A menos de uma semana de completar 12 anos, a menina voltava tranquila das aulas em uma escola municipal na Zona Oeste do Rio. Na porta de casa, um aluno mais velho, que a seguia desde o colégio, a abordou e forçou entrada no imóvel. Ela foi levada até um dos quartos, onde ele “abusou sexualmente da criança, inclusive com penetração”, como está descrito no registro de ocorrência, lavrado no dia 9 de maio. O agressor filmou o ataque e passou a ameaçar a vítima, que nunca havia mantido relações, com a divulgação das imagens. Com esse artifício, ele obrigou a menina, em outras duas ocasiões, a praticar sexo forçado com mais três estudantes da mesma escola, todos também de 15 anos. Nessas situações, os quatro a estupraram simultaneamente.
Um levantamento exclusivo feito pelo GLOBO aponta que cenas como essa repetem-se no Rio a cada 36 horas, em média. Entre janeiro e maio deste ano, foram computados 102 casos de estupro coletivo no estado, como atestam dados obtidos junto à Polícia Civil via Lei de Acesso à Informação. Foram considerados na análise os crimes — ou fatos análogos, no caso de autores menores de idade — tipificados como estupro ou estupro de vulnerável em que, no momento do registro de ocorrência, havia pelo menos dois agressores já identificados ou apontados pela vítima.
“Minha filha é tão criança que parece que nem entende muito bem o que houve. Ela veio morar comigo, para passar menos tempo sozinha, e também teve de mudar de escola”, conta o pai da menina seguida e estuprada.
Em 2018, após uma mudança no Código Penal, os estupros ocorridos “mediante concurso de dois ou mais agentes” passaram a proporcionar uma pena maior, que pode superar 16 anos de prisão. A alteração começou a tramitar no Congresso dois anos antes, uma semana depois de vir à tona um estupro coletivo ocorrido em um pequeno imóvel no Morro da Barão, na Praça Seca, Zona Oeste do Rio. Filmada tal qual a menina abordada na porta de casa, a vítima, de 16 anos, teve os vídeos do abuso — nos quais aparecia nua e desacordada, e tinha as partes íntimas manipuladas pelos agressores — viralizados na internet, gerando comoção nacional.
Uma a cada quatro vítimas é menor de idade
Ao todo, os 102 estupros coletivos registrados no Rio este ano envolvem 243 agressores e 117 vítimas, já que, em alguns casos, mais de um alvo é atacado pelo grupo simultaneamente. Três em cada quatro vítimas são menores de idade. Dentro desse recorte, mais da metade é composta por abusados de no máximo 11 anos, com 45 crianças violadas por mais de uma pessoa ao mesmo tempo antes de chegar à adolescência.
“O prejuízo potencial é devastador, com estragos que podem persistir por toda a vida. E situações com múltiplos agressores podem ser ainda mais danosas, já que, além de não terem desenvolvimento físico e cognitivo, as crianças podem se sentir ainda mais constrangidas, coagidas e incapazes de lidar com os impactos do abuso”, explica a psicóloga Elaine Chagas, especializada em Infância e Adolescência e uma das diretoras do Instituto de Terapia Cognitivo-comportamental no Rio (InTCCRio).
A preponderância de alvos com pouca idade faz com que a Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima (DCAV) seja a unidade policial com mais investigações relativas a estupros coletivos do estado. Só este ano, a especializada responde por quase 10% dos casos, com nove inquéritos abertos.
“A DCAV tem um Setor de Depoimento Especial, com atendimento diferenciado e qualificado junto às vítimas, algo essencial no momento em que se busca onde relatar o crime”, diz o delegado Marcello Braga Maia, titular da unidade, que recebeu com espanto as estatísticas compiladas pelo GLOBO:
“É um número muito elevado, sem dúvidas. Mas entendo que a população tem acreditado mais nos aparelhos de proteção, que são principalmente a DCAV, os Conselhos Tutelares e a Defensoria Pública. E, com isso, acabam noticiando mais os fatos, ou denunciando por outros canais, como o Disque-Denúncia (21 2253-1177) e o Disque 100”.
