Quem acompanha "Mar do Sertão", a atual novela das seis da TV Globo, se deparou com um feito inusitado: na trama, a atriz Heloisa Jorge dá vida à Dagmar, uma pastora com ideias progressistas, da fictícia cidade de Canta Pedra, e que rompe com os padrões patriarcais, que geralmente nos fazem ver homens interpretando líderes religiosos nas telinhas.
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Heloisa Jorge tem 38 anos e é angolana natural de Lunda Norte, radicada no Brasil desde os 12 anos de idade, filha de mãe angolana e pai brasileiro.
Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), a atriz possui uma sólida carreira no cenário teatral: foi indicada ao prêmio Braskem de Teatro em Salvador nas categorias de Melhor Atriz e Melhor Atriz Coadjuvante, pelos espetáculos "O Dia 14" (Cia de Teatro Abdias do Nascimento) e a "Farsa da Boa Preguiça", sob direção de Harildo Deda.
Nos palcos, também protagonizou o espetáculo "Dona Ivone Lara", musical com direção de Elísio Lopes Jr, no qual interpretou a rainha do samba em sua fase jovem.
Na Rede Globo, fez parte dos elencos das novelas "Gabriela" (Walcyr Carrasco), "Liberdade Liberdade" (Mário Teixeira), "A Lei do Amor" (Maria Adelaide Amaral) e "A Dona do Pedaço" (Walcyr Carrasco) e das temporadas 1 e 2 da série médica "Sob Pressão", escrita por Lucas Paraiso e dirigida por Andrucha Waddington.
Além da TV e do teatro, Heloisa também coleciona trabalhos no streaming. Ela pode ser vista em "Jogo da Corrupção"; e também em "Sentença", ambas do Prime Video. Neste ano, ainda estreia nas séries "Fim", baseada no livro homônimo da atriz e escritora Fernanda Torres; "Cilada", criada pelo humorista Bruno Mazzeo; e na nova temporada "Cine Holliúdy", todas do Globoplay.
Heloisa Jorge conversou com o iG Delas
sobre os desafios em dar vida à pastora Dagmar em "Mar do Sertão", a carreira nas telinhas e os projetos para 2023. A global também nos contou sobre a sua relação com o país de origem, Angola, e a experiência morando no Brasil. Confira a seguir!
iG DELAS: Como foi o seu preparo para viver a personagem Dagmar, em "Mar do Sertão", atual novela das seis da Rede Globo? Houve alguma inspiração?
Eu tenho uma inspiração, que é o pastor Henrique Vieira. Eu o conheci durante um trabalho no espetáculo "O Jornal - The Rolling Stone", dirigido pelo Kiko Mascarenhas e co-dirigido pelo Lázaro Ramos. O espetáculo falava sobre intolerância religiosa lá em Uganda, e o Lázaro acabou trazendo o pastor Henrique para conversar com a gente. Eu lembro que fiquei absolutamente encantada pela fala dele. Ele é um pastor evangélico, batista, mas com ideais super progressistas. Ele é um homem jovem, negro e tem um discurso muito voltado para as questões sociais aqui do Brasil. Por conta de um preconceito, a gente sempre dissocia a religião da questão social, e o pastor Henrique leva as questões sociais para dentro da igreja de uma maneira muito bonita, leve, respeitadora. Leva discursos que contemplam o respeito às diferenças e a tolerância às outras religiões. Então ele tem sido a minha principal inspiração para viver a pastora Dagmar. E eu acho que tem dado certo: tenho recebido muitos retornos legais das pessoas, falando de como ela não é estereotipada, de como é leve, humorada, elogiando as questões sociais que ela questiona. Além disso, eu li e assisti muitas coisas, conversei com uma pastora também para trazer a questão feminina, porque é uma líder religiosa, uma mulher dentro de um ambiente que tem como referência sempre o homem, que empre teve uma visão masculina muito forte, e eu acho que esta está sendo a oportunidade de questionar muitas coisas.
Na trama, você interpreta uma líder religiosa, que foge dos estereótipos e dos padrões patriarcais, já que normalmente vemos atores homens vivendo esses papéis. Como você vê isso?
