Cubafoi o primeiro país da América Latina a legalizar o aborto, em 1965. Porém, muitos anos se passaram até que mulheres, homens trans e demais pessoas com capacidade de gerar tivessem pleno acesso a seus direitos reprodutivos em territórios latino-americanos. Enquanto alguns países possuem legislação semelhante à brasileira, em que o aborto é permitido em alguns casos específicos, em outros, a prática é totalmente proibida - e criminalizada. É o caso de Honduras, Nicarágua, El Salvador, Jamaica, Haiti, República Dominicana e Suriname.
Hoje apenas 8 países da região permitem a interrupção voluntária da gravidez: Argentina, Guiana Francesa, Guiana, Porto Rico, Cuba, Colômbia, México e Uruguai. Apesar da recente "maré verde", no Brasil, projetos como Estatuto do Nascituro visam eliminar as poucas possibilidades de aborto legal que existem hoje. São elas: gravidez resultante de estupro, que apresente risco de morte para a gestante e no caso de fetos anencefálicos (má formação em que o feto não desenvolve o cérebro, tornando inviável a vida fora do útero).
A questão da legalização do aborto é importante para mulheres e pessoas com capacidade de gestar (como homens trans e pessoas não-bináries que possuem útero) por duas questões. Em primeiro lugar, trata-se de um tema de saúde pública , já que, empurradas para a ilegalidade, pessoas que desejam interromper a gestação ficam à mercê de clínicas clandestinas ou de medicamentos vendidos no mercado paralelo para fazer o procedimento em casa, sem assistência de saúde ou apoio psicológico.
Isso tudo resulta em mortes, traumas e internações hospitalares que poderiam ser evitadas. Estima-se a cada dois dias uma mulher morra no Brasil em razão de abortos realizados em condições precárias.
Mas a legalização não é apenas uma questão de saúde pública. Ela é também uma questão de liberdade, visto que o Estado não deveria obrigar ninguém a levar uma gestação indesejada adiante. Ao contrário do que se imagina, as pessoas que abortam não são adolescentes, em sua maioria. Muitas já são mães que não podem ou desejam ter mais um filho . Essas pessoas não podem ser obrigadas, sob ameaça de prisão, a ser incubadoras a serviço do Estado.
Apesar dessa ameaça de retrocesso parecer vir do presidente e seus apoiadores – notadamente a bancada evangélica – a batalha pelos direitos reprodutivos esbarra num obstáculo que precisamos conhecer e confrontar: o fato de que o campo político dito de esquerda (ou progressistas) sempre optou por retirar essa pauta em troca de apoio político do Centrão e da mesma bancada evangélica que hoje apoia Bolsonaro. Esse campo precisa ser cobrado.
Será que vem aí?
Desde a redemocratização, a questão do aborto no Brasil esbarra na influência da Igreja Católica nos movimentos sociais (que também é forte nos demais países da América Latina). Na Assembleia Constituinte, a Igreja Católica pressionou para a inclusão de uma cláusula protegendo a vida “desde a concepção”. O movimento de mulheres da época conseguiu barrar essa proposição, mas não foi possível avançar em direção à descriminalização do aborto.
Em 2006, em seu segundo mandato, o governo Lula acabou retrocedendo em relação ao direito ao aborto diante de suspeitas de seu envolvimento em casos de corrupção, para obter apoio dos setores mais conservadores e assegurar a governabilidade. Naquele ano foi formada a Frente Parlamentar em Defesa da Vida e o movimento Brasil Sem Aborto, cujos membros tiveram influência considerável sobre às eleições para presidência e cargos legislativos (deputados e senadores).
Porém, foi em 2010 que a questão do aborto se tornou central numa disputa à presidência da República. Foi justamente naquele ano que Dilma Rousseff se elegeu, não sem antes assinar a Carta Aberta Ao Povo de Deus, onde se comprometia a não tomar providências em relação à legalização do aborto, promessa que cumpriu em seus dois mandatos na Presidência. Desde então, o crescimento da presença de evangélicos fundamentalistas no Congresso tornou ainda mais difícil não só retornar a essa discussão, como tentou ampliar a proibição e a criminalização do aborto no país.
