A aclamada série da HBO, “I May Destroy You”, de Michaela Coel, abriu um debate sobre uma situação que algumas mulheres infelizmente podem reconhecer. Numa cena da série, o parceiro com quem a protagonista tem relação sexual tirou a camisinha sem ela perceber.

Ela nem se dá conta, mas o ato de tirar a camisinha durante a relação sexual sem o consentimento da parceira é uma forma de abuso e violência contra mulher, como explica a psicóloga especializada em sexualidade e colabora do Sexo Sem Dúvida, Jéssica Siqueira.

Laura relata o abuso sexual que sofreu
Pexels
Laura relata o abuso sexual que sofreu "me sentia suja"




“Esse ato se chama stealthing e se enquadra como crime pelo código penal brasileiro, artigo 215 que configura ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima”, explica a psicóloga.


Eu me sentia suja

Assim como na série, a arquiteta Laura*, 28 anos, também passou pelo mesmo abuso. Ela conta que foi para uma festa e lá conheceu o designer gráfico Danilo*, há um ano. “Danilo era totalmente diferente de todos os caras que eu tinha conhecido, era engraçado, gentil e eu realmente me sentia segura com ele”, relata em entrevista ao Delas.

Os dois começaram a sair e um dia o designer chamou Laura para ir até a casa dele. Eles começaram as preliminares e Laura pediu para ele colocar a camisinha antes deles transarem, o que ele fez na mesma hora sem questionar.

Foi só quando ele gozou que ela percebeu que tinha algo errado. “Quando isso aconteceu, eu fiquei assustada e perguntei o que tinha acontecido com a camisinha, pois pensei que pudesse ter entrado em mim ou algo do gênero, mas ele disse que tinha caído e esqueceu de avisar... Mas, aonde já se viu camisinha cair?”, conta a arquiteta que, na hora, não contestou o que tinha acontecido e tomou a pílula do dia seguinte como precaução.

A relação de Laura e Danilo não vingou, ele simplesmente sumiu da vida dela depois do ocorrido. A arquiteta só percebeu o quão grave foi a situação quando contou para algumas amigas, que explicaram que ela tinha sido mais uma vítima do stealthing.

Você viu?

“Eu não conseguia acreditar que eu tinha sido abusada, acho que eu nunca chorei tanto na minha vida que nem aquele dia. Fui correndo tomar um banho, porque eu me sentia suja, como se eu fosse culpada de aquilo ter acontecido”, acrescenta a arquiteta.

Mesmo após um ano do ocorrido, Laura ainda sofre pelo abuso sexual
Pixabay
Mesmo após um ano do ocorrido, Laura ainda sofre pelo abuso sexual


Traumas

Mesmo depois de um ano do ocorrido, Laura ainda não se sente segura de se relacionar com nenhum parceiro, pois tem medo do que possa acontecer. “Além de ter vergonha de contar, eu estou trabalhando na terapia como eu posso voltar a confiar em algum parceiro”, conta ao Delas.

Jéssica Siqueira explica que é normal a vítima ficar com estresse pós-traumático, depressão e ansiedade após o abuso. Podendo ainda interferir na construção de novos vínculos e contatos afetivos sexuais.  

“Nosso biológico, psicológico e social está o tempo todo interligado, trabalhando junto, todas essas possíveis consequências biológicas por si só já vão influenciar e afetar o psicológico da vítima”, esclarece a especialista.  

A advogada e Professora do Departamento de Direito Penal e Processual Penal da UFPR, Clara Maria Roman Borges explica que muitas mulheres passam por isso, mas têm medo de denunciarem e as pessoas não acreditarem nelas.

“Não é comum a denúncia nesses casos, porque é difícil provar tal prática, uma vez que acontece em ambiente íntimo, sem testemunhas ou registros. Ademais, não é raro que a mulher tenha uma relação de amizade ou afeto com o infrator, o que muitas vezes a impede de compreender sua condição de vítima. Aliás, não é raro que a vítima compare a prática do stealthing à situação da camisinha furada por acidente e conclua indevidamente que deve arcar com as consequências de seu ato”, explica a advogada.

Laura explica que não denunciou o ocorrido por medo de não acreditarem nela, ou pior, que a culpassem pelo ocorrido. A professora relata que a sociedade brasileira, por ser machista, não consegue compreender o significado da liberdade sexual da mulher.

“Quando a relação sexual é consensual, uma parcela da sociedade acredita que os homens podem se comportar da maneira como bem entendem, sem respeitar a vontade da mulher. Em resumo, porque não há violência física visível, porque não se trata de um estupro, alguns acreditam que a mulher se expôs a essa situação e deve arcar com as consequências de eventual stealthing, que podem ser graves, como uma gravidez indesejada ou doença sexualmente transmissível”, acrescenta a especialista.

Apesar de não haver uma lei específica para punir o autor desse abuso, existe previsão de crime no Código penal, que pode ser aplicada a essa conduta. Então deve-se denunciar tal crime, pois dessa forma pode-se impedir que aquela pessoa pratique novamente o stealthing. A mulher deve ir até a Delegacia da Mulher e fazer o boletim de ocorrência. Além disso, deve dirigir-se a um hospital público para ser medicada no que se refere a DST’s e tomar a pílula do dia seguinte.

“Para evitar a prática do stealthing é necessário conscientizar a sociedade da necessidade de respeitar a mulher, o seu corpo e a sua liberdade sexual. Sem dúvida, trancafiar agressores em cárceres desumanos e superlotados não é a solução para o problema da violência contra a mulher”, encerra a advogada.

O Ligue 180 tem por objetivo receber denúncias de violência, reclamações sobre os serviços da rede de atendimento à mulher e de orientar as mulheres sobre seus direitos e sobre a legislação vigente, encaminhando-as para outros serviços quando necessário.

*os nomes foram trocados a pedido da vítima

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!