Falar sobre aborto legal no Brasil não é uma novidade, mas entrar no tema de forma ampla e discuti-lo a partir de todas as suas nuances está longe de ser algo fácil. No entanto, casos como o da menina de 11 anos que teve o acesso ao aborto negado e da atriz Klara Castanho, que foi estuprada e realizou uma entrega voluntária , colocaram o aborto no centro do debate público nas últimas semanas.
Lívia Merlim, coordenadora da ONG Mapa do Acolhimento, aponta que as ofensivas contra o aborto, mesmo os casos previstos em lei, e as tentativas de silenciar são recorrentes. “Desde o impeachment da presidente Dilma Rousseff já existia uma série de iniciativas para dificultar o aborto, como o Estatuto do Nascituro, que falava em preservar a vida desde a concepção. Isso teve um impacto direto nos retrocessos em casos de aborto permitido no país”.
A advogada especializada em direito público e direito eleitoral, Juliana Bertholdi, aponta que o assunto deve ser tratado com expertise e racionalidade; no entanto, envolve questões legais, morais e religiosas, o que dificulta que seja encarado como uma questão de saúde pública. “Por se tratar de um tema polêmico, o aborto recorrentemente foi escanteado pelos governos. Falar de aborto, em geral, é ‘perder votos’”.
“Mas não se pode negar que, pela primeira vez após a redemocratização, temos um Presidente que abertamente se posiciona contra todas as formas de aborto, inclusive as previstas em lei”, continua Bertholdi, se referindo ao presidente Jair Bolsonaro.
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Estado e judiciário não amparam
A advogada explica que o Brasil e o mundo vivem um momento de ofensivas aos direitos de minorias sociais, incluindo mulheres, devido ao cenário de conservadorismo político. Como exemplo, ela cita o Manual do Ministério da Saúde, vazado em junho deste ano, que conta com recomendações “abomináveis” e “desassociadas da legislação”, nas palavras da especialista.
Merlim acrescenta que a falta de sensibilização do Estado e do judiciário, bem como a abordagem defasada, também dificultam o avanço dessa pauta. “É um núcleo conservador e desatualizado sobre as evidências científicas sobre o procedimento. Temos declarações absurdas no manual que não são amparadas em resoluções da Organização Mundial da Saúde, por exemplo. Mostra que não há comprometimento com a vida das meninas e mulheres, que são julgadas de maneira ideológica".”
“Algumas das frases que constam do documento, como ‘não existe aborto legal’ ou ‘todo aborto é um crime’, são absolutamente falaciosas. Partem da ideia de que as hipóteses de aborto legal foram banidas, cumprindo a mulher e a equipe médica que realizam o aborto terapêutico a prova de sua regularidade”, aponta a advogada.
Bertholdi afirma que o mesmo ocorre quando o manual aponta que “comprovadas as situações de excludentes de ilicitude após investigação policial, ele deixa de ser punido”. “Além de ser contrário à lei, esse raciocínio vai contra os princípios do Processo Penal e exige das mulheres que provem sua inocência para que tenham acesso à saúde”, acrescenta.
Bertholdi analisa que essas recomendações são inconstitucionais, pois ferem a dignidade da pessoa humana e o estado democrático de direito. “Não é exigido que seja realizada qualquer prova prévia ao acesso ao aborto legal, sendo inclusive ilegal que a equipe médica quebre o sigilo do atendimento à paciente informando a Justiça Brasileira sobre a ocorrência de um aborto terapêutico”.
Além disso, Merlim complementa ao afirmar que colher provas judiciais para comprovar um estupro não é tão simples como parece; além de reforçar uma visão esteoripada sobre o estupro: a de um desconhecido que “rapta” a vítima e comete a violência sexual. De acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), 79,6% dos agressores eram conhecidos da vítima.
"Existe muito estigma em relação à violência sexual em que as mulheres não denunciam os agressores por vergonha, medo e culpa. O ato, por vezes, é realizado pelo namorado, ex-namorado ou outra pessoa de convívio próximo. Se essa pessoa faz isso, outras violências podem estar acontecendo ao mesmo tempo. Muitas vezes a mulher vai até a delegacia e ouve que é a culpada pelo estupro", aponta Merlim.
"Mesmo que o Manual não esteja no mesmo nível da lei, as orientações ali geram preocupação", complementa. Isso porque, ao afirmar que todo aborto é ilegal, a pasta coloca ainda mais obstáculos no caminho das pessoas que têm direito à interrupção legal de gravidez, independentemente do tempo de gestação.
"Essa mulher pode ter medo. O profissional de saúde pode não realizar o procedimento por se sentir ameaçado ou porque vai entrar em conflitos de consciência. Para isso, esse profissional pode usar a orientação do Ministério da Saúde, que chancela tudo isso", explica.
