“Eu fiquei cega com 15 anos, em 3 de abril de 1971, dia do meu aniversário. Faz 50 anos que sou cega. Eu tinha alta miopia e tive descolamento de retina. A melhor coisa que me aconteceu foi ter ficado cega aos 15 anos porque eu já tinha terminado a oitava série [do Ensino Fundamental] e tinha toda uma vida para construir em cima da cegueira.
Seria muito diferente se eu tivesse ficado cega aos 40, vamos supor. Eu com certeza teria uma profissão que precisa da visão, dirigiria… começar tudo de novo depois de já ter construído tudo é mais difícil. Nesse sentido, eu entendo que foi um presente eu ter ficado cega tão cedo.
Para o cego de nascença também não é uma situação confortável porque dificulta muito no dia a dia. Eu não estou falando em momento nenhum da parte psicológica, isso depende de cada um, mas estou dizendo da parte prática. Tem uma dificuldade muito grande na adaptação do dia a dia.
Por exemplo, por que as crianças engatinham? Porque elas veem um brinquedo lá na frente e o querem, então se esforçam para pegá-lo. A criança cega não. É preciso ter toda uma manobra que vai ensiná-la a se locomover e a aprender os objetos. Como eu enxerguei até os 15, eu tenho essa vantagem de ter visto o mundo e desenvolvê-lo mentalmente. Fui ajudada pela visão que eu tive até então.
A primeira volta de bengala sozinha
Eu era a única cega da minha cidade [Itaí, interior de São Paulo], então eu não tinha a menor noção de nada. Fui aprender braille e a andar de bengala em São Paulo, na Fundação do Livro para o Cego no Brasil [atualmente chamada de Fundação Dorina Nowill para Cegos]. Fiz o curso rápido de um mês porque não queria perder a escola.
Nessa fundação, tinham professores de braile e de locomoção, além de oficinas para desenvolver o tato. Foi também onde conheci outros cegos mais velhos do que eu. Foi muito importante para mim essa descoberta de como era viver sem enxergar.
A coisa mais difícil para mim em todo aprendizado foi aprender a ver com o ouvido. Uma das experiências na escola que mais me lembro foi a primeira vez que saí de bengala sozinha. Primeiro, é claro, tem todo um trabalho interno no quintal da Fundação, a professora te acompanha do lado de fora até que chegue o momento de pegar a bengala e ir sozinha.
É muito complicado no início porque são muitos sons e você tem que aprender a distinguir um do outro. A ideia era dar a volta no quarteirão. Eu subi a rua e fui até a esquina, que é a Rua Domingos de Morais. Quando cheguei na esquina, deu desespero. Tinha muito barulho e eu me perdi. De um lado, o carro parava. De repente tinha gente correndo por perto. Na frente, tinha um barulho de ônibus. Na linha transversal, tinha gente cantando e martelando. Era tudo junto e misturado.
Dei um passo para trás e fiquei parada, identificando de onde vinham esses barulhos todos. Aí comecei a identificar e percebi que os carros param para as pessoas passarem. O ônibus parou porque abriu e fechou a porta. O barulho da martelada e a gritaria eram os pedreiros trabalhando em uma construção. Tinha uma árvore encostada perto de mim, cheia de passarinho cantando.
Do meu lado, bem na esquina, tinha uma padaria cheirando pão. “Bem, agora eu sei onde eu estou”, pensei. Em frente tinha a rua que eu precisava virar. Eu poderia voltar se eu quisesse ou poderia ficar ali parada, mas me localizei e continuei.
Até hoje essa história é muito importante para mim. Muitas vezes na nossa vida nós temos muitos barulhos. A gente não está bem fisicamente, os objetos em casa estão meio tortos, financeiramente estão mal e, no trabalho, a gente está enroscado com algo. Ficamos cansados, com muitas dúvidas. São muitos barulhos.