Agressores usam intimidação como tática
A rotina de estupros sofridos pela menina perseguida após sair da escola só foi descoberta uma semana depois do primeiro ataque, graças à intervenção de um professor, que ouviu comentários suspeitos dos agressores e acionou a direção. Assustada e ameaçada pelos algozes, que a abordavam pelos corredores do colégio, a vítima não havia relatado o que vinha vivenciando para ninguém, fossem colegas ou a própria família. Especialistas explicam que a intimidação é um expediente usado com frequência pelos abusadores para tentar sair impunes.
“Estamos falando de vítimas muito vulneráveis, sobretudo as meninas mais novas. Se denunciar quando há apenas um agressor já é difícil, quando existem vários fica ainda mais complicado. Podemos dizer com segurança que esses números são consideravelmente maiores, porque existe todo um cenário que ainda favorece a subnotificação”, pondera Luciana Terra Villar, uma das lideranças jurídicas dos movimentos Justiceiras e #MeTooBrasil.
Conhecida pelos professores de outra escola municipal na Zona Oeste do Rio como uma aluna dedicada e de excelentes notas, uma menina de 13 anos aguardava o fim do intervalo após a primeira aula quando acabou entrando para as estatísticas da violência. Eram por volta de 13h45 de 28 de março, uma segunda-feira, e a adolescente se viu repentinamente cercada por quatro colegas de turma, todos da mesma faixa etária.
Dois dos estudantes seguraram a jovem pelos braços e taparam sua boca, enquanto os outros começaram a acariciá-la, mexendo em seus seios e partes íntimas repetidamente. As mãos da menina foram forçadas a tocar os órgãos genitais dos agressores, que também tentaram "esfregar o pênis no rosto dela", como consta no registro de ocorrência. Tudo dentro da sala de aula, em um ataque que só foi interrompido depois que o quarteto foi avisado sobre a aproximação de alguém. No momento da chamada, ao ter o nome anunciado, a vítima chorava descontroladamente, o que chamou a atenção do professor.
“Minha filha contou que, em um primeiro momento, chegou a achar que era tudo uma brincadeira. Ela demorou a entender o que estava acontecendo, até por não ter nenhuma vivência sequer parecida com isso. Eu só fui saber exatamente o que fizeram na delegacia, porque até então, por vergonha, ela não tinha conseguido descrever para mim tudo o que sofreu e ouviu. É uma menina que não fala nem palavrão, então imagine como é para ela tratar dessas coisas?”, lamenta a mãe da adolescente.
'Ensinar respeito às mulheres é o mínimo'
Se são maioria entre os alvos dos abusos, os menores de idade, responsáveis pelos dois casos citados, também aparecem com destaque, em especial nas ocorrências com três ou mais envolvidos, entre os autores dos estupros coletivos. São 40 jovens de 12 a 17 anos ligados a casos do gênero este ano, o equivalente a um em cada quatro do total de agressores.
“A mentalidade da sociedade ainda é a de que a mulher é um objeto, e de que eles são donos desse objeto. Precisamos de um trabalho grande de conscientização inclusive dentro das escolas, que precisam atuar com firmeza para romper os paradigmas do machismo estrutural. Ensinar respeito às mulheres é o mínimo, e isso tem de ser aprendido com clareza desde cedo”, cobra Flávia Pinto Ribeiro, presidente da OAB Mulher no Rio.
Atacadas em 84,6% das ocorrências, as mulheres são ampla maioria entre os alvos de estupro coletivo no Rio. Ainda assim, também há casos emblemáticos contra homens, quase sempre menores de idade — das 18 vítimas masculinas este ano, só duas têm mais de 18 anos. Uma dessas histórias é a de um menino de 10 anos que, ao comprar um refrigerante, foi abordado por um grupo de vizinhos mais velhos, que faziam comentários sexuais sobre sua irmã. Contrariado, o garoto retrucou na mesma moeda, mas acabou violentado.
