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O que era para ser apenas uma  entrevista de emprego virou um trauma. A estudante de jornalismo Letícia Pinho, de 23 anos, tentava uma vaga de estágio em uma empresa de Bauru, no interior de São Paulo. Ela vinha se preparando para isso desde o início da pandemia, em meados de março de 2020, quando passou a aproveitar o tempo livre para fazer alguns cursos e se capacitar ainda mais para o mercado de trabalho.

“As duas entrevistadoras estavam sendo uns amores comigo, perguntando sobre os meus estudos, enfim. A coisa mudou totalmente quando comentei que tinha um filho pequeno. Ele tinha um ano e meio na época. Falei que aquela vaga de estágio me ajudaria bastante em casa por conta disso. De repente, o único assunto da entrevista passou a ser o fato de eu ter um filho”, conta Letícia à reportagem.

“Elas começaram a fazer perguntas bem indiscretas, do tipo quanto eu pagava de aluguel, de luz e de internet, se eu conseguiria me concentrar no trabalho caso meu filho ficasse doente e com quem a criança ficaria caso eu e meu namorado arrumássemos um emprego”.

O caso aconteceu em setembro de 2020. “Me senti um lixo, totalmente humilhada. Sai de lá quase chorando”, afirma a estudante. “Foi péssimo, ainda mais vindo de duas mulheres. No dia, eu até falei para o meu namorado que não iria fazer mais nenhuma entrevista, mas no dia seguinte, eu tive outra. Fui sem esperança nenhuma e acabei conseguindo a vaga”.

A experiência de Letícia Pinho apenas reforça o que revelam os dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). No quarto trimestre de 2021, a taxa de desemprego no país ficou em 11,1%, o que representa cerca de 12 milhões de trabalhadores. Desses, 54,5% são mulheres, e 45,5% são homens.

“A gente precisa pensar que a mulher trabalhar fora de casa tem sido uma conquista das mulheres nos últimos dois séculos e meio. O patriarcado e a construção social dos papéis de gênero definiram que as mulheres tinham que ficar  no campo privado, cuidando da casa e dos filhos, para que os homens pudessem dominar o campo público e, consequentemente, o mercado de trabalho”, aponta Nilma Renildes, professora do Departamento de Psicologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp) e especialista em violência contra a mulher.

Assédio sexual

Para manter as mulheres fora desses espaços, a sociedade machista utiliza diversos mecanismos, explica a educadora. Um deles é o assédio — que foi o que aconteceu com uma entrevistada que preferiu não se identificar. Ela trabalha em uma empresa de call center há oito meses e foi vítima do que seu colega de trabalho e agressor provavelmente chamaria de “brincadeira”.

“Uma vez, eu estava pegando álcool em gel próximo à mesa dele, e ele perguntou: ‘esse álcool em gel não parece p****?’. Depois que eu respondi, sem graça, que não sabia, ele chamou outro funcionário da empresa e falou ‘olha, Fulano: ela não sabe se parece p****. O menino também ficou totalmente constrangido”, declara a vítima.

“Por ele ser gay, na hora, achei que podia não ser nada demais. Mas ele ficava passando a mão no meu cabelo, fazendo carinho no meu ombro, passando a mão no meu braço e perguntando se eu já tinha ficado com outras mulheres”.

Para Nilma Renildes, é importante que as mulheres compreendam o que são o assédio e as suas diferentes formas. “A gente fala das brincadeiras, que são esse assédio expresso verbalmente, mas a gente também tem aquele que se manifesta nos olhares, nos toques, no padrão de beleza que se espera da mulher e até na manipulação — esse último chamado de gaslighting: ‘não foi bem isso que eu falei’, ‘você entendeu errado’, ‘você é maluca’”.

“Os homens têm um pacto quando vêem um deles oprimindo uma mulher. E às vezes, outra mulher, para não passar pelo mesmo, também acaba compactuando com o silêncio”.

A advogada trabalhista Waleska Miguel Batista diz que, mesmo sendo um problema estrutural, o assédio jamais pode ser aceito. “Primeiro, tem que ter, dentro das empresas, a possibilidade de a mulher denunciar — para um setor de recursos humanos ou de compliance antidiscriminatório — a pessoa de quem está vindo essa prática”, começa.

“Se a empresa não tomar nenhuma medida contra esses funcionários, ela está chancelando esses atos e tem que ser responsabilizada. O Código Civil determina que, em casos de danos ou lesões, cabe indenização. Também é previsto na Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) que, se essa mulher está sofrendo assédio, e isso a está impossibilitando de continuar o trabalho, ela pode aplicar a rescisão indireta do contrato. É como se estivesse dando justa causa na empresa por não ter cumprido com o seu dever, que é garantir a segurança de seus trabalhadores”, completa.

