Sou preta e não quero filhos: "Ser mãe é difícil. Ser mãe de preto é o dobro"

Por conta do racismo, mulheres pretas repensam o sonho da maternidade

Há um mês, o Brasil se comoveu com o assassinato do menino João Pedro , de 14 anos, morador de São Gonçalo, que morreu em uma operação policial enquanto estava dentro de casa.

Nos Estados Unidos, George Floyd , um homem preto de 46 anos foi morto asfixiado por um policial enquanto suplicava "eu não consigo respirar". O caso gerou uma onda de protestos pelo fim da violência policial contra negros que se expandiram para o mundo inteiro.

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Foto: Instagram/Reprodução
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Casos como esse, porém, estão de longe de serem execeções. Pelo contrário, de acordo com dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2017 pretos e pardos tinham 2,7 mais chances de serem vítimas de homicídio no Brasil do que brancos.

Segundo a mãe de João Pedro, o filho foi vítima de racismo . Nem sempre o racismo é fatal, mas sempre gera feridas profundas. Quando essa consciência se encontra com outra questão complexa como a maternidade, muitos conflitos tendem a vir à tona.

Tárcila Soares, de 26 anos, é estudante de engenharia ambiental e mulher preta, vive um relacionamento estável há quatro anos e não cogita ser mãe. Entre os motivos, está o sofrimento causado pelo racismo. “Acredito que absolutamente toda criança preta já passou por bullying e racismo. Desde apelidos desrespeitosos até nunca ser vista como uma criança/adolescente bonita”, comenta a estudante em um papo como Delas.

O assunto sempre esteve presente na sua família e especialmente no seu namoro. “Sempre deixei muito claro que eu não queria ser mãe. Sempre conversamos sobre o racismo, essa pauta é importante pra nós dois”, conta Tárcila.

Além da preocupação com o bullying, com a falta de autoestima de um jovem ou uma jovem preta, existe o medo da violência policial. “Acredito veementemente que ser mãe é difícil, mas ser mãe de preto, é o dobro. É o coração fora do peito o tempo todo. Medo do filho não voltar pra casa. De ser ‘confundido’ pela PM”, desabafa a estudante.

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Mesmo no meio de tantas aflições, algumas mulheres ousam encontrar esperança. Débora Bastos, ou Deh, como é conhecida, é mãe de José, um menino de dois anos e decidiu abrir o debate sobre maternidade de crianças negras com o projeto Criando Crianças Pretas (@criandocriancaspretas no Instagram).


Apesar de ter usado sua própria experiência como motivadora para essa ideia, Deh conta que hoje vai muito além. “O Criando Crianças Pretas não é só sobre a minha maternidade, porque meu filho além de ser muito novo, é negro da pele clara por ser fruto de um relacionamento interracial”, relata.

“Depois de um tempo lendo, estudando e ouvindo relatos, percebi que eu falava sobre uma maternidade que é sobre todas as mães com filhos pretos. Então deixou de ser só sobre mim”, completa a comunicadora.

Quando questionada sobre os maiores receios que enfrenta, Débora se aproxima muito das falas de Tárcila - o medo da violência do Estado e da construção da autoestima em crianças pretas estão sempre acompanhando essas mulheres.

A cofundadora do Criando Crianças Pretas reitera que toda criança preta está sujeita ao racismo e nada pode blindá-las disso, nem o dinheiro. “Muita gente acha que pretos que têm dinheiro não vão sofrer. No Brasil existe muita negação do racismo, que é uma das coisas mais graves aqui, ao meu ver”, falou.

Para dar o primeiro passo para a mudança, Deh recomenda: “A gente, enquanto sociedade, precisa parar de silenciar os medos das mães de filhos pretos. E aí não necessariamente entra só a mãe preta, mas tem muita família interracial que têm filhos pretos e são muitos os medos, as inseguranças, sabe?”.

O contato com a ancestralidade, o orgulho de suas origens e da cor da pele é um debate fundamental entre as comunidades de mães com filhos pretos. É necessário que isso seja resgatado e reforçado para que as novas gerações de crianças possam ser a ponte para a construção de um futuro em que meninos pretos não sejam mortos prematuramente.

“Eu tenho essa mania horrorosa de ter esperança nas coisas. Quando eu olho para as pessoas adultas eu tenho a sensação que não tem mais jeito, então a minha esperança está nas crianças, no fortalecimento das crianças pretas e na educação antirracista das crianças brancas. Acho que toda mudança começa com o incômodo, e por mais que a gente se revolte porque às vezes parece que o mundo só descobriu que o racismo existe semana passada, existe um incômodo coletivo que me dá sim esperança, porque só dá pra gente mudar isso em conjunto”, finaliza a mãe do José.