Feminismo criminológico: “Não se confia mais na justiça”, diz pesquisadora
Em entrevista exclusiva o iG Delas, pesquisadora feminista Fernanda Martins explica o conceito de feminismo criminológico, que defende ações coletivas emancipatórias para reduzir desigualdades e violência de gênero no Brasil
Os índices de violência contra a mulher e violência de gênero no Brasil são estão entre os mais altos do mundo. Somos o 5º país onde as mulheres mais morrem de maneira violenta e só de janeiro a junho de 2020 foram registrados 266 mil casos de violência doméstica no país. Paradoxalmente, a legislação relacionada ao tema tem reconhecimento internacional.
A Lei Maria da Penha (nº11.340/06), por exemplo, é reconhecida pela Organização das Nações Unidas (ONU) como a terceira melhor lei de combate à violência contra a mulher em todo mundo. Por outro, a criminalização sozinha não é suficiente para a solução do problema.
“Até recentemente, se vê o monopólio de um feminismo carcerário que quer criminalizar tudo sem pensar, mas quando se criminaliza, se ampliam aspectos de vulnerabilidade para comunidades já vulneráveis”, afirma Fernanda Martins, pesquisadora feminista especializada em ciências criminais.
Segundo Martins, a justiça funciona atualmente com base em elementos como o patriarcado e o racismo. Por esse motivo, as penalizações têm sido uma ferramenta para tornar os espaços entre as desigualdades ainda maiores. Por esse motivo, defende-se que o sistema judiciário, como funciona atualmente, já é ineficaz para julgar as questões das mulheres no Brasil.
É a partir dessa lógica que Martins desenvolveu um novo conceito: o feminismo criminológico . Ele seria uma alternativa à ineficiência do sistema judiciário, com organizações, coletivos e pensadoras feministas que visam combater a violência de gênero por meio da diminuição da criminalização.
“Estou propondo a produção de práticas, manifestos, experiências e conhecimentos feministas que sirvam de apoio para repensar a criminologia e os significados de violência e vitimização”, diz.
A pesquisa de Martins deu origem ao livro, “Feminismos Criminológicos”, lançado na última terça-feira (16) pela editora Tirant. “Mapeei alguns manifestos da Europa, Estados Unidos, América Latina e Brasil para tentar demonstrar como hoje há uma linguagem que questiona a punição, especialmente pela questão da migração e da violência policial conectada ao racismo”, explica sobre o projeto.
Em entrevista exclusiva ao iG Delas, Martins se aprofunda no significado de um feminismo criminológico, analisa o sistema judiciário e a lógica criminal atual, além de explicar como práticas não penalizantes podem ser possíveis para constituir um mundo mais justo para todas as pessoas. Confira a entrevista na íntegra.
Delas - Qual é o significado de um feminismo criminológico?
Martins: Eu chamo minha tese de “Feminismos Criminológicos” porque é a minha tentativa de inversão para não fazer algo comum à criminologia feminista, em que são mantidos pressupostos e discussões da criminologia com instrumentos feministas. Na verdade, se mantém o problema e introduz questões feministas nesses debates.
O que eu estou propondo é fazer com que o que se produz de práticas, manifestos, experiências e conhecimentos feministas sirvam de apoio para repensar a criminologia e para repensar, inclusive, o que significa violência e vitimização. Quando eu penso em feminismo criminológico, para mim existe uma noção emancipatória que não é secundária, ou seja, são práticas autônomas.
Delas - No que consiste a criminologia feminista e qual seu percurso no Brasil?
Martins: Na crimonoliga feminista são discutidos processos de vitimização e políticas criminais. É um debate da criminologia sobre mecanismos legais de enfrentamento à violência contra mulher. No Brasil, ela tem um percurso bem interessante vinculado à produção de criminologia crítica, discutindo sobre encarceramento, o significado da produção de leis penais e a reivindicação da tutela penal.
A criminologia crítica no Brasil ganhou fôlego nos anos 1960, só que seu grande foco foi entender que os processos de encarceramento e a distribuição da violência deveriam ser analisados sob o recorde de classe. Nos últimos 15 anos, a criminologia passou a ser tensionada de maneira bastante direta pelos estudos raciais e os debates antirracistas, que identificaram que, no Brasil, é preciso entender que classe não é suficiente para compreender o que significa a rede punitiva.
Com a criminologia feminista foi um pouco assim também. Nos anos 1980 e 1990, os movimentos [feministas] foram capturados pelo sentido da violência doméstica por razões como a ONU [Organização das Nações Unidas; em 1979, ocorreu a Convenção para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher]. Mas a criminologia feminista acabou sendo envolvida por isso também, o que criou um monopólio de debate que discutia se a lei penal era adequada ou não para enfrentar esse problema.
Delas - De que maneira esse debate tem avançado aqui e nesses outros lugares pesquisados por você?
