A diferença é nítida. Quando o irmão de Aline contou que sua única preocupação ao sair de casa para ir ao colégio se limitava a assaltos ou furtos, a jovem ficou preocupada. “Nunca pensei que para os homens fosse tão mais fácil. Foi aí que percebi quanto o medo de assédio atrapalha minha vida e a de muitas mulheres”, diz a estudante Aline Soares Couto, de 19 anos.
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Ela conta que precisou fazer uma grande lista para organizar todas as situações que a deixavam aflita no trajeto casa-escola e que grande parte delas estavam relacionadas ao medo de assédio .
Infelizmente, Aline não é a única a temer. Pelo menos, é o que mostra um estudo realizado pela organização internacional de combate à pobreza ActionAid, divulgado nesta quarta-feira (30). A maioria das brasileiras entre 14 e 21 anos, 53%, convive diariamente com essa sensação.
“A ideia de que mais da metade das jovens brasileiras sai de casa todos os dias temendo sofrer algum tipo de violência é alarmante. Indica o nível de normalização de atitudes que agridem e provocam danos sobre suas vidas. Sentir medo não é normal”, afirma Ana Paula Ferreira, coordenadora de Direito das Mulheres da ActionAid no Brasil.
Seja no trabalho, no transporte público, em um restaurante ou festa, a sensação de perigo que acompanha a mulher aparece em diversos momentos do dia e afeta muitas das suas atitudes rotineiras. “Desde a roupa que estou vestindo, até a feição com que eu ando na rua são estrategicamente pensadas para tentar me proteger”, fala Aline.
O medo é real: entre as entrevistadas, 78% disseram que haviam sido assediadas nos últimos seis meses. O sentimento é tão frequente que, muitas vezes, é naturalizado até mesmo pelas próprias mulheres.
“Por mais que eu saiba que o que eu visto, o horário que estou na rua ou se estou acompanhada ou sozinha não deveriam ser ‘facilitadores’ para que eu seja assediada, acabo me preocupando com isso até sem perceber. Quando vou ver, já estou trocando de roupa ou cancelando um compromisso por medo”, reconhece Aline.
“O que algumas pessoas podem achar engraçado, ou mesmo um elogio, faz com que muitas meninas alterem suas rotinas, se desmotivem nas escolas, criem estratégias para transitar pelas ruas, ou mesmo gastem mais dinheiro para evitar se expor nos espaços públicos. São jovens e adolescentes iniciando a vida adulta, e isso impacta seu desenvolvimento pessoal, econômico e social”, alerta Ana Paula.
O levantamento mostrou que, entre os países analisados, o Brasil é o lugar onde as meninas mais se sentem ameaçadas cotidianamente, na comparação com Quênia (24%), Índia (16%) e Reino Unido (14%).
A pesquisa, foi realizada com 2.560 jovens, entre homens e mulheres, com idades de 14 a 21 anos nos quatro países, teve o objetivo de descobrir quando e onde a exposição ao ódio contra as mulheres começa, e como as experiências generalizadas de assédio sexual ocorrem durante a adolescência.
No Brasil, o estudo foi realizado em dezembro de 2018 e ouviu 500 jovens – 250 mulheres e 250 homens. A amostra incluiu participantes de todos os níveis de escolaridade e de todas as regiões do país.
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Tipos de assédio
Presente em várias situações, o assédio pode surgir em diferentes momentos e formas. Quando perguntadas quais tipos de agressões sofreram, as participantes da pesquisa relataram ser o assédio verbal o mais frequente, com 41% delas tendo passado pelo incômodo.
Os assovios vêm logo atrás (39%), seguidos de comentários negativos sobre sua aparência em público (22%), comentários negativos sobre sua aparência nas redes sociais (15%), pedidos de envio de mensagens de texto com teor sexual (15%), piadas com teor sexual que as envolviam feitas em público (12%), piadas com teor sexual que as envolviam feitas nas redes sociais (8%), beijos forçados (8%), apalpadas (5%), fotos tiradas por baixo da saia (4%) e fotos íntimas vazadas nas redes sociais (2%).
Setenta e seis por cento disseram se sentir confortáveis com a ideia de contar a alguém o que havia acontecido – 77% das meninas entre 14 e 16 anos afirmaram que o tinham feito.
Os 88% dos brasileiros que afirmaram ter testemunhado algum tipo de atitude depreciativa contra meninas nos últimos seis meses afirmaram que os principais praticantes foram pessoas da família (39%) e amigos (34%) dos jovens entrevistados, o que mostra que a misoginia está arraigada nas relações sociais.
Quando perguntados em quais espaços viram, ouviram ou leram conteúdos ofensivos ou negativos sobre mulheres, o grupo pesquisado no país listou, principalmente, as redes sociais (55%), seguidas de filmes ou programas de TV (43%), letras de músicas (34%), e celebridades e personalidades (23%).
“É importante que esta pesquisa tenha ouvido também meninos, pois a discussão sobre a violência contra a mulher envolve a todos. Homens que assediam o fazem por diversas razões, incluindo o fato de que foram ensinados, em alguma medida, que isso é normal”, pontua Ana Paula.
Para entender melhor o comportamento dos agressores, os jovens dos quatro países pesquisados foram questionados sobre o motivo pelo qual eles acreditam que as situações de assédio sexual aconteceram.
A maioria, 85%, apontou a vontade de impressionar os amigos, achar que seria engraçado ou acreditar que isso é “o que os homens fazem” como razões mais prováveis para a atitude do agressor.
No Brasil, uma proporção maior de jovens (44%) respondeu que o assédio testemunhado foi motivado pela crença do agressor de que a vítima consideraria um elogio ou ficaria feliz por alguém considerá-la atraente.
Combate ao assédio começa pela educação
A boa notícia é que em todos os países onde o levantamento foi feito, 80% dos participantes declararam acreditar que a educação é, predominantemente, a resposta para combater os abusos contra meninas e mulheres.
No Brasil, 59% disseram que ensinar os meninos nas escolas sobre como tratar as meninas é o caminho; 54% apontaram a educação de meninas, também nas salas de aula, sobre como denunciar assédios como medida importante; e 41% acreditam na necessidade de conscientizar professores a levarem as denúncias a sério, mesma porcentagem dos que afirmaram também ser importante educar os pais.
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“A proteção de meninas e mulheres é responsabilidade de toda a sociedade, e todas as instituições devem se mobilizar para isso, desde a família, passando pelos espaços religiosos, culturais, educacionais e laborais. Só assim todas nós poderemos conhecer, um dia, a liberdade de não sentir medo de assédio
”, conclui Ana Paula.