Mulheres negras no mercado de trabalho
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Mulheres negras no mercado de trabalho











“No Brasil, você é criado a base de Trapalhões, Zorra Total, Globeleza… todos esses estereótipos que fazem com que o racismo recreativo, o racismo amigável brasileiro, seja muito presente na linguagem. Na França, as pessoas não têm um repertório gigantesco de palavras para fazer uma piadinha sutil como tem aqui. Nos Estados Unidos tem a questão da grana. Se você conseguir comprovar que tem grana num certo nível, você consegue passar. Aqui nem isso, você é mandado embora por causa do seu cabelo ”.

As palavras acima são de Luanna Teófillo, empresária e mestre em Linguística pela Sorbonne Université, umas das mais renomadas universidades do mundo, que fica na França. Criadora do  Painel BAP (voltado para o consumidor afrobrasileiro), ela tem na bagagem uma larga experiência no mercado corporativo internacional. Não obstante, Luanna foi processada pelos seus antigos empregadores após relatar - sem citar nomes - uma situação de discriminação vivida no local de trabalho. Além de ter sido demitida, ela teve que pagar uma indenização e chegou a ser proibida de falar sobre o caso. 


Após 133 anos da Lei Áurea ter sido assinada, a maior parte da população negra é maioria nas profissões mais precarizadas (baixa remuneração e pouca segurança trabalhista) e correspondem ao maior número de desempregados. Pessoas pretas e pardas representam 55,9% da população brasileira, mas ocupam apenas 4,7% dos cargos de liderança nas 500 maiores empresas do país (dados do Instituto Ethos). As mulheres negras representam 9,3% dos quadros destas companhias e estão presentes apenas em 0,4% dos altos cargos.

Em entrevista ao Delas, a empresária compara a experiência de ser uma mulher negra no meio corporativo dentro e fora do Brasil e sobre as possibilidades de reagir ao racismo nos ambientes de trabalho. 

“Tira isso”

Luanna passou por uma situação de constrangimento no ambiente de trabalho há quatro anos que pode ser categorizado como crime de racismo. Na ocasião, ela trabalhava em uma empresa multinacional como executiva de negócios (businesse developer) e estava fazendo uma transição capilar. Por um tempo, ela usou uma lace wig cacheada, mas decidiu mudar o visual e colocar tranças box braid, que já havia usado em empregos anteriores no ambiente corporativo, sem nunca ter tido nenhum problema. 

A criadora do Painel BAP, Luanna Teofilo
Arquivo pessoal
A criadora do Painel BAP, Luanna Teofilo


Luanna conta que fez as tranças em setembro, quando a pessoa responsável por sua demissão estava de licença. “Ela voltou, olhou, olhou mais uma vez e não falou nada. Até que, um dia, às 6h da tarde, o escritório só tinha a gente e o pessoal de vendas. Ela veio da sala dela, olhando para mim e já gritou: 'tira isso, tira isso, eu não vou aguentar'”, lembra. Luanna diz que comunicou ao seu superior o ocorrido e, três dias depois, foi chamada ao escritório e exposta diante de outros funcionários. 

“Nessa época eu tinha um coletivo chamado Efigênias, que dava apoio para pessoas que haviam sofrido descriminação no trabalho. Até que chegou o meu dia. Só que quando é sua vez, você não quer que seja verdade”. Luanna contou a história em uma página no Facebook chamada “Tira isso!’, criada por ela mesma, sem citar os nomes da empresa ou da mulher que a expôs.

”Eu comecei a receber muitos relatos. Era uma história pior do que a outra, todo dia… eu percebi que ali eu não estava falando só por mim, eu estava falando por muitas pessoas”. Porém, algumas pessoas que já a conheciam e trabalhavam na mesma empresa tomaram conhecimento da página e identificaram qual era meu local de trabalho nos comentários do post.


Sentindo-se pressionada, Luanna havia decidido pedir demissão, mas antes que ela tomasse essa iniciativa, foi chamada pelo RH da empresa e desligada.  “Chamaram segurança, recepcionista e me escoltaram para fora do escritório. Uma situação de terror, aquela dor no coração. Imagina ser escoltada para fora, parecia filme americano. Eu falei: 'Hoje o racismo está ganhando, mas não vai ganhar para sempre'”, detalha.

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O chicote do poder judiciário



Quem não conhece a história pode imaginar que este seria o início de uma batalha judicial relacionada ao crime de injúria racial, porém nem a empresa ou a mulher que gritou para que Luanna tirasse as tranças foram processados. Ao contrário, foi ela quem se tornou alvo de dois processos: um no juízo trabalhista, em que a empresa processava Luanna por danos morais - e outro foi no juízo cível, movida pela autora das ofensas. 