Eu acho que todos os personagens dão a oportunidade de falar sobre muitas coisas, né? Às vezes coisas mais contundentes, às vezes não. Mas eu acho que a Dagmar caiu no meu colo num momento super oportuno, porque a gente vive num país que é intolerante, num país que é racista, homofóbico, que nos últimos anos viveu uma política genocida, quase como uma ode ao ódio. Eu gosto muito da leveza da Dagmar, de como ela fala de questões muito sérias com humor. E eu acho que o fato de ser uma mulher falando de religião tem a coisa de dar voz a questões sociais e dar voz através de uma mulher, né? É como se eu estivesse emprestando a minha voz para falar sobre tudo o que incomoda. A novela tem essa cidade fictícia, Canta Pedra, mas que a gente poderia chamar de um grande Brasil. Tem a luta pelo poder, as questões sociais, e muitas vezes, esses personagens são vividos por homens brancos. Então é muito legal que essa líder religiosa seja uma mulher e que não tenha as características que geralmente se espera de um líder religioso ocupando esse espaço.
Ainda nesse sentido, quais são os principais desafios de viver uma líder religiosa?
Todos os depoimentos que eu assisti e as mulheres com quem eu conversei falavam sobre a dificuldade de serem ouvidas, principalmente porque são mulheres. É um ambiente muito masculino. Elas falavam sobre a dificuldade de a palavra delas ser respeitada e de furar essa bolha que é muito masculina, e ao mesmo tempo trazer as questões femininas, porque a grande maioria delas é mãe, tem família, tem que dar conta dos filhos, da casa e prestar apoio aos fiéis. Então existe um descrédito muito grande quando se trata das pastoras e eu não, por exemplo, não sabia disso porque era um universo muito distante do meu. Eu não sou evangélica, eu não tenho religião. Eu sou simpatizante do candomblé, não sou iniciada, mas respeito muito a religião, porque acho que me aproxima muito da minha cultura. Foi muito bonito ouvir elas falarem do que passam ou passaram para chegar até onde chegaram. Elas estudaram, se formaram, mas ainda assim não têm a mesma credibilidade de um pastor, por exemplo. Então, eu acho que a Dagmar é uma oportunidade maravilhosa para discutir essas questões, usando como pano de fundo a religião.
Quais são as principais diferenças entre você e Dagmar?
As diferenças são muitas: primeiro, o universo, que não é o meu universo, eu me afastei das religiões. Quando eu era muito novinha, eu cantava na Igreja Católica e aí ouvia muita coisa que não concordava. Por exemplo, eu não fiz primeira comunhão, eu cheguei a fazer as aulinhas para fazer, para ser crismada, mas aí eu comecei a questionar muita coisa. Eu me sentia muito desconfortável dentro da religião. Eu lembro que, quando eu cantava lá em Montes Claros (MG), na cidade do meu pai, tinha o mês de Maria, em maio, e aí eu lembro que a gente se vestia de anjo, e eu era uma das crianças que tinha a voz mais bonita, e eu sempre era colocada atrás. Isso me marcou profundamente: eu não sabia porquê eu estava cantando lá atrás, se a minha voz era uma das vozes mais bonitas, era elogiada pelas professoras, era elogiada lá no coral. Mas eu não tinha a imagem esperada de um anjo. Eu estou falando lá dos anos 90, de uma cidade super conservadora do norte de Minas. E eu acho que a Dagmar abraçou a religião de uma maneira que eu, por exemplo, não abraçaria. Então acho que essa é a nossa principal diferença. Apesar de eu ser uma pessoa que tem muita fé, fé na vida, nas pessoas, no que não é possível ver, eu não tenho a religião como meu mote, como a minha condução, digamos assim.
Você já fez novelas tanto em Angola quanto aqui no Brasil. Eu queria saber quais você sente serem as principais diferenças tanto em questão de produção, quanto em enredo e recepção do público nos dois países?
Foi muito diferente fazer a novela em Angola porque foi a minha primeira protagonista. Eu nunca tinha feito uma protagonista num folhetim. Quando eu fui para lá, eu só tinha feito "Gabriela", que foi a minha primeira novela, em 2012. E a minha personagem era muito pequena, eu não tinha um volume de gravação muito grande. Eu ainda estava estudando, estava na faculdade, então eu ia e vinha de Salvador praticamente toda semana. Não é que o trabalho foi diferente, mas eu acho que o nível de comprometimento quando se faz um protagonista é completamente diferente da experiência que eu já tinha tido aqui.
