O nascimento de um bebê é um momento muito alegre para todos os envolvidos. Se antes esse período era registrado por câmeras analógicas e conservado em álbuns de fotos, os últimos anos fizeram das redes sociais a principal forma de compartilhar imagens dos pequenos para familiares e amigos. Foi esse o caso da historiadora Marina* (45), quando deu à luz Isabela* (10), em 2012.
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“Quando Isabela nasceu, ficamos muito felizes, já que ela era fruto de uma gravidez de risco. O fato de ela ter nascido com o cabelinho todo espetado chamou muito a atenção das pessoas, então resolvemos criar um perfil no Facebook para que ela acompanhasse todo esse crescimento quando crescesse. Na época, achamos que seria uma boa ideia”, relata a mãe.
A tentativa de encapsular memórias pela internet durou alguns anos, até uma foto de Isabela se tornar motivo de piada na rede social. “Fomos viajar, até que uma foto de nossa filha conosco foi parar em uma página de memes na internet. No começo, pareceu engraçado, mas, depois, ela começou a ser caçoada entre os amiguinhos”, explica.
“Recebemos algumas ameaças de morte. Invadiram nossos momentos com nossa filha e escreveram algumas coisas muito problemáticas na rede social. Na época, chamei meu marido e decidimos excluir o perfil”, afirma. “Foi esclarecedor ver que, na internet, tudo é muito mais perigoso, já que todo mundo teve acesso ao nosso momento particular, mesmo que o perfil fosse só para amigos. Foi assustador”.
A situação vivida pela família de Marina é apenas um exemplo dos enormes perigos que a exposição de crianças na internet pode causar. Essa exposição é conhecida pelos especialistas como sharenting, termo originado do inglês share (compartilhar) e parenting (em tradução literal, paternidade, com o sentido de exercer cuidado sobre os filhos em geral).
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Sharenting
Facebook, Twitter, Instagram, Tumblr, Snapchat, TikTok. Na última década, as plataformas digitais passaram a fazer parte da rotina de bilhões de pessoas em todo o mundo. O Facebook, por si só, conta com mais de um terço da população mundial em sua base de usuários: em 2022, o site registrou 2,93 bilhões de logins ativos mensalmente.
A presença nas plataformas digitais não está restrita apenas aos adultos. Nas redes, milhares de perfis são criados todos os anos para representar bebês, crianças e adolescentes. Obcecados pela divulgação de seus filhos, esses pais compartilham dados, imagens, vídeos, experiências e informações sobre as crianças nas redes sociais.
Por mais que a presença digital de crianças possa parecer inocente, existem dezenas de perigos que ameaçam a integridade dos pequenos. Imagens e vídeos podem expor informações cruciais para a segurança dos indivíduos, como a data de nascimento, religião, localização, idade, local onde estuda, entre outros.
Em entrevista ao iG Delas, as advogadas especializadas em Direitos da Família e Sucessões e sócias da Lemos & Ghelman Advogados, Bianca Lemos e Débora Ghelman declaram que a presença ativa de crianças nas redes é contra as regras das plataformas.
“A plataformas digitais só permitem a criação de um perfil para maiores de 13 anos. Ou seja, considera-se que a criança abaixo desta faixa etária não tenha discernimento suficiente para regular o que postar ou não”, afirma Lemos. “O Instagram por exemplo, já possui um algoritmo em que detecta a exposição de crianças, banindo a publicação ou até aplicando sanções na própria rede do dono do perfil”.
Mesmo com o impedimento das plataformas, muitos pais insistem na presença digital de seus filhos. De acordo com o psicólogo clínico infanto-juvenil e sócio fundador da Comportalmente, Miguel Bunge, essa superexposição tem um impacto gigante na saúde mental das crianças.
O bullying é uma das principais consequências do sharenting, segundo o psicólogo. “Muitas vezes os colegas olham fotos de outros amigos na rede social da mãe, por exemplo, e fazem bullying em cima daquela imagem e a criança não se sente confortável nessa situação”.
