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"No 19º dia depois da alta eu tive uma hemorragia que lavou o chão", conta mulher que sofreu violência obstétrica


A técnica de farmácia em maternidade da rede pública de São Paulo, Simone Lopes de Oliveira, 48, passou 12 horas em trabalho de parto no ano de 1997. Era o parto de sua primeira e única filha, hoje com 23 anos. O que era para ser um momento de alegria acabou tendo consequências tristes, como traumas e esterilidade. Simone foi vítima de  violência obstétrica .



Para a equipe do iG Delas, a técnica de Farmácia relata todo processo de  violência obstétrica que sofreu, desde as pressões feitas pela ginecologista nas consultas pré-natal para optar pela cesárea até as marcas do pós-parto que carrega até hoje.

“Eu sempre quis fazer parto normal, principalmente porque eu tenho medo de cirurgia. Falava isso para a médica desde a primeira consulta. Ela sempre respondia que a gente via isso na hora. ‘Quero ver se você vai aguentar isso aí, porque dói’, ela falava. Ela me dizia isso em várias consultas durante o pré-natal e sempre insistia na cesárea.

Quando chegou na última consulta, que eu não sabia que seria a última, ela perguntou se eu tinha certeza. ‘Se você perceber que não vai ter passagem aí é outro caso, a senhora faz as coisas que tiverem que ser feitas, mas eu quero parto normal’, respondi.

Eu era muito novinha naquela época, tinha 24 anos. Nada era muito claro, ninguém falava muito como tinha que ser. Era assim: passou mal, vai para o hospital e ganha [o bebê]. A médica não me orientou direito, não falou sobre a vacinação da gestante e nem pensou em fazer um coagulograma [exame que diagnostica tempo de coagulação do sangue]. Essas coisas são super necessárias se você for passar por um parto ou por um processo cirúrgico maior porque você precisa saber quanto tempo leva para não sangrar muito.

Eu passei 12 horas em trabalho de parto. Quando cheguei na maternidade a equipe ligou para a médica. Fui muito bem atendida, mas já começaram a conferir se minha bolsa tinha estourado e aplicaram a ocitocina, que induz o parto. Hoje eu sei que hormônio não é necessário porque a mulher já produz a ocitocina normalmente. 

Isso em si já é uma violência. Sei porque hoje trabalho na maternidade e a mulher tem o pleno direito de não usar isso. Só que não conversaram comigo. Eu não lembro de ter visto a médica na sala pré-parto. Lembro das enfermeiras, mas eu estava sozinha na sala de parto antes de começar. Todo mundo estava fazendo cesárea e só eu queria parto normal. Quando eu dizia isso, as enfermeiras ficavam admiradas.

A médica não conversou muito comigo quando chegou, já foi ver quanto estava de dilatação e se irritou comigo porque eu não tinha os nove dedos necessários. ‘Você veio, já internou, está com dor mas não tem nem nove dedos ainda’, ela disse, super grossa. A cada minuto ela enfiava a mão em mim para saber se tinha chegado.

Lembro que demorei 40 minutos para conseguir dilatar o que era necessário, mas antes disso ela me pressionou muito para fazer a cesárea. ‘É muito melhor, você já está com a bolsa rompida e vai dar um trabalho danado o parto normal’, disse, sempre me assustando e insistindo muito. ‘Se fosse cesárea você já estaria na sala de recuperação’, continuou, e eu dizia que não queria.

Ela me disse que a bebê não estava encaixada e demoraria muito. Eu respondi que esperaria. ‘Ai pronto, agora a gente vai ficar o dia inteiro esperando isso’, ela disse para a enfermeira. Você vai se assustando porque pensa que deve ter algo errado para ela querer tanto fazer uma cesárea. Lembro que quando ela chegou no ápice da irritação, ela falou: ‘Se por um dedo não chegar nos nove da dilatação, eu vou fazer a cesárea’. E eu insistia que não queria. Eu cheguei a rezar, juro que cheguei a rezar.

Dois minutos depois eu pedi para tentar de novo. ‘E não é que chegou?’, ela disse para as enfermeiras, irritada, depois que consegui chegar aos nove dedos. Nessa hora ela chamou outro médico. Isso é proibido e é uma prática violenta, mas  ele chegou a empurrar minha barriga para o neném sair, me espremeu. Eu não sabia porque ele estava fazendo aquilo. Nada daquilo foi falado. Eu fiquei dolorida por um tempo por causa disso. Demorou um tempo, mas minha filha saiu.

