Organização de mulheres curda se solidariza a Afeganistão e critica países da OTAN por tomada de poder do Talibã
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Organização de mulheres curda se solidariza a Afeganistão e critica países da OTAN por tomada de poder do Talibã



Esta semana foi marcada pela invasão de três províncias do Afeganistão por tropas do grupo fundamentalita islâmico nacionalista Talibã . A tomada de poder pelo grupo colocou em xeque uma série de direitos das mulheres, principalmente ao querer colocar em prática a sharia (lei islâmica), que permite violências, as retiram da vida pública e restringem seus direitos como cidadãs.

No último dia 16, a Comunidade de Mulheres do Curdistão publicou uma nota de apoio e solidariedade às mulheres afegãs. As mulheres de lá, principalmente as que ficam na Rojava (também conhecida como Curdistão Sírio), são conhecidas pela forte organização popular contra regimes fundamentalistas e nacionalistas em prol da democracia e da liberdade.


O exemplo mais recente da resistência das mulheres na Rojava foi a criação da Força de Defesa das Mulheres (YPJ) em 2012, o exército de mulheres que ficou muito conhecida no mundo inteiro por lutar contra o Estado Islâmico (e serem temidas por ele). Sua participação política data das décadas de 1970 e 1980 e têm como principais pilares não apenas a conquista de direitos para mulheres, mas reivindicar e conseguir o reconhecimento do Curdistão.

Solidariedade às afegãs

O comunicado da Comunidade de Mulheres do Curdistão foi traduzido para o português e publicado na íntegra no Instagram da editora Terra Sem Amos. “No Afeganistão, que tem sido palco de guerras pelo poder durante décadas, o poder foi entregue aos misóginos Talibãs como resultado das políticas sujas das potências hegemônicas globais”, começa o texto.

“Esta situação, que provocou grande raiva e ira entre mulheres e os povos do Afeganistão e no mundo inteiro, revelou mais uma vez a seguinte verdade: não há poder em que possamos confiar a não ser no autopoder, na auto-organização e na autodefesa”, diz o grupo.

O comunicado também chama atenção ao silêncio dos países da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), criticando as nações por falarem sobre liberdade e direitos da mulher, mas não expressaram preocupações sobre a situação no Afeganistão.

A comunidade reforça a importância de uma organização por parte de mulheres para defenderem “nossa existência e vontade contra as políticas imperialistas e coloniais das potências hegemônicas globais". Como exemplo de resistência, elas citam a criação da YPJ contra o Estado Islâmico. Ela também afirma que conflitos como as ocupações do Estado Islâmico no Rojava e à região de Bashûrê, além de ocupações da Turquia, são “políticas coloniais e genocidas” do interesse do capitalismo global.

A nota expressa preocupações quanto à integridade física das mulheres no Afeganistão, já que lembram que os conflitos que resultaram no YPJ subjugaram e tiraram a vida de diversas mulheres. “Isto é prefigurado pelo aumento das violências contra mulheres nos últimos meses e pelos assassinatos de mulheres pioneiras”, diz o comunicado.

Estados ocidentais também são duramente criticados. "Eles não só objetivam estas terras, que só veem da perspectiva do colonizador, mas também as pessoas que nela vivem. Não há nada que os titulares destas políticas de 20 anos não façam para satisfazer seus próprios interesses. [...] Aqueles que afirmaram lutar contra o Talibã por seus próprios interesses e que sacrificaram a vida de 200 mil pessoas, hoje fazem acordos sujos com esses mesmos poderes como se nada tivesse acontecido".

A organização afirma que as mulheres foram as que mais lutaram por democracia e liberdade durante a ocupação do Talibã e que as mulheres do Afeganistão já estão conseguindo se organizar para fazer o mesmo. "Temos plena fé que elas tecerão sua resistência não apenas contra os Talibã, mas contra todos os poderes e mentalidades misóginas". Por fim, elas fazem um chamado para que outras mulheres tenham solidariedade com as afegãs e defendam seus direitos no mundo todo.


Violências contra mulheres em Rojava

Florencia Guarch, mestre em Ciência Política e especialista em organização de mulheres no Curdistão, explica que as violências sofridas por mulheres localizadas no Curdistão sírio, bem como as afegãs ou as que vivem em outros países localizados no Oriente Médio, não são tão diferentes das sofridas, por exemplo, no Brasil ou em outros países latino-americanos.

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"Estamos imersos em um cenário extremamente racista, colonial, de profunda desigualdade social. Boa parte dessa violência é historicamente vivida por essas mulheres pela implementação de projetos imperialistas de grandes potências internacionais que alimentam o extremismo e tentam desestabilizar regiões”, explica.