Martins: Há um avanço porque hoje se percebe que a questão de um feminismo punitivo não é mais suficiente. Até recentemente, se vê o monopólio de um feminismo carcerário que quer criminalizar tudo sem pensar. Mas, quando se criminaliza se ampliam aspectos de vulnerabilidade para comunidades já vulneráveis. Isso é algo que as feministas negras estão dizendo desde os anos 1960 e 1970. Ao criminalizar uma questão importante sem entender que a polícia vai afetar cada pessoa de formas distintas, se reforçam violências para outros grupos.
Delas - Por que se tornou importante repensar a maneira como o sistema de justiça mundial funciona?
Martins: As demandas de punição induzem inúmeras violências que antes a gente não conectava com as nossas próprias práticas. Antes parecia que esse debate era mais falado pelas mulheres negras, porque elas eram as mais impactadas por conta de seus filhos, vítimas de violência policial. A questão da punição é central na América Latina e nos Estados Unidos, países em que o número de mulheres encarceradas cresceu muito. Só no Brasil, esse índice cresceu 600% de 2006 a 2016 . Isso fez com que se focasse de forma mais evidente nas contradições das demandas de punição para os movimentos feministas.
Delas - Existem organizações feministas que já pautem uma ideia aproximada do feminismo criminológico?
Martins: Nos Estados Unidos, existem grupos feministas de longa data como o Critical Existence e o Insight, dois coletivos que trabalham com pessoas encarceradas e que são pautados pelo feminismo e o abolicionismo penal. No Brasil a gente tem as Mães de Maio, que é um grupo de mães que toma para si os debates sobre violência policial. Temos também a Associação Elas Existem, que trabalha com mulheres encarceradas no Rio de Janeiro e tem como pressuposto um mundo sem prisões. E a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA), que reivindica um feminismo que não negocie com essas demandas carcerárias.
O Ni Una Menos , na Argentina , tem hoje uma chave importante para isso por reivindicar uma posição anti punitiva dentro do movimento feminista, demonstrando que isso faz com que as mulheres também sejam mais afetadas. Elas têm levantado críticas ao que elas chamam de justiça patriarcal.
Delas - O que é e como funciona a justiça patriarcal?
Martins: São os pilares de gênero e raça que funcionam como regra de funcionamento do sistema de injustiça. Isso significa que, para uma mulher ser reconhecida como vítima em qualquer situação nos termos da justiça, precisa corresponder à figura idealizada de uma mulher vítima: ser branca e de classe média. Além disso, os homens negos serão impactados de maneira mais severa pelas respostas judiciais do que os homens brancos de classe média. Não só porque eles correspondem aos mandatos da justiça patriarcal, mas porque eles terão mais acesso que negros a advogados caros que podem produzir uma defesa nos termos da justiça patriarcal.
Além disso, trata-se de uma experiência misógina de reprodução de violência que revitimiza mulheres ao longo do processo, o que reforça vários tipos de situação de violência. Por exemplo, uma mulher depois de um estupro precisa repetir diversas vezes os acontecimentos, é questionada pela roupa que usava e o local onde estava.
Delas - Existe algum tipo de modelo que propõe ir contra esse tipo de justiça?
Martins: O que entra hoje em contrapartida é essa ideia de justiça feminista, que não é uma justiça das mulheres, mas leva como pressuposto de que essa justiça [patriarcal] é o que gera problemas. A justiça deve ser pensada conectando essas vulnerabilidades. Precisa considerar raça, gênero, sexualidade, classe e outras categorias. A justiça feminista é uma aliança de formação e de pessoas que trabalham em locais estratégicos e que entendem de direitos das mulheres. Mas não só. Precisa-se entender também quem são as principais feministas hoje, as reivindicações contemporâneas e entender por onde essas lutas têm atravessado.
Delas - Dado esse cenário que temos hoje, como, então, seriam as soluções para proteger mulheres a partir dessa nova visão?
Martins: Acho que a gente tem rotas de fuga. Uma delas são as relações dessas alianças e grupos feministas fazendo com que a gente compreenda os problemas de outra forma. Com isso, constroem-se mecanismos de autodefesa entre nós e pensam-se resistências que não se liguem ao poder punitivo, nem ao Estado. A justiça feminista prioriza formas de reparação em rede que não gerem impactos de vulneravilidade e prioriza discussões de forma horizontal, minimizando impactos das questões de gênero e não reforçando estereótipos nos trâmites judiciais.
Delas - O que você propõe com os feminismos criminológicos é uma alteração estrutural? Você acredita que a melhor solução é que as penas sejam educativas em vez de punitivas?
Martins: Sim. Isso tem a ver mais com reformas que temos tentado desde os anos 1980 por meio de formação e capacitação dos agentes de justiça. Só que, para mim, o mais central hoje é o que faz todo contorno. O ponto é que não se confia mais na justiça. Os debates feministas entendem que a justiça estatal não vai produzir justiça feminista, porque ela é mais ampla, é saber reconhecer que ali existe uma estrutura forjada para ser misógina, racista e desigual.
Por mais que se faça reformas e melhore, a gente nunca vai alcançar as nossas expectativas diante daquilo. A ideia de justiça feminista transcende entre as reações do Estado de direito e é produzida por mulheres feministas entre reivindicações de outros direitos de maneiras mais ampla, como moradia, alimentação, educação, transporte público, qualidade de emprego e muito mais.
