheres. Confira os destaques da transmissão.
O que é assédio sexual?
“Hoje no Brasil, o código penal específica um tipo penal chamado assédio sexual. Neste caso, fala-se do ambiente de trabalho, mas esse crime não abarca todas as violências ou assédios sexuais que acontecem contra as mulheres. O assédio sexual é um grande guarda-chuva de condutas em que há uma hierarquia e um ato ou conduta com intenção libidinosa com a ausência do consentimento da outra parte. Ou seja, é sempre uma conduta unilateral”, afirma Ganzarolli.
Dentro desse guarda-chuva estão desde importunação sexual e estupro até piadas sexistas, convites inoportunos e comentários sobre sexualidade ou sobre o corpo, por exemplo. “Tudo isso tem uma conotação sexual que, obviamente, não é adequada para o ambiente de trabalho”.
Cotta acrescenta que a centralidade do assédio sexual é o constrangimento sentido ao se submeter a uma situação realizada ou não sem o exercício da livre vontade da vítima. “Isso, combinado ao elemento sexual e a relação hierárquica, vai caracterizar o assédio. Mas tivemos um avanço em outubro de 2020 com uma decisão do Conselho Nacional de Justiça que exclui essa necessidade de hierarquia, reconhecendo que o assédio sexual pode acontecer entre pares ou de baixo para cima”.
Cotta aponta ainda para a diferença entre assédio sexual e importunação sexual : “O assédio sexual precisa acontecer, necessariamente, no ambiente de trabalho e precisa tipificar de uma relação hierárquica, o que é diferente da importunação sexual, que acontece em qualquer espaço”.
A advogada continua a afirmar que, criminalmente, há consequências das relações trabalhistas, que reconhecem também a responsabilidade da empresa ou organização onde os assédios acontecem.
Não há perfil do agressor
Ganzarolli aponta que um dos principais mitos relacionados ao assédio sexual é de que existe um perfil específico de agressor. “Quando imaginamos um estuprador, um abusador de crianças e adolescentes ou um predador sexual, pensamos em um cara doente, soturno, esquisito, quando na verdade o abusador é o ‘parça’ do futebol, o vizinho que você mais gosta ou o cidadão de bem que frequenta a igreja”, relata.
Essa posição social acaba se tornando um instrumento de coerção, já que estimula o medo nas vítimas, que sentem mais medo de denunciar por receio de que seja desacreditada. “Normalmente essa violência é cometida por alguém do ciclo social, familiar e afetivo da vítima. Então, essa confusão mental aumenta o sentimento de culpabilização e de autoculpa, porque ela também se coloca em dúvida”.
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Impactos na vítima
A culpabilização da vítima faz com que a palavra dela seja colocada em xeque, seja pelo agressor ou durante a investigação, que desloca a narrativa para o comportamento e conduta da vítima, e não ao autor do crime.
“Uma das dificuldades que temos no enfrentamento da violência sexual é a subnotificação, e os motivos de ela ser tão alta são vários, desde a autoculpa e a culpabilização da vítima até a falta de confiança no sistema e o menosprezo nas autoridades ou de pessoas familiares”, diz Ganzarolli.
A advogada explica que, em casos de assédio sexual, a vítima nunca é colaborativa, pois por se tratar de um trauma as reações dela não tendem a ser racionais, mas pautadas na adrenalina e no medo. “Essa mulher nunca vai entrar na delegacia e descrever o crime. Nunca vai ser um depoimento coeso – isso se obtém do autor do crime, que sabia exatamente o que estava fazendo, ao contrário dela. A memória dessa vítima vai ter flashes, vai para frente e para trás. Ela vai lembrar de cores, cheiros, sensações e barulhos, por exemplo, porque a razão dela não está funcionando naquele momento”, descreve.
“Assédio tem uma dimensão insidiosa e perversa de ir na nossa autoestima e de nos fazer questionar a nossa competência, colocando-a em xeque. A gente não só se culpabiliza como começa a pensar o porquê de estar aqui [no trabalho onde foi assediada] e se era só porque um cara estava querendo assediar. Tem esse elemento cruel de fazer a gente ter vergonha de ter passado pelo que passou”, diz Cotta. “Mais do que entender que não é nossa culpa, é preciso entender que o nosso valor e o do nosso trabalho está na nossa competência, não à validação desse assediador”, acrescenta.
Assédio moral e educação dos homens
Ganzarolli aponta que o assédio sexual é frequentemente acompanhado do assédio moral, capaz de causar consequências psicológicas graves à vítima. “Não só é possível ter queda de produtividade e isolamento, mas crises de pânico, depressão, ideações suicidas, automutilação e distúrbios alimentares”.
“Muito mais do que falar da conduta das mulheres e como identificar e confiar, a gente precisa falar sobre consentimento, sobre limites. A gente precisa fazer uma educação dos meninos e dos homens, porque a gente pode criar todos os canais de denúncia possíveis, mas enquanto essa conversa não envolver a masculinidade e como a gente a constrói de forma a subjugar a mulher e seu corpo e sua sexualidade, a gente não vai avançar”, acrescenta.
Ambiente pode estimular o assédio sexual
“Muitas vezes a estrutura do contexto está estimulando esse tipo de comportamento. A gente vê casos de agressores que, conforme adquiriram mais poder, intensificaram as violências que cometiam. A gente vê também práticas no ambiente de trabalho que, muitas vezes, naturalizam esse tipo de prática”, acrescenta Cotta.
Para isso, a advogada afirma que é preciso incentivar as empresas a criarem ambientes de trabalho seguros e dignos. “Tudo o que as mulheres querem é trabalhar sem serem assediadas. Por isso, reforço muito a responsabilidade das empresas nesse sentido e a criação de ambiente em que, caso haja incidentes, ela possa reportar. Não podemos só esperar que as mulheres sejam corajosas e saibam se defender, se não vamos continuar enxugando gelo”.
“Não é a estrutura hierárquica que causa o assédio. É o machismo e o patriarcado. É a ideia de que homens têm mais poder e devem ter mais acesso e mais direitos que as mulheres. É preciso que seja buscado, de forma mais ativa, um trabalho de prevenção desses incidentes de segurança relacionados à conduta sexual inadequada. Só ter mulheres em cargos de gestão não basta, mas ter um olhar interseccional para todos os outros marcadores sociais, sim”, finaliza Ganzarolli.
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