Esses momentos, que já aconteceram várias vezes na minha vida, são os que dou um passo para trás e começo a colocar cada coisa no seu lugar para perceber que nem sempre o que faz barulho é perigo. Muitas vezes faz parte do processo, entende? (risos). Parece que é muita coisa, mas se a gente colocar cada um no seu lugar, a gente começa a enxergar as escolhas que a gente tem: se é o caso de voltar, ir em frente ou ficar parado. Quando você organiza todos os barulhos internos, fica mais fácil de caminhar.
A nova realidade
Quando voltei para casa, queria participar da vida como eu fazia antes. Há 50 anos não tinha absolutamente nada, não tinha tecnologia assistiva. Então, eu fui criando alternativas, possibilidades e invenções para conseguir continuar vivendo. Por exemplo, quando eu ia varrer a casa, eu ficava descalça e começava a sentir a sujeira na sola do pé. Quando sujava a sola do pé, eu limpava de novo e ia varrendo.
Os professores da escola não tinham noção do que fazer comigo e nem eu com eles. Como eu já sabia ler e escrever, fazia as provas de matemática, física e química na lousa e as provas teóricas em uma folha de sulfite sem pauta, ia escrevendo com a minha letra. Mais tarde, um amigo meu fez um modelo vazado. Ele foi fazendo vários buracos no madeirite, que viravam linhas na folha para que eu não escrevesse nas linhas de cima.
Eu também gostava muito de passear, tinha muitos amigos. A gente tinha bailes de domingo naquela época que chamávamos de brincadeira. A gente punha discos e dançava no clube. Dançar é muito tranquilo porque é o homem que leva a mulher, então eu não tinha problema. Quando era para dançar solto, todo mundo ficava envolta de mim para eu não correr o risco de cair.
Você viu?
É possível fazer absolutamente tudo não enxergando, acredite em mim. Tudo dentro dos seus valores, do que você quer e consegue. É claro que não consigo, por exemplo, dirigir um carro, mas você [repórter] também não pode fazer tudo. Ninguém pode fazer tudo. Tem um monte de gente que enxerga e não dirige porque tem medo ou não gosta.
Cegueira
A experiência da cegueira é uma experiência muito rica, traz uma profundidade da vida, do sentir e do perceber muito grande. É claro que no primeiro momento você ainda precisa superar o dia a dia. Mas quando você consegue organizar esse dia a dia, você começa a ver tantas coisas legais que são importantes. Eu aprendi muito a partir da cegueira e agradeço muito por isso.
Eu costumo dizer que ser cega é virar os olhos para dentro. É exatamente isso. Em vez de enxergar o lado de fora, você enxerga dentro. Você passa a saber exatamente o que é, como pensa, do que gosta, do que não gosta, valores e objetivos. Quando a gente tem essa segurança interna é muito mais fácil viver. Quando a pessoa não se conhece fica sempre receosa, preocupada.
Como cegos, a gente precisa viver de uma forma mais completa. Se tem uma laranja em cima da mesa, você olha e sabe da laranja, se ela está madura, deduzir o sabor e a qualidade. Eu primeiramente nem sei que ela está lá. Preciso passar a mão na mesa inteira para ver se tem alguma coisa. Depois tenho que cheirar para ver se é uma laranja. Talvez consiga descobrir a qualidade pelo cheiro, mas às vezes tenho que chupar para ver se está azeda. Então eu faço todas as etapas pelo fato de não enxergar (risos).
Os olhos dão 80% das informações e só com 20% você descobre pelos outros sentidos. O desafio que eu tenho que ter é transformar esse 20% em 80%. Eu tenho que substituir a visão pelos sentidos. Os cheiros, o tipo de barulho, os sons… nada disso para você é fundamental, não é tão importante quanto é para mim.