A Globo é uma grande referência não só para Angola, mas para grande parte dos países africanos. Ela tem um alcance mundial. E a gente não tinha uma cidade cenográfica como a gente tem aqui no Rio de Janeiro, aqui nos Estúdios Globo. Foi num momento em que a produção de folhetins em Angola ainda estava engatinhando, tanto que a grande maioria dos atores eram portugueses, né? Era uma coprodução Angola-Portugal.
De produção, não mudava nada, porque tinha profissionais muito competentes de Angola e de Portugal para poder fazer a novela. Ela foi dirigida por um diretor português super respeitado, que é o Sérgio Graciano, e eu aprendi muito com ele. Eu acho que falando de folhetim, a Djamila [personagem] para mim foi uma grande escola, porque tinha um volume de gravação muito grande por dia. Hoje em dia, quando eu vejo as pessoas protagonizando qualquer coisa aqui no Brasil, eu respeito muito, porque não é fácil. É muita abdicação, entrega, comprometimento. Apesar de ter voltado para Angola para protagonizar a novela, foi o momento que eu menos vi a minha família, porque eu estava completamente mergulhada no processo, era uma responsabilidade muito grande.
Na Rede Globo, você já fez parte do elenco de "Gabriela", "Liberdade Liberdade", "A Lei do Amor", "A Dona do Pedaço" e também das temporadas 1 e 2 da série "Sob Pressão". Em novembro de 2020, fez parte do especial "Falas Negras" e em 2021, do especial de Natal "Juntos a Magia Acontece 2". Vêm mais projetos por aí? O que você poderia adiantar para a gente?
Vêm, vem uma série que eu estou super ansiosa para assistir, que é a "Fim", dirigida pelo Andrucha Waddington e Daniela Thomas e baseada no romance da Fernanda Torres. Eu acho que a gente estreia em abril, no Globoplay. E tem outra, a "How to be a Carioca", para o Star+. Esta eu estou super curiosa para assistir, porque eu fiz uma personagem angolana, trabalhei com dois atores angolanos — um deles até trabalhou comigo na novela que eu fiz em Angola. Ele era pequenininho e interpretou meu filho. Ele veio para o Brasil para fazer essa série. Trabalhei com o Licínio Januário, que também é angolano radicado no Brasil. Então, foram duas experiências incríveis que eu estou muito ansiosa para ver o resultado.
Helô, e falando de streaming, você também fez parte dos seriados "Jogo da Corrupção" e "Sentença", ambos do Prime Video. Como você fez e faz para conciliar o tempo entre as gravações? E qual o seu formato favorito (streaming, TV, teatro…)?
O meu formato preferido é o trabalho, estar em exercício, independentemente do gênero. Eu gosto muito do que eu faço e não consigo me imaginar fazendo outra coisa. Claro que a gente muda de ideia, o tempo vai passando, mas eu adoro trabalhar, independente de ser teatro, televisão ou cinema. Os streamings também têm trazido muito a oportunidade da gente se aproximar das séries. É um lugar bem desafiador, um pouco mais artesanal do que o folhetim, porque são projetos curtos, mas com um volume de gravação maior.
Eu acho que nas séries o trabalho é menos solitário do que nas novelas. Essa é a minha impressão, eu posso estar errada também. Mas o tempo de preparação é maior, as histórias geralmente são mais compactadas. Aí você tem a oportunidade de ver os personagens amadurecendo e ganhando forma. Nas novelas, é tudo muito rápido, né? E o público é praticamente um coautor, o que é o grande barato de ter de ter uma obra aberta — o grande barato e o grande risco também.
Tudo me dá frio na barriga. E o teatro eu falo que é a minha casa, porque é onde tudo começou. É o meu lugar de pesquisa, o meu chão, o meu berço. Foi onde eu nasci como artista. Mas eu não gosto de falar sobre o que eu prefiro, porque eu acho que cada um tem a sua linguagem, tem a sua riqueza e é escrito de um jeito diferente.
E quais são os planos para 2023? Podemos esperar te ver mais no teatro também?
