Por que as pessoas se vêem no direito de violar a privacidade das mulheres?
Reprodução/Instagram
Por que as pessoas se vêem no direito de violar a privacidade das mulheres?

A influenciadora Gabi Brandt, no finalzinho de 2022, usou as redes sociais para confirmar que estava grávida do terceiro filho. Mas mesmo antes, os rumores sobre a suposta gravidez já circulavam nas principais páginas de fofoca. Em uma publicação no Instagram, Gabi "parabenizou" os envolvidos que a teriam dado "um momento difícil e delicado" e lhe tirado o direito de contar a novidade para os amigos e até para a família quando estivesse pronta. 

A situação é ainda mais delicada: ela, que já é mãe de Davi (3) e Henri (1), revelou que estava esperando o momento certo para fazer o anúncio porque a nova gravidez é de extremo risco,  com placenta prévia. Esta não foi a primeira e nem será a última vez que uma famosa tem a intimidade exposta totalmente de graça na internet. Mas por que as pessoas se vêem no direito de violar a privacidade das mulheres?

"A gente vive num regime patriarcal, no qual as leis de organização da sociedade foram criadas por homens, e as mulheres foram submetidas através da força a obedecer essas leis. Então, de certa forma, as mulheres vêm sendo moldadas há milhares de anos para que elas tenham seus corpos controlados pela sociedade. E quando eu falo corpo, eu não falo apenas do corpo físico, mas também das questões emocionais, afetivas, cognitivas e de comportamentos com elas mesmas e com os outros", explica a professora do Departamento de Psicologia da UNESP e especialista em Violência contra a Mulher Nilma Renildes.

Ela acrescenta: "Desde que se pensa a questão do público privado, à mulher foi reservado o privado, as quatro paredes, a casa, o lugar da reprodução, do cuidado com a família. Então, a gente vai ver um controle da mulher em todas as instituições que regulam a sociedade. Você vê as igrejas ditando como as mulheres devem pensar e agir… Escolas, sociedade, família, todas as instituições. E os homens não recebem esse mesmo tratamento. Para alguns, essa exposição pode ser até interessante, benéfica".

Klara Castanho

Em 2022, durante uma entrevista ao programa "The Noite" (SBT), do Danilo Gentili, o jornalista Léo Dias afirmou que tinha uma história que nunca havia noticiado mas estava "doido para contar". "Vivi um dilema recentemente, muito recente, esse mês. É coisa inacreditável, coisa da sociedade se questionar muitas vezes, mas envolve uma atriz... É muito pesado", disse ele, se referindo a Klara Castanho.

"Não é uma coisa feliz, é uma coisa...", começou, antes de ser interrompido por Gentili: "Não precisa falar". Dias respondeu: "Tá bom. É muito denso. [...] O carma vai ser grande". O apresentador então insistiu e perguntou se a história envolvia "uma pessoa que está enganando todo mundo". Léo Dias confirmou e falou que a história "envolvia vidas".

"Você está me dizendo que tem uma pessoa pública, que é uma atriz, que vende uma imagem que todo mundo acha que é santinha, que é uma pessoa do bem...", indagou Danilo Gentili. "A conta vai chegar", rebateu o jornalista. Ele ainda disse achar "maldade" a reação da atriz: "Mas envolve muita coisa e eu decidi não publicar", concluiu.

Dias depois foi a vez de a apresentadora Antonia Fontenelle falar sobre o assunto pela primeira vez, durante uma transmissão ao vivo pelas redes sociais. Sem citar nomes, mas em tom de desaprovação, ela disse que uma atriz de 21 anos da TV Globo "engravidou, escondeu a gravidez, inclusive trabalhou durante a gravidez, pariu, pediu para apagar sua entrada no hospital e disse que nem queria ver o filho".

Ela ficou sabendo do caso por Léo Dias e comentou sobre o contato entre o jornalista e atriz: Klara teria chorado muito e dito que a gravidez aconteceu por causa de um estupro. "A religião dela não permite que ela aborte, mas permite que ela tenha uma criança e fale: 'Não quero saber, não quero ver, tira de mim'", declarou Antonia Fontenelle.

E continuou: "Se foi vitima de um estupro, por que no dia seguinte não foi lá tomar providências pra não deixar virar um feto, para não fazer um aborto, uma vez que é contra o aborto?".