Delas - Se a justiça feminista não está interessada em beneficiar apenas mulheres, então como todas as pessoas podem se beneficiar dessa mudança?
Martins: Uma vez que se fortalece um, se fortalece a todos. A gente sabe que quem é impactado pela justiça de maneira mais incisiva, no sentido de produzir mais precariedades, são grupos LGBTs, pessoas negras, mulheres que não têm poder aquisitivo a ponto de disputar os mecanismos hegemônicos do sistema de justiça. Uma mulher negra em determinada situação pode estar mais exposta a alguns tipos de precarização enquanto uma mulher indígena pode estar em uma condição mais incisiva. Se a gente não entende que isso se conecta, a gente passa a entender que são coisas insociáveis. A gente vive num mundo em que essas violências, para serem compreendidas, não podem mais ser categorizadas de forma separadas. Precarizam-se certas vidas em detrimento de outras.
Por exemplo, nos anos 1990, diante dos debates das feministas em relação à Lei Maria da Penha, era muito claro que se tentava proteger a mulher branca de classe média. Enquanto isso, as mulheres negras estavam sendo encarceradas por tráfico de drogas por causa de uma política penal proibitiva que as criminaliza. Elas não tinham trabalho e nem creche para deixar as crianças, então estavam vinculadas ao tráfico. Se não leio essas duas coisas juntas, eu não consigo entender as vulnerabilidades de cada um.
Delas - É muito presente essa questão de olhar para além da vítima, certo?
Martins: Isso. A vítima vai ser uma representação de um conflito específico, interpessoal. Só que o conflito de uma pessoa com outra está, bem possivelmente, conectada a vários outros problemas cotidianos que, se eu não pensar além da briga, não se resolve. Há 20 anos, é assim que se pensa violência de gênero e violência doméstica no Brasil. Foram entendidos como problemas entre o agressor, a vítima e, no máximo, de um vizinho terceiro que devia ter denunciado para a polícia, mas não foi pensado que essas relações de violência atravessam todo cotidiano da vida das pessoas.
A violência doméstica é uma captura de significados. Quando se fala em “doméstico”, se fala em um espaço que eu fecho a porta e ninguém vê nada, porque é minha casa. Mas e no caso de mulheres que estão em situação de rua, que são extremamente impactadas por violências interpessoais de gênero? Como que isso se aplica? Se a justiça penal for tentar resolver, aquele homem em situação de rua vai ser preso, vai entrar no sistema carcerário e nunca vai sair dele. E é esse homem, geralmente, que é o apoio daquela mulher para que ela não seja vulnerável a outros sujeitos na rua.
Delas - Você considera que as medidas do atual sistema de justiça tem uma visão muito generalizada dos conflitos, julgando-os sempre da mesma forma?
Martins: Sim, mas isso acontece porque, dentro do sistema da lei, existe uma obrigatoriedade de ser assim. Não tem como traduzir todas as particularidades do mundo. E é por isso que hoje a gente fala sobre como o sistema de justiça e o Estado não têm como corresponder às nossas demandas. Gastamos nossa energia em fazer com que ele se adeque não deu em nada, então por que a gente não para e tenta produzir formas menos violentas?
Delas - Essas organizações coletivas remetem a ações de coletivos que se organizam para dar aulas de autodefesa para mulheres se protegerem de agressores. Esse tipo de ação também está relacionada ao feminismo criminológico?
Martins: Sim. A gente sabe que a questão da autodefesa, quando se fala sobre isso no campo de violência, é algo que precisa ser pensado com cuidado. Isso é algo que Elsa Dorlin [filósofa francesa que aborda violência] aborda, sobre como a imagem das mulheres foi construída para não ser apta a responder os processos de violência. Aguentar essas construções faz com que a gente ache que se defender de alguma coisa é algo sempre perigoso. Tanto que não é incomum as pessoas afirmarem que o melhor a fazer em um caso de ameaça de estupro é não resistir.
Mas para além disso, acho que o mecanismo de autodefesa tem a ver com autogestão, com coletividade. Não é só sobre eu conseguir tirar o agressor de cima de mim num contato físico, mas é sobre eu conseguir fazer com que ele saia da minha vida. É uma construção comunitária de pilares feministas. Isso é feminismo criminológico para mim.
Delas - Quais são as suas expectativas em relação aos próximos passos do feminismo criminológico?
Martins: Não existem expectativas para o feminismo criminológico. Ele é uma expressão de algo que está em acontecimento e que está se consolidando. Estão se ampliando debates análogos a ele, como extinção da polícia, legalização do aborto, questão da descriminalização e regulamentação das drogas e construções coletivas feministas que apliem a relação de segurança social.
A gente não pode ceder ao canto da sereia do poder punitivo. Precisamos pensar em poder punitivo como um instrumento necessário para a justiça patriarcal, assim como o machismo, capitalismo e racismo. Essas coisas não podem ser desconectadas.