Para a modelo Luana Carvalho, carnaval nunca foi sinônimo de liberdade. Enquanto muitos encontram, nas festividades da época, um motivo para se vestir diferente e fazer brincadeiras fora do cotidiano, para ela e outras muitas pessoas gordas isso pode representar medo e humilhação.
“Apesar de o carnaval ter essa prerrogativa livre, não é assim para todas as pessoas. Faço parte de um grupo marginalizado que não tem a liberdade de vestir o que quiser ou se relacionar com quem quiser. Nós não somos como pessoas magras dentro dos padrões de beleza. Somos humilhadas, hostilizadas e às vezes até violentadas fisicamente porque muitas pessoas ainda pensam que não merecemos estar ali, que somos ridículas”, explica Luana sobre a gordofobia .
Para chamar atenção para o problema que nem sempre é percebido por quem não o vive na pele, Luana desenvolveu, com a amiga Gabriela Morais, a campanha #CarnavalSemGordofobia , que além de publicar conteúdos no perfil do Instagram e motivar pessoas a contarem suas histórias, pretende organizar um espaço seguro e acolhedor para outras pessoas gordas no carnaval do Rio de Janeiro.
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O primeiro impulso, contam elas, foi o planejamento que fizeram para o carnaval que passarão juntas. “Sou gaúcha e este ano vou passar o carnaval no Rio com a Gabi, que é minha amiga. Ela me contou que tinha receio de ir para blocos e então começamos a conversar sobre alternativas e sobre reunir pessoas gordas para ir conosco”, explica Luana.
E, se existe receio quanto à possibilidade de curtir uma festa que deveria ser democrática e inclusiva, não é por acaso. Aos 22 anos, a estudante Gabriela conta que já viveu episódios humilhantes em vários carnavais e, por isso, a festa ganhou um significado negativo para ela.
“No último carnaval eu decidi sair de maiô. Estava super feliz com minha fantasia, empolgada e tudo mais. Fiz um trajeto da Barra até a Lapa, aqui no Rio, e fui humilhada o dia inteiro”, desabafa. “As pessoas passavam por mim e falavam no meu ouvido: ‘tira essa roupa, vai pra casa’. Eu ouvi comentários gordofóbicos desde os ricos da Zona Sul até de pessoas em situação de rua, que gritaram para que eu fizesse uma dieta”, diz.
“Depois fiquei com vergonha, me senti mal. Peguei o ônibus para voltar pra casa e, na hora de passar na roleta, as pessoas começaram a gritar de dentro. Eles diziam que a baleia ia ficar entalada. Me fotografaram, riram de mim. Me senti uma aberração”, relembra.
“Em outra situação, estava com um grupo de amigos e um conhecido veio me dizer que, caso eu passasse mal, ninguém ia aguentar me segurar. Ele disse que, se fosse o caso, eles iriam embora e eu ficaria lá”, conta ela, que diz saber que episódios como esse não serão os últimos de sua vida.
Os relatos de Gabriela estão longe de serem os únicos. Luana Carvalho, que vive em Porto Alegre, possui experiências semelhantes na memória. “Em 2017 fui para um bloco com uma amiga que era magra . Assim que cheguei, ouvi várias piadinhas sobre o meu corpo e sobre a forma como eu dançava. Aquilo durou o dia inteiro”, diz a modelo.
“Depois, saímos do bloco e fomos para um samba. Lá eu também não podia dançar. Ouvi as mesmas coisas”, completa. “Na época, era o auge do CuriousCat, uma rede social que permite perguntas anônimas. Quando me conectei no meu, vi que várias pessoas enviaram mensagens de ódio . Elas perguntavam como eu tinha coragem de me vestir e dançar daquele jeito. Claro que não se identificavam”.
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As ativistas, porém - assim como outras dezenas de pessoas inseridas na campanha este ano - decidiram que não devem se privar de uma festa por causa do preconceito. “O objeto é unir as pessoas gordas e curtir o carnaval com todo mundo junto, porque assim podemos estar mais seguros e proteger uns aos outros”, conta Luana.
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“O carnaval ideal para mim é um carnaval sem racismo, gordofobia, lgbtfobia e machismo. Mas, para tal, é preciso educar a sociedade e isso é algo a longo (tipo muito longo) prazo”, completa Gabriela. Para contribuir nesse processo de educação, as duas elaboraram uma cartilha que oferece caminhos para que pessoas magras também ajudem na causa, disponível na página da campanha.
Como as pessoas magras podem ajudar no combate à gordofobia
1. Fale sobre a gordofobia
“Sim, pessoa magra, você pode e deve falar sobre a gordofobia sempre que for necessário e quando esse assunto estiver em pauta”, orienta a publicação, que reforça que “ficar em silêncio nunca será a melhor opção”.
2. Siga, divulgue, compartilhe, leia pessoas gordas
“Quando você faz qualquer uma dessas coisas você ajuda a luta anti-gordofobia de maneira muito mais eficaz do que comentando ‘mulherão’ na foto da sua amiga gorda”.
3. Desconstrua estereótipos
“O estereótipo do corpo gordo é o que faz com que pessoas gordas sejam vistas como feias, doentes, intelectualmente incapazes, preguiçosas desengonçadas, estranhas e descuidadas”, explica a cartilha. “Se papel como pessoa magra é entender, repreender e parar de reproduzí-los”. O ítem também destaca o espaço na mídia formal e internet dedicado às pessoas gordas, que pode ajudar a desconstruir ideias equivocadas.
4. Entenda a gordofobia como um problema estrutural
Entenda a gordofobia, ouça pessoas gordas e compreenda que isso vai além de chamar uma pessoa de gorda para ofendê-la.
5. Reconheça seus privilégios como pessoa magra
“Sim, você tem uma infinidade de privilégios por ser uma pessoa magra”, diz a publicação. Como exemplos, a campanha aponta a possibilidade de comprar roupas baratas, se relacionar afetivamente de forma explícita, não ter a saúde questionada e até ter um emprego.
6. Repreender/ensinar quando alguém falar dos gordos de uma forma pejorativa
A cartilha explica que a palavra “gordo” por si só carrega um estigma negativo, mas há um movimento para ressignificar o uso do termo como ofensa. “Quando você ver alguém falando gordo para ofender, repreenda e ensine”, diz.
7. Pense se a sua marca atinge todo mundo
Essa orientação é voltada principalmente para empreendedores de marcas grandes ou pequenas. A campanha explica que “não adianta vender uma roupa plus size se o valor é absolutamente inatingível às massas”. Existem pessoas gordas que simplesmente não saem de casa ou vestem o que servir - independentemente da estação - para viver o básico de suas vidas.
8. Divulgue obras e valorize o trabalho de uma pessoa gorda
Conhece uma escritora gorda? Compartilha. Conhece uma modelo gorda? Indica. Conhece um fotógrafo gordo? Chama para um ensaio. “È assim que se reconhece o trabalho de uma pessoa gorda e se rompe com estereótipo do gordo intelectualmente incapaz”, finaliza a campanha.