Atriz faz desabafo nas redes sociais e revela que foi estuprada, engravidou e entregou criança para adoção…

Depois das declarações, a atriz Klara Castanho publicou uma carta aberta em suas redes sociais em que revelava que foi estuprada, engravidou e decidiu entregar o bebê para adoção. No relato, ela também repudiou o vazamento do caso. "Não posso silenciar ao ver pessoas conspirando e criando versões sobre uma violência repulsiva e um trauma que sofri", afirma ela. "Esse é o relato mais difícil da minha vida. Pensei que levaria essa dor e esse peso somente comigo."

"Fui estuprada. Relembrar esse episódio traz uma sensação de morte, porque algo morreu em mim. Não estava na minha cidade, não estava perto da minha família nem dos meus amigos", continuou. A artista contou que não fez boletim de ocorrência porque sentiu muita vergonha e culpa. "Tive a ilusão de que se eu fingisse que isso não aconteceu, talvez eu esquecesse, superasse. Mas não foi o que aconteceu".

Segundo ela, os fatos até então já eram suficientes para se sentir machucada. Mas não havia parado por aí. Meses depois, Klara afirmou ter sentido um mal-estar e o médico sinalizou que poderia ser uma gastrite, hérnia estrangulada ou mioma, e ela foi submetida a uma tomografia, que precisou ser interrompida às pressas. Foi aí que ela descobriu que estava gerando um feto. "Foi um choque, meu mundo caiu. Meu ciclo menstrual estava normal, meu corpo também. Eu não tinha ganhado peso nem barriga".

Em seguida, a atriz revelou que sofreu uma nova violação: o profissional que a atendeu a obrigou a ouvir o coração da criança. "O médico não teve nenhuma empatia por mim. Eu não era uma mulher que estava grávida por vontade e desejo, eu tinha sofrido uma violência. E mesmo assim, o profissional me obrigou a ouvir o coração da criança, disse que 50% do DNA eram meus e que eu seria obrigada a amá-lo".

Pela lei, Klara poderia ter feito um aborto legal, mas tomou a decisão de entregar o bebê direto para adoção. Ela admitiu que contratou uma advogada e fez todos os trâmites legais. "A criança merece ser criada por uma família amorosa, devidamente habilitada à adoção, que não tenha lembranças de um fato tão traumático", disse.

Vazamento da informação e violação da privacidade

Klara Castanho também comentou que no dia em que a criança nasceu, ainda anestesiada do pós-parto, foi abordada por uma enfermeira que ameaçou contar o caso para um colunista. "Quando cheguei no quarto, já havia mensagens do colunista, com todas as informações. Ele só não sabia do estupro. Eu conversei com ele, expliquei tudo o que tinha me acontecido". Klara não citou nomes e ainda revelou que foi procurada por outra pessoa do meio.

"Eu estava dentro de um hospital, um lugar que era supostamente para me acolher e proteger. O fato de eles saberem mostra que os profissionais que deveriam ter me protegido em um momento de extrema dor e vulnerabilidade, que têm a obrigação legal de respeitar o sigilo da entrega, não foram éticos, nem tiveram respeito por mim nem pela criança", concluiu.

Depois do relato da artista, Léo Dias chegou a publicar uma matéria sobre o caso, pelo site Metrópoles, do qual é colunista. Após repercussão negativa, a publicação foi retirada do ar e o jornalista e o portal pediram desculpas pela atitude.

Processo

A atriz de 21 anos entrou com uma queixa-crime contra Dias e Antonia Fontenelle pelos crimes de difamação, calúnia e injúria. O hospital onde Klara passou pelo parto também havia informado que abriria uma sindicância interna para investigar a denúncia feita pela artista sobre a enfermeira que teria ameaçado divulgar para a imprensa informações sobre a entrega da criança para adoção. Além disso, o Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo (Coren-SP) anunciou que faria uma apuração sobre o caso.

Na última semana, contudo, o Coren  arquivou o processo de investigação do caso Klara Castanho. Em nota, afirmou que "não constatou a participação de nenhum profissional de enfermagem em relação ao vazamento de quaisquer informações sigilosas de pacientes".

Tanto Klara quanto Gabi Brandt decidiram se posicionar nas redes sociais para expor e lamentar a violência que sofreram e desabafar sobre a violação de seus direitos. "Eu acho que esses dois casos servem para a gente lembrar como nós, mulheres, apesar de termos avançado bastante em nossas pautas, ainda estamos longe de atingir o que gostaríamos, que é o direito sobre os nossos corpos", diz a professora Nilma Renildes.

