Projeto Escolhi Esperar deve ser votado em São Paulo e equipara abstinência sexual a outras formas de contracepção
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Projeto Escolhi Esperar deve ser votado em São Paulo e equipara abstinência sexual a outras formas de contracepção




Na próxima quinta-feira (17), a Câmara Municipal de São Paulo votará projeto de lei (PL) nº813/2019, que permitirá que adolescentes sejam aconselhados a aderir à  abstinência sexual como método de contracepção. Se aprovado, o programa vai para sanção do prefeito, Ricardo Nunes (MDB). Especialistas alertam que as medidas podem ser prejudiciais às mulheres e dificultar uma educação sexual de qualidade aos jovens.

O programa Escolhi Esperar é de autoria do vereador Rinaldi Digilio (PSL) e possui apoio da Prefeitura, que emitiu parecer a favor da proposta. Em 2020, o projeto foi apresentado em primeiro turno como uma semana de conscientização e foi aprovado; mas posteriormente foi alterado por Digilio e apoiado com 18 assinaturas para prosseguir como política pública, o que dividiu opiniões na Câmara.


Digilio explica que a proposta do projeto não é substituir outros tipos de prevenção, mas acrescentar a abstinência sexual como uma maneira importante de prevenir com maior eficácia a gravidez na adolescência. O vereador diz que o acesso a anticoncepcionais, camisinhas e dispositivo intrauterino (DIU), por exemplo, continuará sendo realizado gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde (SUS) , mas serão acrescentadas palestras individuais sobre riscos da gravidez na adolescência.

Segundo dados da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), 18% dos bebês nascidos no Brasil têm como mães adolescentes entre 15 e 19 anos. Com isso, estima-se que o país tenha, ao ano, 400 mil casos de gravidez precoce.

Hannah Maruci, cientista política e co-fundadora do projeto A Tenda das Candidatas, afirma que o projeto vai contra a construção de uma educação sexual aos jovens. “Ao colocar a abstinência sexual como uma forma de prevenir a gravidez precoce, se negligencia fatores como a realidade de que, para grande parte das crianças e adolescentes no Brasil, a atividade sexual não é uma escolha, uma vez que enorme parcela de crianças e adolescentes sofrem violência sexual”, explica.

De acordo com o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, organizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), houve mais de 66 mil casos de estupro de vulnerável só no ano de 2019, sendo que 57,9% tinha no máximo 13 anos e mais de 85% eram mulheres. O anuário aponta ainda que mais de 84% dos estupros eram cometidos por conhecidos da vítima.

Maruci acrescenta que a abstinência sexual também negligencia a educação a métodos efetivos de prevenção. “Pregar a abstinência é se posicionar de forma contrária à educação sexual, pois se entende que a atividade sexual simplesmente não ocorrerá, o que não é verdade”, explica.

Ester Horta, psicóloga, especialista em neuropsicologia e membro do conselho da Associação Aliança Pró Saúde da População Negra, o projeto significaria um retrocesso para a educação sexual no país. Além disso, incentiva a lógica de culpabilização de jovens. 

“O cérebro do adolescente e estruturas cerebrais envolvidas nas habilidades e comportamento de tomada de decisão e controle de impulsos ainda estão em desenvolvimento. Por isso os jovens pensam mais no ‘aqui e agora’ e nas satisfações imediatas e tem dificuldades em pensar nas consequências a longo prazo”, explica. Além disso, a especialista afirma que a abstinência sexual e sua comprovação já foi refutada por diversos estudos.

Horta afirma que incentivar a abordagem da abstinência sexual enquanto se diminui o debate sobre gênero e educação sexual nas escolas pode ser perigoso para os jovens. “Isto porque nem sempre o assunto é abordado no seio familiar, e é crucial que tais jovens recebam instruções importantes para prevenção de ISTs e gravidez nas escolas”. Além disso, uma compreensão sobre sexualidade faz parte da natureza humana e garante um desenvolvimento psicossocial saudável dos jovens.

A vereadora de São Paulo Luana Alves (PSOL) afirma ainda que o investimento em um programa com esforços de incentivar a abstinência sexual pode ser um gasto de recurso público sem perspectiva de um retorno em números de pessoas beneficiadas, de redução de gestações precoces e de redução de infecções sexualmente transmissíveis.

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“Apesar de não revogar os programas de distribuição de contraceptivos, ele autoriza o método e, se aprovado, a Prefeitura o coloca no mesmo nível de igualdade desses programas, o que pode influenciar a postura clínica de profissionais”, afirma a vereadora.

Meninas serão mais afetadas negativamente

Caso o projeto passe pela Câmara, Alves e Maruci afirmam que as mais impactadas pelo programa serão as mulheres. “Primeiro, porque são elas quem engravidam e que lidam com a gravidez precoce, e segundo porque os homens e meninos são socialmente incentivados a ter relações sexuais precoces, que são vistas como conquistas”, afirma a cientista política.

Alves afirma que o discurso de apoiadores na Câmara foca, principalmente, na conduta das meninas, culpabilizando-as pela gravidez precoce, principalmente as residentes em áreas periféricas. “Eu já ouvi falar que não ter uma política de abstinência sexual é ter uma fábrica de pobres, além de julgamentos sobre a conduta de mulheres em baile funk ou frases que dizem respeito ao corpo das meninas”, afirma Alves.