Preenchendo a vida
Eu tenho também as informações objetivas da vida. Quanto mais eu sei sobre algo, melhor para conseguir imaginá-lo. Quando estou de frente para uma montanha eu sei como é uma montanha, então a imagino. Vamos supor que eu voltasse a enxergar naquele momento, será que a montanha que eu imaginei é a mesma que está na minha frente? Pode ser que não, mas eu não tenho compromisso com a realidade. Eu tenho compromisso em preencher a minha vida.
Eu estou falando com você [repórter] e imagino você sentada aí em uma mesa, com um telefone na mão, olhando para um papel em que você escreveu algumas perguntas. É verdade isso? Pode não ser, mas eu não preciso que seja. Eu só preciso imaginar, se não o que existe para mim é só onde estou sentada e o chão que estou nos pés.
Mas veja bem, a gente não vive em um universo particular. Eu sei que você é mulher, que está com o celular na mão e que está conversando comigo. São informações objetivas, não é um mundo paralelo. Muita gente acha que a nossa vida de cego é toda escura e não é verdade. Eu estou falando com você e estou vendo você. A imaginação é muito rica e cheia de detalhes.
Fotografia, viagens de moto e experimentar o novo
Em uma viagem para o Sul, meu marido, Marco, falou que não podia fotografar e eu disse ‘deixa eu ver se eu consigo com o meu celular’. Fotografei. Olharam depois e falaram que as fotos da viagem ficaram boas. Quanto mais eu toco nas coisas, mais preenchida fica minha vida. Ao tocar eu vejo porque é uma forma de ver.
Eu comecei a fotografar nessa viagem porque meu marido disse que tinha flores lindas. No Sul tem muita hortência. Ele foi me levando e eu fui colocando a mão para ver como era, achei linda e fotografei. Ele ia me levando e eu colocava a mão. Se eu achasse bonito, eu fotografava. Agora toda vez que saio para caminhar, para comprar pão ou visitar alguém, eu costumo fotografar alguma coisa.
Eu também adoro viajar de moto com o Marco. Já fomos para o Uruguai, para a Bahia, fizemos várias viagens pequenas. Gosto muito de passear e dançar também. Vou me desafiando para entender do que gosto e do que não gosto. Um dia vi alguém fazendo tricô e agora estou tentando também. Se for para ser, vai em frente e vai se aperfeiçoando.
Partilhando as histórias
Eu sou uma pessoa muito positiva, muito otimista. Eu sempre consigo enxergar o lado positivo das situações, graças a Deus. Todas as vezes que eu começo a contar uma história para alguém, de alguma experiência que eu tive, meus amigos sempre me dizem: ‘Deise, você precisa escrever um livro. Você precisa contar tudo isso’.
Então pensei ‘será que se eu contar histórias alegres e engraçadas não vai ajudar alguém por 4 minutos?’. Então a Rebeca, o Matheus e o André, meus filhos, e meu marido falaram para eu aproveitar meu Instagram e contar algumas histórias por vídeo. Achei interessante, principalmente nesse momento com tantas notícias ruins e histórias difíceis. Não é fácil o momento que nós estamos vivendo, então ouvir uma história positiva, coisas legais e coisas engraçadas que fiz poderia ser bacana.
Quando alguém diz que está angustiado, eu torço para que, quando ouvir uma história minha, a pessoa se lembre do que pode fazer. Cada dia traz uma oportunidade para, quem sabe, eu ajudar nesse despertar daquelas pessoas que estão me ouvindo. Não quero que elas se despertem para as minhas histórias, mas para o fato de que cada uma delas tem a própria história.
Muita gente fala que eu superei a cegueira e eu concordo com isso. Mas pode ser que se eu não tivesse a pontinha do dedinho do pé eu não superasse. Eu tenho o tamanho, a energia, a personalidade e a força de vontade para a cegueira, mas pode ser que você tenha superado algo e eu não teria a sua força. Por exemplo, eu não superaria morar em São Paulo nunca porque eu tenho pavor dessa cidade e você mora aí, pô! (risos)"