Já em 2012, a atriz Carolina Dieckmann teve fotos íntimas vazadas na internet após um ataque hacker ao seu computador. O escândalo foi um dos primeiros vazamentos de nudes que ganharam repercussão no país. Tempo depois, os suspeitos chegaram a ser identificados, e a global deu nome a uma lei para crimes virtuais e delitos informáticos: a Lei Carolina Dieckmann ou Nº 12.737/2012.

Durante entrevista ao jornal O Globo, no ano passado, Carolina voltou a falar sobre o assunto. "Tive que explicar tudo, coisas que hoje eu não precisaria, como a razão de ter mandado as fotos ao meu marido, porque tinha feito aquilo", respondeu, questionada se as coisas teriam sido diferentes se o caso acontecesse hoje.

"Sempre me senti um pouco vítima disso tudo. Mas continuo mandando nudes para ele. Se as fotos vazarem de novo, o que fazer? Fod*-se", declarou.

O que a lei diz sobre vazamento de dados?

Não é porque um fato acontece pela internet que não existe uma lei regulando. Crimes também podem ser cometidos no universo digital, como é o caso dos estelionatos, quando algum criminoso se passa por um banco para aplicar golpes nas vítimas, por exemplo, fazendo com que elas paguem boletos falsos. Às vezes, não temos uma lei específica, mas existem leis da mesma forma. As compras online, por exemplo, estão sujeitas ao Código de Defesa do Consumidor.

Quando não há uma lei específica, o Congresso Nacional pode promulgar uma nova, como aconteceu no caso de Carolina Dieckmann. Nas redes sociais, também são muito comuns os casos de difamação, que é um dos tipos de crime contra a honra e que tem como objetivo desacreditar a vítima e provocar desprezo contra ela. O problema é que muita gente ainda acredita que a internet é terra de ninguém…

Mas o que a legislação brasileira diz sobre vazamento de dados? O advogado Fábio Abrahão, especialista em privacidade do escritório Faria, Campos Vieira, Cendão e Maia Advogados, explica que a lei considera como dados pessoais toda informação relacionada a uma pessoa que permite identificá-la. "Se eu pegar seu nome, por exemplo, é um dado pessoal, porque eu consigo te identificar por ele. Se pegar seu e-mail corporativo — a menos que sejam aqueles de contato ([email protected]) —, eu sei que, dentro daquela empresa, existe uma pessoa chamada Fulana de Tal, que usa aquele endereço de e-mail".

"Se eu conseguir identificar uma pessoa por uma foto, é um dado pessoal. E a gente pode pensar em outros exemplos, como RG, CPF e número do telefone. Eu consigo identificar quem é o titular daquele telefone a partir do número. No caso da foto, eu não sei o nome da pessoa, mas eu sei que ela tem cabelos um pouco abaixo do ombro, é loira, branca etc. A partir dessas informações, eu consigo identificar quem é. Então é considerado dado pessoal", completa.

Que fotos são dados pessoais é incontestável. A Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), no entanto, funciona de forma diferente do Código Penal, por exemplo. Em seu texto, ela traz as hipóteses nas quais é aplicável. No caso da Carolina Dieckmann, até pode existir uma abertura para a Autoridade Nacional de Proteção de Dados querer aplicar a LGPD, segundo o advogado. Mas via de regra, a gente não fala de LGPD nesse caso, porque o tratamento, ou seja, a manipulação das fotos, não foi realizado com fins econômicos; tinha intuito de lucro, mas é um lucro decorrente de crime.

A lei destaca que não se incide quando uma pessoa natural usa os dados pessoais de alguém para fins particulares, e cometer crime é um fim particular, com o objetivo de obter vantagens para si mesmo.

A Lei Geral de Proteção também menciona os dados pessoais sensíveis, que a gente entende que podem causar danos ainda mais graves às vítimas, com efeitos, inclusive, discriminatórios. É o caso de uma filiação a um sindicato ou organizações de caráter religioso. Por exemplo, uma empresa acaba deixando de contratar um funcionário por causa da religião. A LGPD se aplica tanto aos dados pessoais de forma geral, quanto a essa "subcategoria", que são os dados pessoais sensíveis.

O que vai definir a aplicação da lei é o tratamento: o que está sendo feito com aquele dado e por qual motivo ele está sendo utilizado. No caso de fins jornalísticos, artísticos, acadêmicos ou de uso exclusivo do Estado, da Segurança Pública, Defesa Nacional e afins, também não é aplicável. "A gente tem algumas hipóteses que definem quando a lei não é aplicável. Já em relação aos dados pessoais sensíveis, existe uma regra geral, dominante, que é a do consentimento. Caso não haja o consentimento do titular dos dados, aí sim temos outras nove hipóteses hierárquicas", explica Fábio Abrahão.