Estou muito saudosa de fazer teatro. O último espetáculo que eu fiz foi o musical "Dona Ivone Lara". A gente fez uma temporada bem longa no Rio, foi um processo super intenso, e aí na segunda temporada, em São Paulo, eu estava fazendo a novela "A Dona do Pedaço" e aí já foi um pouco mais difícil conciliar a televisão e o teatro. Eu não sei como os atores fazem isso (risos). Eu respeito muito quem consegue. Eu fiquei exaurida porque eu acho que o teatro tem uma exigência quase que insana, né? Eu não me vejo mais conciliando o teatro com a televisão, por exemplo. Pode até acontecer, mas não é muito confortável para mim. Não tenho planos ainda, já tem conversas sobre estar no palco, sobre um texto bem interessante para 2023, mas não tem nada firmado — só o desejo e a saudade, que eu acho que já estão chamando coisas (risos).
Helô, e como começou a sua relação com a atuação?
Começou de um jeito muito despretensioso, lá em Montes Claros, na época da escola. Quando eu cheguei aqui no Brasil, tinha muita dificuldade de me inserir. Eu era pré-adolescente e tinha uma timidez absurda, porque chamava muita atenção o fato de eu ser angolana, de ser refugiada, de não ser brasileira, eu não sabia direito como me enquadrar. E isso era desconfortável para mim. E aí eu não lembro exatamente como aconteceu, mas eu comecei a reproduzir o sotaque mineiro, e os meus colegas foram ficando meio que impressionados com a minha capacidade de imitar. Eu comecei a ficar popular, porque eu fui colocando isso nos meus trabalhos de escola. De repente, eu estava transformando um trabalho de matemática numa grande encenação, eu ensaiava, eu dirigia. Todo mundo queria ser do meu grupo. Mas nessa época eu nem imaginava viver como atriz. Depois disso, eu comecei a fazer parte de uma companhia de teatro da cidade e a viajar de caminhão para se apresentar no interior.
Quando eu fiz 18 anos, eu pensei na possibilidade de fazer artes cênicas, mas naquela altura, era só curiosidade. Eu não queria viver como atriz, porque eu achava que era impossível pagar as contas, né?Era isso que eu escutava dentro de casa, que a minha mãe dizia, minha família dizia. E também tinha uma expectativa muito grande da minha família em Angola, já que eu tive a oportunidade de estudar aqui no Brasil, de talvez me formar em Medicina ou Direito.
Na época, eu fui pesquisando as possibilidades. Com 17, 18 anos é a fase que você tem que tomar decisões e eu acho isso super cruel. Eu falei "Eu vou fazer artes cênicas" e eu fiz a inscrição para o vestibular na federal de Minas e passei também em Salvador. E como eu tenho uma relação afetiva muito grande com a Bahia e com Salvador, porque me lembra muito a Angola, me dá uma sensação de pertencimento e de identidade, eu fui para lá. E aí era para ficar quatro anos, apenas concluir a universidade e voltar para Montes Claros, mas eu nunca mais voltei. Em vez de quatro anos, eu fiquei dez em Salvador: morando, trabalhando, estudando, fazendo parte de companhia de teatro, ganhando dinheiro no audiovisual. E aí comecei a viajar e me desenvolver como mulher e como artista também.
Por fim, você veio para o Brasil refugiada. A gente quer saber o que você sente mais falta de Angola e como você vê a sua relação com o Brasil.
Eu sinto mais falta da minha família, das festas de quintal, daquela mulherada falando alto, parecendo que está brigando uma com a outra. Eu moro sozinha desde os 18 anos, então eu sempre tive silêncio dentro de casa. Sinto falta das minhas relações, das melhores amigas de infância, com quem eu falo até hoje. Algumas já são mães, outras já seguiram outros caminhos. Tem gente que mora em Angola, tem gente que já deixou Angola. Eu sinto falta do cheiro de comida, eu sinto muita falta de fazer um funge por exemplo, que é uma comida típica angolana. Comer sozinha um funge não é a mesma coisa de comer acompanhado ou com a família. Sinto falta das músicas. Sinto falta de tudo. Quando eu voltei para Angola para fazer a novela, foi muito interessante me perceber também: já muito brasileira e me achando muito angolana. E aí quando eu voltei pra cá, me achava muito angolana, e as pessoas aqui me achando já não tão brasileira assim.