"Pedocracia": psicanalista fala sobre a dificuldade de impor limites aos filhos

Segundo a psicanalista Márcia Neder, crianças mais mimadas são resultado do narcisismo dos próprios adultos, que não sabem dizer não aos filhos

O século 21 será lembrado como um dos momentos em que as crianças tiveram mais poder . Se de certa forma isso é bom para que pais criem crianças independentes , por outro pode ser a chave para tornar as crianças mimadas e sem limites .


'Os pais negociam tudo e falham ao impor limites', diz Marcia Neder
Foto: Pexels/Mohamed Abdelgaffar
'Os pais negociam tudo e falham ao impor limites', diz Marcia Neder


Esse comportamento das crianças e a maneira como elas estão moldando as famílias tem nome e razão definida pela psicanalista Marcia Neder, que em 2009 cunhou o conceito de pedocracia .

Depois de um longo estudo envolvendo a psicanálise, ela nomeou o que seria uma “ditadura dos filhos” em que o poder das crianças se torna superior ao dos pais. “Os pais tratam os filhos como divindade, se ajoelham diante da criança”, conta Marcia em entrevista ao iG Delas.

A psicanalista buscou por respostas a esse fenômeno e descobriu não apenas que esse é um resultado do comportamento de pais narcisistas, mas também uma brecha para que mulheres sejam culpadas como se tivessem “falhado” na criação aos filhos.

O conceito de família ao longo dos anos

Marcia explica que a pedocracia que tem raiz cultural, social e histórica. Para entendê-la, é preciso voltar no tempo e entender  como as famílias eram organizadas nos séculos passados mais recentes.

Até o século 18, quem detinha o poder das estruturas familiares era a figura paterna, a quem a mulher e os filhos se submetiam e eram subservientes. A psicanalista explica que esse momento é fundamental para definir os conceitos da família patriarcal .

Mas nos séculos 19 e 20 essa estrutura de poder começou a mudar quando a mulher passou a ganhar espaço na sociedade civil, muito por conta dos movimentos sufragista e feminista . É nesse momento da história que estudos da psicanálise encontraram espaço para definir que a culpa das crianças tiranas é da mulher.

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“Alguns teóricos da psicanálise afirmam que pelo pai ter perdido o poder à mulher e não poder mais impor limites , as crianças perderam o controle. Dizem ainda que as mulheres se sentiram culpadas por trabalhar e que isso afrouxou as rédeas para os filhos. Mas não foi bem assim que as coisas aconteceram”, explica.

Marcia afirma que o feminismo do século 20 pode ter sido emancipador em diversas escalas, mas isso não aconteceu ao se tratar dos filhos. “O feminismo não conseguiu resolver o problema da maternidade . A prisão que se estabelece na nossa cultura pela instinto materno, pela necessidade de ter um filho. O século 20 foi vitorioso em anexar o filho à mãe”, contextualiza.

De acordo com Marcia, o culto às crianças por parte das mulheres passou a acontecer, historicamente, nos períodos das grandes guerras. Isto porque as crianças precisavam ser cuidadas para que, no futuro, se tornassem soldados para defender seus países no campo de batalha.

A mulher passou a atuar no campo da medicina, na transmissão de conhecimento e no cuidado. Com esse contexto, cada vida infantil era importante. Esses valores são resgatados para o século 21, quando ocorre uma mudança na estrutura familiar: se antes os pais queriam ser obedecidos e respeitados, hoje querem ser amados.

A raiz da pedocracia está nos próprios pais

O surgimento da pedocracia vai além da configuração de gênero, já que Marcia afirma que até mesmo casais formados por homens passaram a manifestar uma dificuldade em impor limites para as crianças.

Apesar de existir um problema social e cultural, Marcia afirma que o principal mecanismo para colocar a criança no centro da organização familiar é a vaidade dos próprios pais. “Para isso, os pais abrem todo o sistema, negociam tudo e falham ao impor limites. Isso tudo porque eles querem o amor do filho”, diz.

No entanto, a psicanalista afirma que é fundamental que exista um processo de negação aos filhos . “Sim, você vai ter que ouvir um ‘eu odeio você’ ou ‘você é uma bruxa’. A gente tem que ser uma bruxa, porque temos que mostrar o caminho de coisas que o filho só vai descobrir sozinho ”, diz.

Questionada se existe uma maneira de cortar o mal pela raiz, Marcia afirma que é necessário que os pais busquem aconselhamento e façam terapia para que possam controlar o narcisismo e a vaidade. “Os pais falam que fazem tudo pelo filho porque o amam, mas é mentira: eles se amam, tudo isso é fruto do amor próprio. O ego está supervalorizado”, reflete.