"Quando a Klara vai ao hospital, conta que foi violentada, passa por uma bateria de exames, é aberto um prontuário. Depois ela volta lá, confirma a gravidez, faz novos exames. Então, na relação dela com o hospital, eu tenho uma hipótese legal, específica, que autoriza o hospital a utilizar esses dados, que é o tratamento de saúde, a preservação da saúde e da vida. Quando a enfermeira revela esse prontuário para terceiros, aí ela está violando essa finalidade, criando uma finalidade nova, que é fornecer essa informação para outra pessoa".

"Então, num primeiro momento, o hospital ter esses dados é uma atividade regular. A irregularidade acontece quando a enfermeira vaza a informação para o colunista". No momento em que há o compartilhamento dessas informações, portanto, há uma violação da Lei Geral de Proteção de Dados. "E aí é importante a gente entender a quem atribuir essa violação: não é à enfermeira, mas sim ao hospital, que é o responsável pelos dados da Klara", complementa o advogado.

"Depois, a gente tem o recebimento dessas informações pelo jornalista. No momento que ele fica sabendo do fato, a gente não tem a aplicação da LGPD, porque ele vai usar esses dados para fins jornalísticos". E como que a gente regula isso? Para Abrahão, esta é a pergunta de US$ 1 milhão, porque, segundo ele, hoje existem cerca de 6 mil projetos em discussão no STF (Supremo Tribunal Federal) que abordam esse conflito entre liberdade de expressão, liberdade de imprensa e privacidade.

"A liberdade de imprensa está prevista como direito constitucional. O artigo 220, parágrafo 1º fala que nenhuma lei poderá proibir de forma alguma a liberdade de informação em meio jornalístico. E aí, inclusive, ele faz menção a diversos dispositivos do artigo 5, que é o que trata dos direitos e garantias fundamentais. Ou seja, coloca a liberdade de imprensa num status de direito e garantia fundamental. E do outro lado, eu tenho o artigo 5, inciso dez que coloca a intimidade da vida privada como um direito de garantia fundamental. Então, eu tenho dois direitos e garantias fundamentais que devem ser respeitados e que conflitam", cita o advogado Fábio Abrahão.

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Caberá ao Judiciário, portanto, resolver esse conflito. Mas não é porque existe liberdade de imprensa e liberdade de expressão que essas pessoas estão 100% protegidas; a pessoa sobre quem foi feita a matéria tem direito de resposta e pode ser indenizada, caso seja comprovado algum dano. "Existe uma citação do ministro Barroso [do STF] que é bem interessante para esse caso. O que ele fala? Que retirar uma matéria de circulação é extremo em qualquer hipótese. Isso não quer dizer que a gente não pode adotar medidas extremas, mas é extremo. A liberdade de imprensa é um dos pilares da democracia. Você pode manter a publicação e resolver isso pelo direito de resposta, vir a pagar uma eventual reparação…".

Saúde mental e espetacularização

Em meio a toda essa exposição na internet, é inevitável não pensarmos como fica a saúde mental da mulher. A professora Nilma Renildes acredita que cada uma lida com os ataques de acordo com a própria formação e o apoio que recebe da família, dos amigos e da sociedade. "O trauma e o sofrimento pelos quais essas mulheres vão passar dependem muito de que grupos essas mulheres são e de que lugares elas estão, vai depender do apoio que elas recebem, das condições que têm para enfrentar a situação, do quanto são acolhidas", afirma.

E o que nós, o público que se depara com essas informações na internet, devemos fazer para não dar palco para essa exposição em praça pública? "Eu tenho uma visão um pouco pessimista, na verdade. Eu acho que nesse momento de irracionalidade que a gente vive, de negação da realidade, do sofrimento do outro, a gente precisava resgatar a empatia, a solidariedade, achar menos que a gente pode opinar sobre tudo, sobre o outro. Eu posso ter uma opinião sobre qualquer coisa, mas nem sempre a minha opinião individual serve para o avanço de uma questão mais coletiva", finaliza a especialista em Violência contra a Mulher.

** Gabrielle Gonçalves é repórter do iG Delas, editoria de Moda e Comportamento do Portal iG. Anteriormente, foi estagiária do Brasil Econômico, editoria de Economia. É jornalista em formação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp).

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