Diferente das décadas passadas, o bullying feito por colegas pode se estender para a internet, local onde não existe direito ao esquecimento. O profissional ressalta que o cyberbullying atravessa as fronteiras de tempo e espaço, prejudicando o presente e o futuro da vítima.
Transtornos psicológicos também assombram crianças que vêem suas vidas expostas na internet. “Foi observado também um aumento nos transtornos como depressão, ansiedade e até transtornos alimentares”, declara.
Bunge explica que, ao postarem sobre os filhos constantemente, os pais colocam muitas expectativas que são quase impossíveis de se alcançar para as crianças. A busca pela perfeição e as constantes cobranças podem gerar frustrações e instabilidades para a criança.
Por conta do sharenting ser um fenômeno consideravelmente recente, Miguel atesta que ainda não existem muitos estudos que meçam o impacto psicológico desse comportamento: “Essa é a geração mais vista da história. Isso obviamente traz impactos mentais, é claro, e por ser um fenômeno muito novo, a gente não tem como administrar todos eles”.
Problemas
Além da saúde mental, a exposição também pode trazer diversas ameaças para as crianças. Dentre os principais perigos que envolvem o sharenting, o chamado “sequestro digital” é uma das piores consequências.
A advogada Débora Ghelman alerta que fotos ou vídeos postados pelos pais podem ser usadas facilmente em sites de pornografia infantil e para outros fins sexuais. Com isso, essas imagens permanecem na internet para sempre, podendo acarretar graves consequências no futuro.
“A alta exposição como onde a criança estuda, com quem ela se relaciona, o que ela faz e aonde vai no dia a dia, brilha os olhos de pessoas perversas. O sequestro não somente digital, mas também físico pode começar com uma foto online, vindo a ser uma pesquisa sobre a criança e muitas vezes um sequestro com consequências muito mais graves dentro do mercado negro e tráfico que estamos cansados de ler sobre”.
A privacidade dos pequenos também é abalada com o sharenting. Vídeos e imagens podem afetar o presente e o futuro das crianças, prejudicando até a futura vida profissional deles.
Lemos reforça que os direitos das crianças e dos menores de idade estão espalhados no sistema legislativo. “Por enquanto não há uma lei específica que regulamente o sharenting, porém, há outras maneiras de resguardar seus direitos, bem como há projetos de lei que pretendem fazer o mesmo, mais especificamente se tratando do mundo digital”.
É dever dos pais e da sociedade proteger e assegurar que essas crianças não sejam expostas. “A Constituição Federal de 1888 afirma que a criança tem absoluta prioridade em todas as matérias que a dizem respeito. Isso inclui tudo e todos que a criança tem contato, para que sempre esteja segura e para contribuir com seu desenvolvimento na maior escala possível”.
Ainda, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) afirma que o direito à intimidade e à privacidade são fundamentais. O documento atesta que “a promoção dos direitos e proteção da criança e do adolescente deve ser efetuada no respeito pela intimidade, direito à imagem e reserva da sua vida privada”.
Miguel Bunge certifica que a infância deve ser protegida acima de tudo. Para o profissional, existem táticas que podem facilitar a vida dos pais que gostam de guardar fotos dos filhos na internet “Na hora de publicar uma foto que muitos vão ver, vale talvez evitar colocar o rostinho da criança. Coloca ela, por exemplo, de costas ou de ladinho, não dá para evidenciar que seja ela”.
O especialista constata que também é essencial entender os sentimentos da criança na hora de divulgar algo sobre ela. “É importante assegurar os sentimentos da criança, se ela não se importa de aparecer. A criança tem sentimentos, mesmo que ela seja uma criança, ela já tem alguma percepção. Verifique se importa e respeite obviamente a decisão da criança quando ela não se sentir confortável”, finaliza.