Há um mês, Ana*, 25 anos, foi levada ao hospital em estado grave após o ex-marido a agredir com sete facadas pelo corpo, incluindo coxas, braços e olhos. Ela é moradora de São Paulo, mãe de três filhos e relatou ao Delas como violência doméstica aumentou na quarentena.  

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Os casos de violência doméstica e tentativa de feminicídio aumentaram durante a quarentena
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Os casos de violência doméstica e tentativa de feminicídio aumentaram durante a quarentena


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“Era praticamente 24 horas de tortura psicológica”, diz a vítima de violência doméstica . Assim como Ana, outras mulheres se encontram obrigadas a permanecer mais tempo em casa com seus agressores durante a quarentena – fundamental para conter o avanço do novo coronavírus (Sars-Cov-2) , convivendo com o medo e a ameaça constante

Um levantamento realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) no início deste mês comprova isso. O número de ocorrências de violência contra a mulher aumentou em seis estados (São Paulo, Acre, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Mato Grosso e Pará) em relação ao mesmo período em 2019.

No estado de São Paulo, Polícia Militar registrou um aumento de 45% no atendimento de mulheres vítimas de violência. Além disso, o número de feminicídios cresceu em 46%. No Rio de Janeiro não foi diferente. Dados do Tribunal de Justiça do Estado Rio de Janeiro (TJRJ) indicam um aumento de mais de 50% nas denúncias de violência contra a mulher.

“Se as vítimas de violência doméstica já passam por situações agoniantes em dias normais, a pandemia torna-se um fator ainda mais agravante para aquelas que agora estão expostas a seus agressores 24 horas por dia e não tem a quem recorrer”, comenta Thaís Santesi, idealizadora do Projeto Bastê (@projetobaste no Instagram), que oferece apoio terapêutico a valores populares e assessoria financeira a vítimas de violência doméstica.

A história de Ana abre uma série que será publicada nos próximos dias com relatos de outras mulheres que estão vivendo o dia a dia da violência doméstica. 

“Sem ter o que fazer, ele descontava em mim”

A tentativa de feminicídio foi a consequência de uma série de agressões que começaram há cinco anos, quando ele passou a ter problemas com álcool. Segundo Ana, antes disso o relacionamento era como qualquer outro: “Quando o conheci, ele era completamente diferente”.

Ana conta que o marido passou a chegar em casa bêbado e violento. “Quebrava tudo em casa e me ofendia. Chamava de lixo e dizia que eu não encontraria ninguém melhor que ele”, diz. Ela lembra que nesses momentos optava pelo silencio para o marido não ficar “mais nervoso e vir para cima de mim”.

No início, a separação não era uma opção. Primeiro, por não ter para onde ir com os filhos. Segundo, por acreditar que ele voltaria a ser como antes. No entanto, as agressões continuaram até chegar ao limite de Ana e ela fez uma denúncia formal, onde foi concedido a ela o direito à medida protetiva – prevista na Lei Maria da Penha (11.340/2006).

“Mas isso não o impediu de me procurar. Ele sempre me ameaçava dizendo que se eu não fosse dele, não seria de ninguém. Eu fiquei com medo e voltei [com ele] achando que seria diferente, mas não mudou nada”, lamenta.

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Em março, com a chegada da quarentena, a situação se agravou. O marido perdeu o emprego, passou a beber mais e, consequentemente, a agredir mais. “Sem ter o que fazer, ele descontava em mim. Se ele estivesse trabalhando, pelo menos eu teria o dia de paz”.

Foram dias e noites sob ameaças e agressões até que Ana conseguiu expulsá-lo de casa mais uma vez. Porém, ele voltava cada vez mais violento. “Ele dizia ‘eu vou te matar’, ‘ou você volta ou vai morrer’, ‘vou matar suas filhas’”, conta. Até que na última tentativa de voltar para casa, ele tentou estuprá-la e, ao resistir, tentou matá-la.

Foram facadas na coxa, braços e olhos. Felizmente, os vizinhos chamaram ajuda a tempo. Ana foi socorrida e o ex-marido, preso. “Se eu não tivesse perdoado e acreditado tantas vezes que ele ia mudar, talvez isso pudesse ter sido evitado”, lamenta.

Hoje, Ana tem ajuda da família e se recupera das agressões com sessões de fisioterapia para tratar o estrabismo, consequência da facada na região dos olhos.

Dificuldade em buscar ajuda ainda é uma realidade

O silêncio das vítimas ainda é um obstáculo para a Lei Maria da Penha
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O silêncio das vítimas ainda é um obstáculo para a Lei Maria da Penha

Thais Santesi comenta que casos como o de Ana não são incomuns. "A maioria dos agressores aparecem na vida da vítima como homens galantes, cortezes, amorosos. A manipulação é gradual, não acontece de um dia para o outro. Eles começam a maltratá-las aos poucos quando estas já encontram-se envolvidas, apaixonadas", pontua.

Assim, torna-se difícil romper com a relação e o ciclo de violência. E mesmo quando há uma reação envolvendo a denúncia formal e a medida protetiva, o Estado falha na fiscalização e educação dos agentes para garantir a segurança das vítimas. A situação acaba sendo normalizada e o medo toma conta da situação, como Ana relata em sua história.

Esse medo dá força ao silêncio e a denúncia nem sempre é feita. Por isso, segundo Maria Consentino, juíza do 1º Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Belo Horizonte (MG), a subnotificação de casos de violência doméstica são uma realidade no país. “O medo da mulher denunciar é o maior obstáculo da Lei Maria da Penha”, avalia.

Santesi reforça que no momento, em tempos de pandemia, a polícia torna-se o único refúgio. “É ela quem precisa ser acionada”, fala. A orientação é buscar uma Delegacia de Defesa da Mulher (DDM) para fazer um boletim de ocorrência e buscar informações. “Ela precisa acreditar que é possível denunciar e sair dessa situação. Caso contrário, perde a vida”, acrescenta a juíza.

Além da denúncia formal, Santesi dá outra orientação: “Sugerimos que a vítima pratique o chamado ‘método pedra cinza’ com seu agressor enquanto sua situação não é resolvida. Consiste em não o confrontar de forma alguma e tentar ao máximo manter-se sem emoções (como uma pedra). Por mais difícil que isso possa parecer, pode dar tempo de salvar a vida enquanto você não consegue refúgio ou o amparo do Estado”.

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Canais de denúncia

  • Central de Atendimento à Mulher em Situação de Violência (180)
  • Polícia Militar (190)
  • Defensoria Pública de São Paulo – Núcleo de Defesa das Mulheres Vítimas de Violência de Gênero (WhatsApp, no número (11) 94220-9995; e 0800-773-4340).

Além disso, em São Paulo, as Unidades Básicas de Saúde (UBSs) estão preparadas para o atendimento de vítimas. Também é possível fazer boletins de ocorrência online.

Em outros estados, a orientação é buscar Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) ou delegacias comuns.

*Nome trocado a pedido da vítima para preservar a identidade e garantir a segurança.

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