A vereadora ressalta que o mesmo tipo de comentário não é direcionado aos meninos. “Uma lei não é capaz de mudar uma estrutura social machista. Assim, irá se reforçar a noção de culpa pela atividade sexual para as mulheres e meninas, ao mesmo tempo que as deixará mais desamparadas”, acrescenta Maruci.

Política de abstinência sexual não funciona na periferia

De acordo com pesquisa do Mapa da Desigualdade da Primeira Infância de 2020, que usou a cidade de São Paulo como parâmetro, gestações em meninas de até 20 anos são 50 vezes mais recorrentes em bairros periféricos, em comparação aos bairros nobres.

Apesar disto, Alves afirma que um programa que tente incentivar os jovens periféricos a praticar a abstinência sexual não funcionaria na periferia. “Simplesmente porque esse tipo de política não tem nada a ver com a realidade da vida desses jovens. Inclusive, a maioria já possui uma vida sexual ativa”, afirma.

A aprovação do programa, na visão da vereadora, seria trágica em áreas periféricas. “Isso vai prejudicar as políticas sérias nas periferias de educação sexual que falam da prevenção da gravidez, de HIV e Aids e de reconhecimento de abuso.”

“O projeto não seria eficiente pois os adolescentes em geral já experienciam sentimentos de não serem compreendidos pelo seu meio e têm o estigma de serem taxados de ‘revoltados sem causa’. Mas esse estigma é ainda maior entre os adolescentes periféricos, porque não é concedido a eles o direito de ser jovens; pelo contrário, são na verdade criminalizados”, afirma Horta.

A especialista explica que, de acordo com a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), é preciso considerar outros fatores além da taxa de gravidez precoce para pensar projetos de redução da gestação na adolescência, “mas também a dificuldade de acesso aos serviços de saúde e, consequentemente, aos métodos contraceptivos”. Horta explica que propostas como as do projeto Escolhi Esperar são excludentes, já que é mais provável que pessoas em contextos mais privilegiados tenham poder aquisitivo para acessar métodos contraceptivos e tratamentos de ISTs.

A abordagem por meio da abstinência sexual pode gerar sentimentos como angústia e ansiedade em adolescentes LGBTQIA+, explica Horta. A psicóloga afirma que esses jovens não são contemplados em materiais relacionados à educação sexual. “As orientações são em sua maioria cis-heteronormativas e não contemplam as necessidades e diversidades das vivências e dos corpos trans e intersexo, por exemplo”, diz.

“Observa-se nas regiões menos favorecidas e empobrecidas uma lacuna de políticas públicas voltadas para a população adolescente, tanto nos programas educativos como nos preventivos. Observa-se também a falta da presença dos pediatras nestas equipes, únicos profissionais capacitados a lidar com esta faixa etária e suas peculiaridades”, afirma.

Além disso, Horta ressalta a situação em que estão inseridas as mulheres negras. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas, 54,1% das mortes maternas ocorrem entre as mulheres negras na faixa entre 15 e 29 anos. Além disso, essas mulheres têm mais propensão de ter um quadro de hipertensão, violência obstétrica, violência de gênero e racismo institucional.

“Todo esse desmonte, associado a uma política que não vai garantir o acesso a informações corretas e amplas sobre educação sexual, prevenção de ISTs e de gravidez na adolescência, deixará jovens com útero a mercê de uma estrutura de saúde não preparada e com risco de morte”, explica Horta.

Regressão nas políticas de gênero

Apesar das críticas cada vez mais presentes do PSDB em relação ao Governo Federal, o programa se alinha aos projetos chefiados pela ministra Damares Alves, à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH). Em fevereiro de 2020, a pasta lançou a campanha “Tudo tem seu tempo”, que buscava incentivar que jovens aderissem à abstinência sexual para combater a gravidez na adolescência.

No entanto, Maruci explica que a postura de Nunes favorece o surgimento de políticas públicas semelhantes às que defendem o Governo Federal. “O atual prefeito de São Paulo é fortemente ligado ao setor da Igreja Católica que acredita na falácia da ‘ideologia de gênero’. Nunes vem sistematicamente lutando contra o uso da palavra ‘gênero’ e se alinhando à política bolsonarista”, diz.

Além das morais religiosas, Horta cita ainda o avanço das ideias conservadoras pertencentes à extrema direita e avanço do neoliberalismo, que tornaram possível esse tipo de posicionamento por meio de agentes políticos.

“Isso resulta em políticas públicas baseadas em tais preceitos, que causam retrocessos que desmontam políticas públicas já consagradas, e que contém o avanço da desconstrução de opressões e violências, além de afetarem diretamente e negativamente a saúde física e mental e segurança dos grupos mais vulneráveis”, explica.

Com Nunes, a expectativa é de que a prefeitura de São Paulo guie ações e políticas mais conservadoras. Assim, as políticas de gênero e sexualidade podem ser fortemente impactadas. Maruci explica que, em termos mundiais de políticas de gênero, o país “se alinha aos setores mais retrógrados possíveis, indo na contramão das políticas de educação sexual e autonomia”, por exemplo.

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