A página “Tira isso!” foi tirada do ar, sob pena de multa e Luanna chegou a pagar R$ 40 mil devido aos processos. Alguns meios comunicação da imprensa negra publicaram a sentença e foram censurados. O caso foi parar no Supremo Tribunal Federal até que o ministro Luís Roberto Barroso decidiu que não cabe a censura em cobrir o caso.

“Abala a autoestima do profissional preto saber que está sendo observado e num beco sem saída. É trabalhar e calar a boca”, diz. “Tem um lado meu que fala 'ferrou, cara. Se alguém te humilhar, te descriminar você tem que calar a boca e ficar na sua'. Mas tem outro lado meu de já ser uma profissional, que tem um posicionamento, que comprei essa missão, mostra que eu tenho que lutar cada vez mais. A mesma ferramenta que eles usam hoje com o chicote do poder judiciário ele usaria para me dar uma chibatada no fundo da casa grande”. 


Pior lugar para profissionais negros 

Você chega com seu diploma, você escreve bem, tem gente que fica com inveja, fica ressentido, é assim. Isso impacta no nosso desenvolvimento e nas nossas atitudes. Você não está relaxado”.



Luanna já trabalhou na Argentina, França e Estados Unidos e diz, sem titubear, que o Brasil é o pior lugar para profissionais negros. Ela afirma que no exterior não só conviveu com mais profissionais negros nos escritórios, como a presença de pessoas negras em espaços como restaurantes, é bem mais normalizada que por aqui. 

“A França e os Estados Unidos são países em que o preto está mais inserido nos escritórios. Se você for em Nova York, no restaurante mais caro, vai ver preto. Em Paris, naquelas escolas de milionário, tem criança preta. Agora no Brasil é isso, o atraso. Você entra num restaurante e tudo para, porque aquelas pessoas não conhecem preto”, declara. 

Segundo Luanna, em empresas internacionais, as pessoas negras são tratadas com mais respeito em relação aos cabelos e outros traços culturais. Ela conta que os clientes se concentravam mais nos países africanos e do Oriente Médio e tinham contato com mulheres que usavam tranças, cabelo black power, hijab (o véu/lenço que costuma ser usado por mulheres muçulmanas). “Nos países africanos existem muitas mulheres trabalhando em business. Acho que até mais que aqui, principalmente na área de investimentos e muitas têm tranças ou usam o cabelo crespo”. 



Essas características do mercado de trabalho brasileiro - em que a população negra em geral está nas profissões menos qualificadas e com menor remuneração - e um simples processo seletivo que priorize trainees negros é capaz de gerar uma comoção contrária, para Luanna, fazem com que o profissional negro viva em tensão permanente.

“Tem outras questões que a gente tem de ficar esperto num ambiente padrão: você não pode se destacar tanto porque, quando a gente fala de racismo, também está falando de recalque, de inveja, de dor de cotovelo. A profissional chega com seu diploma, escreve bem e tem gente que fica com inveja, ressentido... é assim. Isso impacta no nosso desenvolvimento e nas nossas atitudes. Você não está relaxado”. 

Representatividade não é tudo. Mas importa.

Após todos esses acontecimentos envolvendo preconceito, demissão e processos, Luanna passou a se dedicar com maior intensidade aos seus empreendimentos. Além do Painel BAP, ela é criadora da startup chamada Door Bell , da página Samba Abstrato e do blog Efigênias .

“Minha ideia era fazer produtos tecnológicos. Em 2016, antes de ser demitida desse emprego das tranças, eu criei o Painel BAP. A ideia era fazer paralelamente ao meu trabalho e não o meu negócio principal, até porque eu não tenho milhões para investir ou trabalhar só nisso”, conta.

Ela explica que o Painel BAP, apesar de ser bem sucedido e dar dinheiro, não rende o suficiente para pagar o salário de uma pessoa que tem a sua experiência. Por isso, ela voltou ao mundo corporativo.

“Quando fui despedida dessa empresa, decidi que não iria mais trabalhar em empresa, não ia mais passar por isso. Hoje eu trabalho no ramo da tecnologia que eu tenho abertura para falar sobre situações de racismo. Mas dá medo de passar por isso de novo”, desabafa.

Luanna afirma que não é ingênua a ponto de acreditar que a representatividade e a diversidade resolvem tudo, mas destaca que políticas institucionais de inclusão de profissionais negros têm sua importância. 

“Acho importante que pretos tenham emprego, sim. Eu sou da cultura que a gente tem que deixar um legado econômico em honra aos nossos ancestrais e para o nosso futuro. Acredito que tem que ocupar tudo, sim. Tem de ter preto na Globo, no poder judiciário, dono de loja em shopping. Tem que ter tudo porque foi a gente que construiu tudo: preto, pobre, mulher, nordestino, nortista. Tem cota para preto no trabalho? Vai. Tem cota para preto na universidade? Vamos. Porque isso faz diferença na sociedade".

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