Nessa hora me mostraram a neném, dei de mamar e ela fez um procedimento sem falar nada do que estava fazendo. ‘Não para, né? Não para’, a médica disse para uma enfermeira, olhando para mim. Eu demorei para entender o que estava acontecendo porque eu estava grogue, mas depois entendi que eu estava sangrando muito. Você vai ficando aéreo quando perde sangue. Ela fez a episiotomia [corte no períneo para alargar a passagem do bebê] sem me falar.

Ela puxou a placenta e me mostrou que estava tudo inteiro. Nisso ela foi falando uns nomes de medicações para aplicar e eu não conseguia entender. Para que aplicar mais se já acabou? Depois entendi que ela estava tentando parar o sangramento, porque se não eu poderia entrar em choque, poderia morrer. Depois disso fizeram um exame para saber se foi tudo feito corretamente, se não costuraram com o intestino, me deram uma bolsa de gelo e fui assim para o quarto.

O parto acabou assim. Geralmente depois do procedimento a médica vai na sala e explica tudo o que aconteceu, porque na hora você pode não entender. Não foi feito nada disso, fui adivinhando conforme passavam os anos. Minha mãe tinha estranhado a demora e como cheguei no quarto: com a bolsa de gelo e medicação nas veias dos dois braços. Quando ela perguntou sobre a médica, a enfermeira disse que ela fez o parto e foi embora.

Eu não conseguia pegar minha filha nos braços por conta do soro e nem ficar em pé. Só que para mim estava tudo bem. Depois de uns dias fomos para casa e eu estava normal, tudo certo, até que no 19º dia depois da alta eu tive uma hemorragia que lavou o chão.

Descobri que isso aconteceu porque ficaram restos placentários dentro de mim. Meu ex-marido tinha 25 anos, era muito novinho e não sabia o que fazer. Ele tentou entrar em contato com a médica, mas ela simplesmente não respondia. Ele e minha mãe foram no consultório e, quando finalmente encontraram, ela dizia que tudo isso era normal, que acontecia. Passei um mês internada no hospital. Eu tive que pegar um dos médicos pelo braço e perguntar o que estava acontecendo. Até que um deles me explicou que eu poderia ficar estéril.

Hoje, trabalhando na maternidade, sei que foi tudo errado. Faltou assistência, atenção no pré-natal e pós-parto. Um hematologista chegou a me falar que eu só não morri porque não era minha hora e porque eu não fui cortada na extensão da cesária, se não eu não ia coagular, entraria em choque e morreria.

Eu queria ter outro filho, então cheguei a passar com um especialista em reprodução. O médico disse que eu tinha a possibilidade de ter filhos de novo, mas para isso seria preciso um longo tratamento para que o útero não colasse, porque a médica que fez o parto tirou toda camada de endométrio. Aliás, eu não menstruo por causa disso. O médico me explicou que eu não tinha mais passagem do útero para os ovários e, com isso, tinha chances de o tratamento romper tudo. Eu poderia tentar, mas preferi não correr esse risco.

Quando eu saí do hospital, eu não conseguia tomar posse da minha filha, não conseguia tomar posse da minha vida, não conseguia me ver e nem tomar alguma atitude em relação a família. Eu  não conseguia nem amamentar porque não tinha vínculo com ela, nem com o meu marido.

Só depois de três meses levei a minha filha para casa, ela estava na minha mãe. Comecei a me aproximar mais do bebê. Não que eu não abraçasse ou não beijasse, é que eu não tinha como dar de mamar, vacinar, não fui eu quem registrei. Fiquei passada. Não corri atrás para saber se era uma  depressão pós-parto.

Eu e meu ex-marido chegamos a viver 13 anos casados, mas a cobrança dele em relação a não poder ter mais filhos era muito grande. Teve uma série de coisas que acarretaram quando soube que não poderia mais ser mãe. Durante um bom tempo, foi muito difícil para mim. Eu tinha o sonho da família grande. Passei uns bons anos amargando e me arrependo de não ter processado a médica”.

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