Para além disso, as “especificidades” no caso do Oriente Médio como um todo é o debate da relação entre a questão do islamismo e as maneira confusa como se mescla com o Islã político. Isso contribui para processos de formação de grupos como o Talibã e o Estado Islâmico, que colocam em prática interpretações muito radicais da religião.

“Há ainda elementos tradicionais, que tem a ver com contradições locais bastante específicas; a questão da mutilação genital, problema não apenas em Rojava mas também em regiões da África; os chamados ‘crimes de honra’; e o pagamento de dotes, que perpetura casamentos infantis”, explica.

Reconhecimento do Curdistão é a prioridade

Historicamente, a população curda passou por diversos processos de silenciamento e de perseguição por países em que a região se localiza. O Curdistão abrange regiões de países como Irã, Iraque, Síria e Turquia -- este último o país com que o Curdistão tem sua relação mais conflituosa.

“Na década de 1960, o idioma era proibido e a população não podia exercer sua curdidade ou se manifestar enquanto população. É uma região inferiorizada que foi muito perseguida”, explica Guarch.

Em 1978, o teórico político e ativista Abdullah Öcalan fundou o Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) com o intuito de unificar as quatro partes curdas e criar um Estado independente. Guarch explica que, naquele momento, há registros da participação de apenas duas mulheres no partido: Kesire Yıldırım, esposa de Öcalan que deixou o PKK pouco tempo depois por discordâncias internas; e Sakine Cansiz, assassinada em Paris em 2013.

“Sakine está inserida no contexto do alevismo, uma vertente muçulmana em que as mulheres têm mais liberdade. Apesar de não levantar uma bandeira feminista, ela advogava para garantir direitos trabalhistas e participação de mulheres”, explica.

Foi apenas em 1984 que o partido se militarizou e iniciou a luta armada em busca deste objetivo. Também foi quando a participação de mulheres aumentou. Guarch reforça que, naquele primeiro momento, a agenda das mulheres curdas não era por equidade de gênero ou antipatriarcal, mas com o único objetivo de libertação do Curdistão.

A primeira organização que passou a pautar mais ativamente a participação de mulheres foi a União das Mulheres Patrióticas pelo Curdistão (YJWK), criada em 1987 em Hamburgo, na Alemanha. De lá para cá, outras organizações como a Tropas de Mulheres Livres do Curdistão (1995), o Partido das Mulheres Livres do Curdistão (PJKK) e a Academia das Mulheres Livres começaram a se organizar.

Os grupos de guerrilheiras, como o caso também das YPJ, foram se tornando unidades de proteção de mulheres. Apesar da luta ativa contra o Estado Islâmico, organizações como essas tem como finalidade de unir um grupo oprimido para, por meio das armas, garantirem sua própria sobrevivência.

“Mais do que um exército, essas unidades são parte de um processo social, político e econômico muito maior que passa por uma organização política radical. Primeiro, essas mulheres se organizam em torno de uma ideologia ao redor de um projeto de emancipação social, mas também individual. Depois, pela formação de um estado e de um governo radicalmente democrático, antipatriarcal. A partir daí, as unidades vêm como braço armado para defesa desse projeto de sociedade”, explica Guarch.

“A ideia não é combater um ‘inimigo’ específico. A ideia dessas organizações é almejar por um processo revolucionário que construa um novo tipo de sociedade de ética, de política e de relacionamentos tanto entre comunidades quanto com a natureza dentro do sistema capitalista”, acrescenta.

A cientista política considera importante não traçar os obstáculos do Curdistão como sendo um só, mas considerar esses elementos ideológicos e estrutura de poder para não cair numa visão imediatista do problema enfrentado pela população curda. “O que está pautado é a luta pela sobrevivência, e nesse aspecto uma autodefesa militarizada se torna fundamental.”

Apesar de as unidades de autodefesa serem pontos fortes, a cientista política explica que existem outros trabalhos diversos em relação a essa nova construção de sociedade. “Há um projeto social e revolucionário que trabalha em escolas, formando a comunidade, dando formação para as pessoas e visando a autossuficiência econômica dessas mulheres”, pontua.

Por esse motivo, ela afirma que o armamento das mulheres se dá por uma questão de necessidade, mas acaba se tornando parte secundária e mais pragmática dos projetos de sociedade dessas organizações. “É mais uma necessidade local do que um objetivo”.

Atualmente, o Estado Islâmico contiuna sendo uma ameaça na região. No entanto, Guarch aponta que o obstáculo mais forte da região são os exércitos turcos. “O país termina recrutando e pagando soldados extremistas. Além disso, o presidente Recep Tayyip Erdoğan tem objetivos de reconstrução de um império otomano na região, estimulando que grupos terroristas se reorganizem e desestabilizem a região”.

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