Desde o início de sua vida sexual, Gabriela Ferreira* (35) soube que não queria ser mãe. Aos 25 anos, a nutricionista decidiu fazer uma laqueadura. “Eu sempre gostei de priorizar minha vida pessoal e minha carreira, então decidi que não iria ter filhos”.
A decisão, segundo Ferreira, foi rápida. “Meu noivo, na época, não sabia que eu não queria construir uma família dessa forma. Quando eu expliquei para ele minha vontade de realizar uma laqueadura, que é, obviamente, permanente, nosso relacionamento desmoronou. Ele tentou me convencer a adotar, mas eu deixei bem claro que não era a gravidez que eu estava abandonando, e sim a maternidade”.
A profissional explica que, da decisão de fazer a laqueadura até a cirurgia em si, se passaram 5 anos, período em que ela teve que passar por diversas situações de preconceito e machismo dos profissionais da medicina e dos familiares apenas por não querer se tornar mãe. “Eu posso dizer que fico muito feliz que não posso ser mãe. Agora, posso ter certeza que tenho controle de meu próprio corpo”.
Além de Gabriela, milhares de outras mulheres sem filhos lutam diariamente pelos próprios direitos reprodutivos no país. De acordo com o Sistema de Informação Hospitalar, do Sistema Único de Saúde (SIH/SUS), 20 mil pessoas realizaram a laqueadura apenas em 2021.
Laqueadura
O principal método contraceptivo entre as mulheres em idade fértil é a laqueadura, operação que leva à esterilização feminina por meio do fechamento das tubas uterinas. Segundo a Pesquisa Nacional sobre Demografia e Saúde (PNDS), os motivos principais para a realização da laqueadura são o desejo de não ter mais filhos e a falta de condições financeiras para a criação das crianças.
A lei nº 9.263/1996, conhecida como Lei do Planejamento Familiar, era a responsável por determinar as regras da esterilização feminina no Brasil. Nela, se garantia o direito de laqueadura para mulheres com mais de 25 anos ou que já tinham dois filhos vivos.
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Em março de 2022, no entanto, a Câmara de Deputados aprovou a PL 7364/14, relatada pela deputada Carmen Zanotto (Cidadania/SC). A proposta, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL) no dia 5 de setembro, altera a atual legislação do planejamento familiar no país.
Com a nova lei, surgiram diversas mudanças que passarão a valer a partir de 1º de março de 2023, 180 dias após o sancionamento do projeto. As alterações são vistas como benéficas para os direitos reprodutivos das mulheres, principalmente para mulheres que ainda não têm filhos.
“A primeira [mudança] relaciona-se à fixação de prazo para oferecimento, pelo Sistema Único de Saúde (SUS), de métodos e técnicas contraceptivos, que passou a ser de, no máximo, 30 dias, a partir da indicação. A inexistência de uma previsão temporal, como era antes da alteração, poderia significar, muitas vezes, longo tempo de espera até a efetiva disponibilização da técnica ou método escolhidos para evitar uma gravidez não planejada”, explica Ana Rita da Costa Pinto, advogada e especialista em saúde e direito médico.
A idade para o procedimento também foi reduzida: agora, mulheres com 21 anos já podem fazer laqueadura mesmo se não tiverem filhos. A obrigatoriedade de dois filhos continua, no entanto, para mulheres com menos de 21 anos.
A cirurgia também poderá ser realizada após o parto: “A terceira alteração, que é voltada exclusivamente para as mulheres, corresponde à possibilidade de realização da laqueadura já durante o parto (normal ou cesariana), desde que a solicitante manifeste seu interesse ao menos 60 dias antes, e que haja condições médicas adequadas para o procedimento”.
“A quarta novidade, e certamente uma das mais comemoradas entre as mulheres, diz respeito à revogação do dispositivo que exigia o consentimento expresso do parceiro para a realização do procedimento de esterilização voluntária”, explica a advogada.
Laqueadura sem filhos
As alterações em lei trazem mudanças efetivas para o direito das mulheres. “Estamos falando de progressos relacionados à autonomia de vontade da mulher no tocante à sua vida reprodutiva, e também de avanços quanto à maior facilidade de acesso a métodos e procedimentos contraceptivos de grande relevância para a qualidade de vida e para o próprio planejamento familiar”, afirma Ana Rita.
Com as mudanças, mulheres que não desejam se tornar mães podem celebrar uma vitória judicial, como foi o caso de Marina*. “Eu tenho 23 anos, e, claro, já me decidi. Não quero engravidar, é algo que eu sinto dentro de mim”. Estudante de Engenharia Civil e dona de sua própria loja de roupas, a jovem enxerga que, com a lei, poderá alcançar o que deseja sem “limitações retrógradas e machistas de um passado que, graças a essa mudança, estará bem longe de nós”.
A laqueadura sem filhos ainda é um grande tabu no Brasil, país onde a maternidade é ainda pouco discutida de forma crítica. Desde o início da busca pela cirurgia, mulheres são constantemente alvo de preconceito e machismo.
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A primeira batalha é, quase sempre, com os parceiros, que, até março de 2022, podem autorizar ou não uma laqueadura. Em 2011, por exemplo, a confeiteira Maria* conseguiu fazer alguns exames para enfim ligar as trompas, mas, na hora de fechar todos os documentos, seu então marido se negou a autorizar o procedimento”.
“Me senti traída, foi totalmente agonizante. Eu tinha certeza que meu relacionamento tinha acabado ali mesmo. Foi só alguns anos depois que consegui me livrar dele, e, mesmo assim, não fiz o procedimento. Tudo foi muito traumático”, revela.
Os profissionais da medicina também são alvo de críticas das mulheres que querem passar pela cirurgia. “Meu ginecologista me disse que eu era tão nova, tão inocente e boba que eu ia me arrepender. Olha que eu tinha 25 anos [risos]. ‘E se você conhecer um homem que quer muito um bebê?’, ele perguntava. Nada que eu falava valia alguma coisa para meu médico, apenas a posição de um homem imaginário que eu nem gostaria de conhecer. Tive que brigar com meu médico para fazer”, conta Vanessa*, (26), escritora e professora de inglês.
A falta de apoio para mulheres sem filhos que desejam fazer uma laqueadura e a demora dos processos da saúde são fatores que promoveram a queda desse tipo de cirurgia no país. De 2019 a 2021, esse tipo de procedimento registrou uma queda de 44%.
As novas mudanças, no entanto, prometem reduzir o tempo de espera e facilitar o acesso para mulheres com mais de 21 anos sem filhos. “Espero que, com a nova lei, as pessoas possam enfim ter acesso a laqueadura como é de direito. Gravidez é coisa séria, e devemos ser respeitadas quando dizemos que não queremos isso”, finaliza Vanessa*.