Emília Alencar de Souza foi vítima de uma falso cirurgião em Manaus
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Emília Alencar de Souza foi vítima de uma falso cirurgião em Manaus

"Meu nome é Emília Alencar de Souza. Hoje tenho 50 anos, sou mãe de três filhos. Nove anos atrás, percebi que meu corpo havia mudado bastante: seios caídos, barriga pendurada, três hérnias umbilicais e uma hérnia inguinal. Como mulher, resolvi me presentear no meu aniversário de 41 anos com uma sessão de massagem a vácuo [ventosaterapia] e máscara diamantada. Eu não imaginava que minha vida ia mudar de uma forma abrupta a partir daquele momento.

Antes de fechar o pacote com ele [o falso cirurgião], perguntei à proprietária da clínica Viassus, Maria Viassus, sobre a possibilidade de não passar o vácuo no meu abdômen por conta das hérnias e ela me respondeu que não faria isso. Por este motivo, decidi fazer os procedimentos.

Mesmo tendo alertado antecipadamente, a massagista que estava fazendo o procedimento passou o vácuo, arrebentou as hérnias e foi um grito atrás do outro. Meu abdômen ficou inchado na hora, então a Maria disse que ia me encaminhar para um cirurgião plástico amigo dela. Ele estava voltando de viagem e ia me atender como cortesia no dia seguinte, logo na segunda-feira.

Fui ao consultório, que fica ao lado da clínica de estética, junto com meu marido, Tjin Kiong, e logo fui atendida pelo médico Carlos Jorge Cury Mansilla. Como os dois locais ficam muito próximos e tinha uma recomendação da primeira, não suspeite de nada. Ele se mostrou atencioso e muito confiante.

Fui examinada e o médico me disse que eu teria de fazer os exames que ele solicitaria com muita agilidade porque era caso de cirurgia, pois eu estava também com febre.

Como um "bom médico", de acordo com as palavras do próprio, também falou sobre minha aparência e disse que a melhor forma de resolver as hérnias, tirar o excesso de pele e deixar abdômen lindinho seria fazer uma abdominoplastia - uma cirurgia plástica realizada que retira o excesso de pele, gordura localizada e recupera a firmeza dos músculos da região abdominal. Esse procedimento também consegue remover as estrias localizadas na região, pois há remoção de pele.

Meus seios também estavam caídos, então ele indicou que eu colocasse próteses de silicone e afirmou que isso poderia melhorar até mesmo minha autoestima, abandonando os medicamentos depressivos. Ele sugeriu de dar um desconto, porque foi uma recomendação de uma amiga dele. Eu não sabia o que era ‘venda casada’, então saímos da clínica acreditando que eu estava nas mãos certas. Meu marido só queria o melhor para mim.

Voltando para casa, meu marido conversou comigo com muita doçura:

- Vamos fazer os exames e, dando tudo certo, você vai fazer uma cirurgia só, afinal o médico disse que é seguro. Você volta a ter o corpo de antes e resolvemos o problema das hérnias também.
- Você acha que meu corpo está tão destruído? Não quero um corpo estranho ou silicone em mim.

Eu achava que Tjin queria que eu tivesse um corpo novo. Fiquei insegura, pesquisei sobre os procedimentos, fiz os exames às pressas e voltei ao consultório juntamente com meu marido. O doutor Carlos disse que eu estava apta, encontrou uma vaga na agenda dias depois porque corria-se o risco de ter um estrangulamento [obstrução] do intestino.

