No Brasil, 1 em cada 4 gestantes sofrem violência obstétrica , de acordo com dados levantados pela Fundação Perseu Abramo em parceria com o Serviço Social do Comércio (Sesc). A proporção foi apurada pela última vez em 2010 e, desde então, é usada como referência para quantificar os casos no país. No entanto, além de defasado, o número não especifica os casos de violência obstétrica que aconteceram em situações em que a mulher tem o direito legal de realizar a interrupção da gravidez ou uma entrega voluntária.
Na última semana, a atriz Klara Castanho foi destaque ao revelar que foi estuprada e descobriu uma gestação avançada , o que fez com que ela optasse pela entrega voluntária. De acordo com a lei, os dados pessoais de Klara deveriam ter sido mantidos em sigilo, mas teriam sido vazados por uma enfermeira do hospital onde a atriz realizou o parto. O caso é apurado pelo Conselho de Enfermagem.
A doula Lettycia Vidal, CEO e fundadora da startup que indica profissionais materno-infantil Gestar, e a profissional obstetrícia Helena Cossich, uma das sócias-fundadoras do clube de assinaturas materno-infantil Baby Concierge, apontam que os casos de violência obstétrica são ainda mais intensos nos casos de mulheres que, asseguradas pela lei, não vão manter o bebê.
“Só por sermos mulheres, já estamos sujeitas a receber esse tipo de violência; e quando a gente fala dessas situações ainda mais delicadas e que dependem de sigilo, é preciso ter muito mais respeito e uma segurança ainda redobrada”, afirma Vidal. No entanto, ressalta, não é o que acontece.
Cossich afirma que o tratamento é pior porque a equipe médica tende a colocar crenças, culturas e princípios religiosos como critério para reagir diante dessas situações adversas. Vidal complementa ainda que há o desejo de “fazer vingança” por aquele feto, que é descontada em práticas violentas durante o parto.
“A gente ouve relatos de profissionais que querem agir com ‘justiça’, no sentido de que se ela não quer ficar com o bebê, vai sofrer durante todo período e não terá acolhimento. É como se se sentissem no direito de violar aquela mulher porque o que ela fez não é correto aos olhos dessas pessoas”, descreve Vidal.
Uma das principais possibilidades de violência física nos casos de interrupção legal da gravidez é a realização do procedimento sem anestesia, uma situação que Cossich já presenciou: “Estava de plantão em uma maternidade que é referência no procedimento. No momento de fazer, os anestesistas disseram que não aplicariam a anestesia porque isso ia contra as convicções deles, mesmo que ela já tivesse passado pelos trâmites internos que a autorizaram a realizá-lo. Disseram que, se eu quisesse, poderia fazer a curetagem sem anestesia”, relata a médica.
“O profissional de saúde quer ter um poder maior que a lei. Naquele dia, eles tiraram o direito dessa mulher. Ela tinha um direito assegurado pela lei que foi usurpado. Ela foi novamente violentada”, complementa a médica.
Julgamentos
De acordo com a obstetrícia, a vergonha e o medo de pedir ajuda faz com que essas mulheres só procurem o sistema de saúde muito tempo depois de ter sofrido o estupro e engravidado em decorrência dele.
“Essa mulher passa por um julgamento de valor. É perguntado onde ela estava, o que vestia, o que usou e se tinha beijado alguém, por exemplo. Vão perguntar se ela não usou camisinha ou tomou pílula de emergência, algo que não cabe a nós fazer. Então, ela vai sofrer mais violências, ter medo de ser examinada e ser machucada novamente”, pontua.
Vidal aponta que a violência psicológica é a mais perceptível nesses casos. “A mulher passa por situações em que é forçada a tentar amar aquela criança, a cuidar dela, ficar com ela. Isso é um tipo de coerção. Essa mulher é geralmente colocada em uma sala de espera com famílias que esperam um bebê desejado, e isso causa uma grande confusão emocional, uma pressão psicológica muito forte”, mostra.
A doula acrescenta ainda que casos de divulgação de dados, como o que ocorreu com Klara Castanho, podem acontecer também com pessoas anônimas; no entanto, não é possível quantificar essas incidência por falta de dados. “Acontece em casos de aborto, então certamente acontece em casos de entrega voluntária. Esse vazamento é feito com vontade de culpabilizar a atitude que a mulher”, diz Vidal.
Ela acrescenta que essa divulgação de dados impacta não apenas a mulher, mas também a família que vai receber aquela criança. “É uma situação de extrema violência psicológica”.
Nos casos de entrega voluntária, a pressão acontece no pós-parto, quando os profissionais tentam obrigar a mulher a olhar para o bebê. “Se ela não quer ver aquele bebê é porque há uma série de motivos que a levaram a isso. Olhar para a criança é uma situação dolorosa, doída, e acontece só porque o profissional ‘acha’ que a mulher deve olhar. Nós não temos que achar nada. Temos que nos colocar ao lado daquela mulher e deixar nossas convicções de lado”, pontua Cossich.
Acolhimento é necessário
Vidal afirma que, em rodas de conversa, é comum ouvir que as mulheres esquecem tudo o que acontece no parto e que precisam ser lembradas de alguns momentos; mas, quando há uma violência obstétrica, o parto fica marcado para sempre. A violência pode sobrepor os momentos felizes, acrescenta a Doula.
"Quando a gente fala de uma mulher que está entregando esse bebê, por exemplo, ela só vai ficar com a parte negativa. É uma herança da violência do pré-natal, do parto e do pós-parto”, diz.
Os casos de interrupção de gravidez e de entrega voluntária de uma bebê gerado devido a um estupro já é, por si só, dolorosa. Por isso, Vidal e Cossich afirmam que todo atendimento deve contar com acolhimento e conforto. “É um momento de ter muita empatia, não piadinhas e nem sorrisinhos. O profissional precisa fazer todo um ritual e estar ao lado daquela mulher para que ela não seja novamente violentada. Muitas mulheres saem chorando do procedimento, não por arrependimento, mas por toda situação. Nunca é algo tranquilo”, diz a obstetrícia.
Vidal defende ainda que as necessidades e desejos da mulher sejam atendidas, desde o respeito ao tempo do parto até prover um espaço privativo para que ela possa processar as emoções de forma privada. “É preciso que esse tema seja mais debatido. Ninguém passa por nada disso com o objetivo de ferir alguém, mas de fazer o que acha certo. É preciso que todos os núcleos responsáveis se unam, conversem e debatam para chegarmos no melhor denominador comum que favoreça mulheres nessas situações”, finaliza a doula.
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