A jornalista Cristina Fibe, autora do livro-reportagem “João de Deus — O abuso da fé”
Agência O Globo/Leo Aversa
A jornalista Cristina Fibe, autora do livro-reportagem “João de Deus — O abuso da fé”


Enquanto o autoproclamado médium João Teixeira de Faria, conhecido como João de Deus, era aclamado por seus supostos poderes de cura e recebia milhares de fiéis semanalmente, moradores da cidade goiana de Abadiânia comentavam — e inclusive faziam apostas — sobre os abusos sexuais cometidos por ele dentro da Casa de Dom Inácio de Loyola, em que realizava os atendimentos. Anos antes de 2018, quando uma mulher holandesa expôs em uma rede social o estupro que sofrera, desencadeando mais centenas de relatos de violações e uma força-tarefa para investigar o que é considerado o maior caso de crime sexual no país, outras já haviam tentado denunciá-lo.


É o que mostra a jornalista Cristina Fibe, especializada na cobertura sobre direitos das mulheres e uma das responsáveis pela revelação dos crimes de João de Deus pela imprensa. Nos anos seguintes, ela leu mais de mil páginas de processos, visitou o centro espiritual e realizou centenas de entrevistas, inclusive com figuras públicas como o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso e Marconi Perillo, ex-governador de Goiás.

No livro-reportagem investigativo “João de Deus — O abuso da fé”, que será lançado pela Globo Livros em 14 de outubro, Fibe apresenta os detalhes sobre a vida e os crimes cometidos pelo ex-líder religioso.

Por que a revelação dos abusos demorou tanto?

Tenho duas suposições. Um aspecto é o poder econômico do João. Quando ele se estabelece em Abadiânia, no final dos anos 1970, a cidade não tinha renda e ele vira o seu principal motor financeiro. Sua derrocada significaria a derrocada de Abadiânia, como aconteceu. A outra parte é o machismo estrutural, a noção de que os homens têm mais poderes e de que as mulheres eventualmente podem ser usadas a seu bel-prazer. Isso fez com que houvesse um grande acordo de silenciamento. As pessoas sabiam que ele estava estuprando mulheres e não achavam isso tão grave. As mulheres falavam e eram tidas como loucas, e se calavam porque não sabiam que faziam parte de uma rede de crimes, achavam que não eram ninguém diante daquele “deus”.

O que mais te surpreendeu?

Saber que várias mulheres tentaram sim denunciar. Tentaram gritar e foram expulsas da casa de Dom Inácio, silenciadas por enfermeira, tomaram tapa na cara de dona de pousada. Um homem contou que trabalhava na rua da Casa e quando chegava um ônibus do Sul, origem de grande parte das vítimas, ele e outros homens apostavam quais seriam abusadas. E tinha ainda as que fizeram boletim de ocorrência. Uma menina menor de idade, de Minas Gerais, foi abusada por João com o pai dentro da sala, de olhos fechados. Quando ela conta, a família faz um BO, mas anos depois ele é inocentado. A juíza, que deu entrevista para o livro, explica que, naquele caso, João foi processado por “violação sexual mediante fraude”. Ela reconheceu a violação, mas não a fraude.

O que estes casos mostram sobre a forma como se encara o abuso sexual no Brasil?

Mostram que há uma naturalização deste ato de violência, como se não fosse tão grave. E também uma grande falha, em vários pilares: na investigação dos crimes, na forma como a Justiça os encara, em como devemos priorizar isso no jornalismo. Não é natural, não é pouco grave. Entrevistei uma mulher que foi abusada e contou para a mãe, que também era frequentadora da Casa e lhe deu de presente um livro sobre chacras, dizendo que ela iria “entender que foi um tratamento”. Depois esta sobrevivente contou para o marido, foi empurrada e xingada de vagabunda, como se fosse responsável. Precisamos entender o que são esses crimes e que os corpos das mulheres não estão à disposição dos homens. A educação sexual é boa parte desse caminho.

Deve ter sido difícil ouvir os relatos das mulheres que foram violentadas.

É muito difícil, mas sempre que ficava abalada pensava que se o que eu estava sentindo era ruim, o que elas passaram era muito pior. A força dessa investigação, de conseguirmos publicar esse livro, é dessas mulheres, que se uniram e enfrentaram um cara grande como o João. Tenho convicção de que precisamos expor isso. Me surpreende, por exemplo, a quantidade de pessoas para quem tenho que explicar que o que ele fez é estupro. Como jornalistas, temos um papel importante de ouvir e saber comunicar. E é preciso um cuidado muito grande na forma como tratamos esses crimes e essas mulheres, porque estamos lidando com situações que têm consequências para vida toda, e há um risco de revitimização. Muitas vezes as sobreviventes de abusos continuam sofrendo por anos, porque não são devidamente tratadas.


O movimento MeToo impulsionou a exposição dos abusos cometidos por João de Deus?

O MeToo, como diz o nome, é um movimento de "eu também", uma puxando a outra. No caso do João, vejo respingar no relato da Zahira, holandesa que estava fora do Brasil, tinha sido estuprada há alguns anos, e resolveu expor esse crime em inglês em uma rede ampla como o Facebook. O relato começou a ser compartilhado por um grupo feminista no Brasil e já havia comentários com hashtags como "MeToo", "João de Deus abusador", e as mulheres marcando umas as outras. Acho esse post simbólico do MeToo porque criou um burburinho mundial e se formou um pequeno movimento denunciando o João. É uma espécie de erupção e entramos como jornalistas junto nesse movimento, para ouvir essas mulheres. Nunca vamos saber, caso não houvesse o MeToo, se Zahira teria feito esse post e se teria dado coragem às mulheres brasileiras que estavam aqui gritando sozinhas. Essa união é muito importante e faz a gente dizer: "chega".

Mesmo após João de Deus ser condenado, ainda fascina alguns fiéis. Por quê?

Há um bom número de pessoas que acham que foram curadas ou viram curas e ainda o endeusam por isso. Muitos acreditam que ele abusou dessas mulheres, mas acreditam no seu poder espiritual de cura. Um dos entrevistados, Luís Roberto Barroso, teve um câncer antes de ser ministro do STF e não largou outros tratamentos, mas buscou atendimento com João, se curou e virou frequentador fiel. Ele me disse que acha que as pessoas que foram curadas devem ser gratas a João, assim como acha que ele deve ser punido pelos crimes que cometeu.

Um homem tão poderoso ter sido condenado por crimes sexuais é marco importante nas vitórias do feminismo?

É importante a gente ter desmascarado um sujeito que era celebridade mundial, deu entrevista até para Oprah (Winfrey) enquanto abusava de mulheres, elas terem sido ouvidas e João ter sido condenado a mais de 60 anos de prisão. Mas há um sinal muito ruim: João hoje está de novo em prisão domiciliar. E a Casa de Dom Inácio de Loyola segue funcionando. Essas mulheres que tiveram coragem de se expor sentem medo. Que sinal você dá se deixa um estuprador em série em casa? Evoluímos sim, mas ainda falta um longo caminho a percorrer.

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