- Você pensou sobre a abdominoplastia e no silicone?
- Eu só quero resolver o problema das hérnias, pois meu trabalho é manual, sou uma artista plástica, trabalho muito com as mãos em pinturas grandes. Pesquisei e vi que a recuperação é demorada.
- Veja bem, vou fazer um valor abaixo do mercado para você ficar perfeita e esses procedimentos não são arriscados.
- Então vou fazer a abdominoplastia somente, pois não quero esse negócio de silicone.
- Pronto, posso fazer uma mastopexia, que é uma cirurgia que tem o objetivo de remodelar e levantar os seios flácidos e caídos, a chamada ptose mamária. Esse procedimento também é chamado de lifting de mamas. Sem o silicone, pois estou disposto a fazer tudo para você ficar bem, o valor total é de R$ 15 mil. Você vai ter uma outra vida sem remédios, pois sua vida vai mudar para muito, muito melhor. A recuperação é de três meses. Imagine uma mulher empoderada...

Fomos ludibriados! Fechamos o pacote e me organizei para a tal cirurgia.

Começo do pesadelo

No dia da cirurgia, fizeram experiências em meu corpo. Durante o procedimento, tive uma parada cardíaca. Fui trazida depois de tanto aperto no peito e doses altíssimas de atropina/adrenalina, além de outros medicamentos direto no coração, como consta no prontuário. Após eu voltar, fecharam o abdômen e partiram para os seios. Depois, me vestiram uma cinta tamanho PP, sendo que meu tamanho normal seria uma G, pelo menos.

Já no corredor acordei toda suja de vômito e com muitas dores. Passei uma noite de inferno, parecia que tinham aberto meu tórax. Pela manhã, o médico trouxe um aparelho para eu exercitar os pulmões e tranquilizou meu filho e meu marido, que estavam aflitos. No fim da tarde, mesmo sem melhoras, ele me deu alta.

Eu não conseguia respirar. Foi quando meu marido contatou uma esteticista, que logo viu meu quadro clínico, ligou para o médico e disse que eu estava mal, que tinha algo errado e que isso daria um ‘B.O’. O Tjin também ligou para uma médica da família, que veio me socorrer, ela ficou horrorizada e disse que isto não era uma cirurgia plástica. Tive um quadro de embolia pulmonar, ela administrou os medicamentos, recomendou que procurássemos outro cirurgião e deu ordem para ficar sem a cinta.

Eu apresentei uma melhora até voltar para retirar os pontos, os quais vinham com pedaços de pele e sangue. Eu chorava, pois começou a abrir a cirurgia dos seios. Entrava um polegar nas aberturas, meu abdômen começou a inchar e seguido de uma vermelhidão com uma sensação de que estava queimando.

Voltei a procurá-lo e a máscara dele caiu para nós: me tratou como seu eu fosse um cavalo, que aguentava os abusos. Então foi aí que procurei um cirurgião plástico para que me ajudasse. Este segundo realmente me ajudou, com orientações para denunciar o charlatão ao Cremam [Conselho Regional de Medicina do Estado do Amazonas] e me deu uma perícia detalhando o meu quadro clínico. Também me falou que nenhum médico iria por as mãos em mim justamente pelo grau de risco de morte. E assim aconteceu: ninguém queria se envolver, até a médica da família.

Minha casa virou um hospital, meu quarto um centro cirúrgico, meus filhos e marido eram os enfermeiros e eu a cirurgiã, com um abscesso no abdômen, uma bolsa de pus que se acumulava nos tecidos, órgãos ou espaços dentro do corpo.

Consequências graves

Por fim, criou-se uma fístula e entupiu a saída. Fui obrigada a fazer uma incisão na área sozinha, mesmo sem os conhecimentos técnicos. Saiu muito pus e corpos estranhos, além de matéria minha que estava necrosando. Enquanto isso, o cirurgião que enganou várias mulheres em Manaus fugiu.

Eu enlouqueci porque não o encontrava mais. Vi minha vida virar de ponta-cabeça. Toda minha existência passava rapidamente na minha cabeça, fiquei dois anos e meio com o abdômen aberto e infecção presente, quadro de septicemia, ninguém descobria qual era a bactéria, fiz tratamento com vários médicos para vencer a infecção e nada. Até que uma médica infectologista solicitou um teste para bacilos álcool-ácido resistentes (BAAR), fez um tratamento eficaz.