Para Bertholdi, dificultar o acesso ao aborto não vai impedir que eles ocorram – na verdade, pode aumentar as incidências. “Os dados internacionais nos dizem que o número total de abortos diminui quando oportunizamos educação sexual aos jovens e quando o aborto é regularizado, pois passamos fornecer assistência médica, psicológica e psiquiátrica às mulheres e permitimos sua realização de maneira segura e informada”.
“O aborto nunca deixará de existir, mas precisamos voltar a racionalidade para que ele aconteça menos, de maneira informada e segura”, defende Bertholdi.
Na contramão
No último dia 24, a Suprema Corte dos Estados Unidos revogou a decisão de 1973 que entendia que o aborto é um direito constitucional . A revogação foi viabilizada pela constituição majoritariamente republicana da corte, por membros ligados ao ex-presidente Donald Trump.
A advogada aponta que a reversão foi uma derrota para as mulheres de todo o mundo, já que a Roe vs Wade era considerada como uma importante referência jurídica de direito ao aborto. A decisão era enquadrada no direito à privacidade do país.
“Os Estados Unidos são referência em todo o ocidente, e a decisão é um recado muito claro: de que as mulheres não possuem autonomia sobre os próprios corpos nem no país visto como o ‘mais liberal do mundo’”, diz Bertholdi.
Os efeitos da revogação devem ser sentidos em outros países. No Brasil, Merlim analisa que é possível que a decisão fomente grupos e manifestantes contrários ao aborto, intensificando as investidas para fazer algo similar no país.
"Por mais que aconteça a saída do atual presidente do cargo, o bolsonarismo é um fenômeno de causa longa que pode se manter mesmo que um governo mais progressista assuma o cargo. É preciso continuar atenta e vigilante, pois uma decisão de 1970 foi contestada por uma maioria formada por um governo que não é mais atual", salienta.
No entanto, há esperança devido aos últimos avanços em países latino-americanos. Enquanto os Estados Unidos perdem um direito de quase 50 anos no campo dos direitos reprodutivos, a América Latina nada contra a maré: nos últimos dois anos, Argentina, México e Chile conseguiram descriminalizar o aborto em todos os casos – desde que o procedimento seja realizado até a 22ª semana.
Com isso, a influência das feministas latino-americanas se tornou visível em diversas manifestações favoráveis ao aborto nos Estados Unidos na última semana – incluindo até mesmo slogans e simbologias, como o pañuelo verde usado pelas ativistas . “Aqui, estamos vivendo outra realidade e outro debate. Estamos neste momento falando de garantia de direitos”, diz Merlim.
Bertholdi afirma que as mulheres latino-americanas são exemplo do movimento contrário às investidas para tentar silenciar o assunto. “A América Latina vem entendendo que o aborto é uma questão absolutamente pragmática, de saúde pública, passando a regulamentar e regularizar sua prática. A racionalidade é fundamental”, diz.
A conquista do espaço feminino e feminista é dificílima mesmo dentro dos movimentos progressistas, que são naturalmente mais abertos às causas das mulheres. Isso porque não é raro que se busque pintar as pautas ‘identitárias’ como vilãs que dividem os movimentos – o que é absolutamente falso”, afirma a advogada.
Por essa razão, ela reforça que as ativistas da América Latina aprenderam que não há garantias sobre direitos em nenhum governo, progressista ou não. Por isso, elas estão constantemente atentas para as possíveis sinais de retrocessos ao assegurar os direitos relacionados ao aborto legal.
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Merlim reforça que, por mais que os acontecimentos recentes no Brasil representem um cenário negativo, a repercussão das últimas semanas se tornou uma virada de chave para tratar sobre o assunto no país. Além disso, ela analisa que as brasileiras apontam para uma percepção mais favorável: um levantamento realizado pelo Instituto Patrícia Galvão, divulgado em março, aponta que 3 em cada 4 mulheres gostariam de ter a opção de abortar em caso de violência sexual, um índice que chega a 87% da população. "Existe uma compreensão bem forte da sociedade nos casos legais".
“Estamos preocupadas, mas estamos otimistas. É um momento muito pedagógico porque as informações sobre o assunto circularam e as pessoas perceberam que não se trata sobre maternidade, mas sobre a tutela exacerbada sobre os corpos das mulheres. Avançamos narrativamente porque estamos tirando o assunto do armário”, analisa.
Para ela, os últimos acontecimentos prepararam o Brasil para começar a discutir o aborto de forma mais favorável. “Vai ficar mais difícil para o lado anti-direitos conseguir efetivar a agenda da criminalização do aborto legal. As pessoas estão acompanhando os casos, ouvindo as histórias e notando que é um problema que existe; mas, por conta da ilegalidade, está embaixo dos panos”.
“Esse é o momento de nos olharmos enquanto sociedade, para os direitos que já conquistamos, e fazer resistência para não negociar o mínimo que temos”, acrescenta Merlim. “O caminho não será fácil, mas acredito que seremos capazes de conquistar e regulamentar esse direito em toda a América Latina”, finaliza Bertholdi.