Eduardo Cunha, presidente da Câmara dos Deputados entre 2015 e 1016, afirmou ao ser eleito presidente da casa que o aborto só iria à votação por cima de seu cadáver. Contudo, o que se verifica é que entre os anos de 2000 e 2010, o número de projetos antiaborto superou o daqueles que visam a expansão desse direito, conforme aponta a cientista política Flávia Biroli no livro "Gênero e Desigualdades: limites da democracia no Brasil".
Além de insistir na criminalização das mulheres (e demais pessoas com capacidade de gestar), os projetos conservadores passaram a adotar um “enquadramento protetivo”. Em outras palavras, buscavam conferir direitos ao feto, enquanto solicitavam assistência social para as mulheres não recorrerem ao procedimento, bem como as tentativas de dificultar o acesso de vítimas de violência sexual aos contraceptivos de emergência (a pílula do dia seguinte).
Por fim, cabe lembrar que na campanha eleitoral de 2018, o candidato petista Fernando Haddad, não obstante ter naquela ocasião como vice uma mulher que se declara feminista, se esquivou do tema em encontro com pastores evangélicos, lembrando que nenhum dos governos petistas encaminhou para votação de projetos sobre o tema.
Hoje, diante de uma esquerda institucional voltada para as eleições do próximo ano e tendo Lula como a principal opção para derrotar Bolsonaro, a pauta dos direitos reprodutivos caiu no esquecimento por muito tempo. Contudo, recentemente o tema voltou a surgir na fala do ex-presidente.
Enquanto afirma que o aborto é um direito da mulher, Lula frisa ser pessoalmente contra ao procedimento. Vale lembrar que cada vez Lula tem mais tem afirmado ser cristão e conservador, é reforçado pela escolha de Alckmin como seu candidato a vice. Como isso dialoga com a defesa do aborto? Eu ouvi falar Estado laico ou estou me iludindo por declarações vazias?
Ser feliz ou ter razão?
Gostaria de ser otimista e imaginar que o Brasil em breve sera atingido pela maré. Que caso Lula seja eleito em outubro, a matéria será encaminhada ao Congresso, aprovada e sancionada pela Presidência. Mas eu segui o conselho do ET Bilu e nesse negócio de buscar conhecimento a gente não pode ir muito fundo, senão dá vontade de chorar. Como diria Gloria Steinem, a verdade te libertará, mas primeiro vai te deixar bem irritada.
Conforme pontua Biroli, a questão da maternidade compulsória (a ideia de que toda mulher deve ser mãe), mais do que crenças religiosas individuais, tem a ver com equidade entre as pessoas, pluralidade de crenças, direito à descrença, à saúde e ao mercado de trabalho. A resposta conservadora é a abstinência sexual ao invés de educação sexual, prevenção de gestações não-planejadas e acesso ao aborto seguro.
Como feminista, parece-me que a resposta não é suficiente, já que a proibição empurra para a ilegalidade e precarização. Estou cansada de ver pessoas públicas com poder de mudar as coisas dizendo que "precisamos discutir, mas veja bem, eu sou contra". Porque discutir não é resolver. Dizer que pessoalmente é contra, não salva a vida de ninguém. Isso só serve pra se revestir de moralidade cristã e para acenar para pessoas que se pretendem religiosas, mas acreditam que é bem feito alguém morrer por decidir interromper uma gestação.
Há um ditado na Internet que diz: você quer ser feliz ou ter razão? Eu não creio nessa falsa dicotomia, porque a ignorância não é uma bênção. E eu não quero ser feliz, eu quero ser livre. Para ser livre eu preciso que eu, outras mulheres e pessoas portadoras de útero sejam donas de seus corpos.
Então eu espero não ter razão de apontar que essas declarações por si só não querem dizer absolutamente nada e, além disso, emergem num momento bastante oportuno, já que a composição dessa frente super ampla está difícil de engolir.
Mas será que vem aí? Eu não sei. Gostaria de dizer que sim, mas por enquanto o que eu sei é que todo mundo usa suas cortinas de fumaça e que algumas são bem coloridas. É preciso estar atenta para não se deixar iludir e nem se deixar usar por elas.
Em nosso nome, não.