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Uma nova fonte, que também preferiu manter o anonimato, contou uma situação diferente, mas ao mesmo tempo muito parecida com as outras. Jornalista, ela tentava uma vaga de emprego em uma agência quando ainda estava no último ano de faculdade. Na época, um ex-colega de trabalho havia lhe indicado para a entrevista, que seria com os dois sócios da empresa.

“Logo quando eu entrei na sala, eles estavam comentando sobre a aparência física da estagiária que havia acabado de sair pela porta. Isso foi em meados de 2014. Não me lembro exatamente do termo que usaram para descrevê-la, mas eles estavam praticamente a chamando de gostosa [sic]”, relata.

“Durante a minha entrevista, a conversa também sempre ia para um lado mais pessoal. Quando citei o veículo em que eu estagiava na época, eles chegaram a comentar: ‘nossa, lá existe uma fama de que todo mundo pega todo mundo. Quem você já pegou de lá?’.

Desigualdade salarial

“Pouco tempo depois, um amigo meu foi fazer uma entrevista no mesmo lugar e ofereceram para ele um salário R$ 1.000 mais alto do que o que ofereceram para mim. Me falaram que como eu ainda estava me formando/era recém-formada, o salário era x. Mas para a outra pessoa que tinha pouco mais tempo de formada do que eu e era homem, o salário era de R$ 1.000 a mais”, continua.

A Síntese de Indicadores Sociais (SIS), divulgada pelo IBGE em dezembro do ano passado, revela que essa diferença salarial entre gêneros continua não sendo um caso isolado. Em 2020, as mulheres recebiam 78,1% a menos do que os homens no Brasil — isso mesmo elas representando em 2019 uma parcela maior (19,4%) do que os homens (15,1%) da população de 25 anos ou mais com ensino superior completo, conforme revelou o instituto por meio das “Estatísticas de Gênero - Indicadores sociais das mulheres no Brasil”, também em 2021.

“Apesar de os dados reconhecerem essa disparidade salarial, ela é totalmente ilegal. A Constituição Federal prevê que homens e mulheres são iguais em todos os aspectos perante à legislação. A CLT também determina que, para funções, atividades e formações iguais e mesmos requisitos para ingresso no mercado de trabalho ou para ascensão profissional, o salário tem que ser igual para ambos”, pondera a advogada.

“Se constatada essa diferença, a mulher pode entrar com uma reclamação trabalhista para pedir a equiparação salarial. E caso ela não seja contratada, mas tenha sido constatado que a empresa pratica esse tipo de disparidade, deve denunciar ao Ministério Público do Trabalho para que haja uma investigação, já que a empresa não está seguindo a lei”.

No caso de mulheres negras, a situação é ainda mais delicada. Um levantamento publicado pelo Insper em 2020 mostrou que um homem branco ganhava, naquele ano, um salário médio 159% maior do que o de uma mulher negra. Waleska Batista, que também estuda questões raciais, argumenta que isso apenas representa o quanto as mulheres negras “são ainda mais vulneráveis” a essa violência estrutural.

“É o acúmulo de opressões. Essa mulher sofre duas discriminações: uma por ser mulher, e a outra por ser negra. Além de ser questionada se vai cuidar dos filhos, por exemplo, também lhe perguntam ‘mas você vai continuar com esse cabelo?’, porque a empresa, às vezes, não aceita cabelos crespos, black power, tranças, quer que a mulher alise os fios. Quando contratada, não quer que ela seja vista em uma recepção. Ela também sofre com as piadas etc”.

“Além de ter que provar sua competência, por ser mulher, ela vai ter que se esforçar ainda mais por ser uma mulher negra. Ser educada, formada, não é suficiente”, conclui Waleska.

A professora Nilma Renildes concorda. “Na nossa sociedade patriarcal, racista e hetenormativa, os homens vêm formados desde muito crianças a desempenhar esse papel de exclusão, de opressão às mulheres e achar que eles têm todo o direito de fazer isso”.

Voltando ao caso da jornalista com quem o iG conversou: passados alguns anos, outra vítima entrou em contato com ela para denunciar um dos donos daquela agência. As duas se reuniram com mais oito mulheres que também se sentiram ameaçadas pelo agressor. Porém, de alguma forma, ele descobriu e “intimidou uma delas”. E a história acabou ficando por isso mesmo.

** Gabrielle Gonçalves é jornalista em formação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Estagiária em Brasil Econômico. No iG desde agosto de 2021, tem experiência em redação e em radiojornalismo, com passagens pela Rádio Unesp FM e Rádio Metropolitana 98.5 FM.

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