Segundo o registro de ocorrência, feito em uma delegacia da Zona Oeste, os cinco agressores "imobilizaram a vítima segurando seus braços e pernas", e em seguida abaixaram as calças do menino. Os autores, então, "introduziram os dedos no ânus" da criança e puxaram a cueca "com muita força", chegando a machucar as partes íntimas do garoto.
“Nesse viés de dominação, o estupro coletivo é usado até mesmo em guerras, como forma de diminuir o indivíduo violentado”, lembra a advogada Flávia Ribeiro.
Procurada, a Polícia Civil informou que “as investigações estão em andamento para esclarecer todos os fatos e elucidar os casos”. Já a Secretaria Municipal de Educação (SME) frisou que “é contra qualquer tipo de abuso dentro ou fora dos espaços escolares”. Sobre o episódio ocorrido dentro de uma escola, a pasta afirmou que "a direção da unidade convocou os responsáveis dos menores para uma reunião e tomou providências". A nota pontua que "o caso ainda está sendo investigado pela polícia, mas trata-se de uma suspeita grave de abuso sexual praticado por quatro adolescentes contra uma estudante durante o horário escolar".
Confira a íntegra do texto enviado pela SME:
"A Secretaria Municipal de Educação é contra qualquer tipo de abuso dentro ou fora dos espaços escolares. O caso ainda está sendo investigado pela polícia, mas trata-se de uma suspeita grave de abuso sexual praticado por quatro adolescentes contra uma estudante durante o horário escolar. Imediatamente após o ocorrido, a direção da unidade convocou os responsáveis dos menores para uma reunião e tomou providências. No encontro, ficou acordado entre as partes que os quatro alunos suspeitos seriam transferidos para outras unidades, com o objetivo de garantir o afastamento dos agressores da jovem e preservar a permanência da aluna na unidade, que demonstrou interesse em continuar na mesma escola à época. Outra providência, também acolhida à época, foi a transferência de turma da menina, visando oferecer um novo ambiente para jovem dentro da unidade. A medida tomada com relação aos quatro alunos suspeitos faz parte das orientações contidas na Resolução SME nº 1074 de 14 de abril de 2010, que dispõe sobre o Regimento Escolar Básico do Ensino Fundamental da Rede Pública do Município do Rio de Janeiro.
Em função da gravidade da ocorrência, a Unidade Escolar acionou o PROINAPE (Programa Interdisciplinar de Apoio às Escolas) que, de imediato, fez contato com a Unidade de Saúde de referência do território da Unidade Escolar a fim de garantir atendimento psicológico à aluna. Desde então, ela vem recebendo acompanhamento psicológico em uma Clínica de Saúde da Família da região.
No dia 31 de maio, a responsável pela aluna manifestou o desejo de transferir a estudante para outra unidade escolar da região. Tendo em vista que um dos alunos envolvidos no ocorrido foi transferido em março (logo após o ocorrido) para a unidade em questão, a mãe não efetivou a mudança de escola. A Coordenadoria Regional de Educação segue atuando no caso da jovem com objetivo de apoiá-la em tudo que for necessário, inclusive, na busca por uma solução para transferência da estudante. A jovem será priorizada em todas as situações. Uma das possibilidades é que a troca de unidade seja efetivada no recesso escolar, que se inicia no próximo dia 11 de julho, de forma que a continuidade do ensino não seja prejudicada.
Mais um uma vez, a secretaria reforça que é contra qualquer tipo de abuso dentro ou fora dos espaços escolares. Imediatamente após o ocorrido, a direção da unidade atuou com os alunos envolvidos diretamente no caso, e também com os demais estudantes da turma. O caso foi registrado na polícia, representantes da unidade escolar já foram à unidade policial e estão colaborando no que for necessário para investigação e elucidação do caso. A Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Mulher também irá apoiar no acolhimento da jovem. A Secretaria de Educação reforça que, para preservar a estudante, não pode informar o nome da aluna, unidade de ensino ou região onde ela estuda, nem mesmo mais detalhes sobre o caso, que possam levar a uma possível identificação dos menores."