Carrego várias patologias comigo por conta do erro médico e faço uso de vários medicamentos, tanto para humor, ansiedade, síndrome da dor crônica, síndrome do jaleco branco [transtorno psicológico em consultas médicas], problemas cardíacos, um nódulo que prejudica a tireoide. Perdi órgãos como útero e ovários que foram infectados, várias cirurgias no mesmo local do abdômen, outra para mover os órgãos para serem lavados e recolocados, ausência de musculaturas do lado esquerdo sustentado por uma tela inteiriça, abdômen congelado, dor viceral.

No total, fiz sete cirurgias só no abdômen. Também tenho vários cortes na musculatura e nervos, perdi a bainha de mielina, tenho os seios mutilados e o corpo cheio de limitações com hérnias de disco na coluna. Meu corpo se adaptou a usar a musculatura das costas para não sobrecarregar o músculo abdominal.

Novos casos e justiça falha

Depois de revelar meu caso publicamente, outras vítimas começaram a aparecer e nossas sindicâncias no Cremam não andavam. Inclusive, os próprios membros do conselho médico me perguntavam se fui eu mesma que me instrumentei, pois não queriam acreditar que um ser humano leigo seria capaz. Enquanto isso, eu e minha família estávamos sendo ameaçados de morte e, muitas vezes, pensei em me matar.

Cobrei do CRM sobre a situação do Carlos Jorge Cury Mansilla e do segundo cirurgião que fez parte da equipe, Yasser Arafat Salinas Cury. Para minha surpresa, este último não era médico e estava atuando como cirurgião plástico. Já o Cury era um mero clínico geral que, durante a sindicância do próprio CRM, deu a ele neste período uma RQE [Registro de Qualificação e Especialização] para se blindar.

Em uma atitude de desespero, fiz um protesto completamente nua em frente ao Conselho Regional de Medicina e, na mesma hora, a RQE dele caiu. Pedi apoio da mídia local para que todos soubessem da injustiça com as vítimas do Amazonas. Na oitiva na delegacia, ele apanhou. Quebrei dois carros do advogado dos meliantes, cobrei um posicionamento do MPF [Ministério Público Federal], meu processo foi parar na Polícia Federal, fruto dessa denúncia.

Estava entre a vida e a morte, mas sempre cobrando do CFM [Conselho Federal de Medicina] até que saiu a cassação do então médico Carlos Jorge Cury Mansilla por unanimidade, em 2017. Ele responde por três óbitos e 23 mutilações em Manaus, além de quatro vítimas em Rondônia.

Em 2021, ele foi condenado a cinco anos de prisão pelo meu caso e julgado no processo de duas vítimas fatais, com oito anos de reclusão cada, além dos demais processos de outras vítimas que ainda estão em curso. Já o CRM e CFM não puderam fazer nada com Yeasser Arafat Salinas Cury, pois só cabe no âmbito criminal comum.

Sinto uma ira tão grande, pois o tal médico cassado trabalha como clínico geral e atua como cirurgião e anestesista no Hospital Santo Antônio, no estado do Pará, mudando de especialidade como quem troca de roupa. Isso mesmo sem uma RQE. Quantas vítimas ainda virão e ficarão caladas? Quando isso vai parar? A luz da justiça é tão morosa que, até alcançarmos o vigor da lei, o enganador estará em liberdade. Quando for preso, vai usar argumentos de que está velho e cheio de mazelas e vai cumprir prisão domiciliar.

Ainda virão muitas vítimas dessa natureza, todos os dias pessoas espertas e cultas que findam caindo nas mentiras de ‘falsos isso ou aquilo’, pois não acredito na imparcialidade da justiça diante de tantas provas incontestáveis. Tenho um grupo de apoio às vítimas de erros médicos nas redes sociais, são tantas nesse país da impunidade... Ninguém está livre de ser mais uma vítima. Não podemos perder a esperança e sempre tenha coragem de denunciar. Somos o que fazemos com o que fizeram de nós."

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