Saúde mental impactada e pressão para ser feliz: saiba os efeitos da positividade tóxica
Pexels/Tara Winstead
Saúde mental impactada e pressão para ser feliz: saiba os efeitos da positividade tóxica




A relações públicas Brenda Torssami, 20, perdeu o pai para a Covid-19 e, duas semanas depois, o irmão, vítima de leucemia. Experimentando um luto duplo, ela também se dedicava ao seu trabalho de conclusão de curso, estagiava e precisava lidar com outras questões pessoais dolorosas.

“Eu só queria sumir e ficar off-line. Além da pandemia se alastrando, as publicações de pessoas saindo e curtindo a vida como se nada tivesse acontecido só aumentavam”, conta. Por trabalhar com comunicação, ela não podia deixar as redes sociais, o que fez com que o momento de turbulência que passava se tornasse ainda mais difícil.

Por outro lado, algumas pessoas que conhecem Brenda não conseguiram consolá-la da melhor forma. “Ouvi muito das pessoas o tempo todo: ‘Coloca uma música, sai por aí para esfriar a cabeça. Vai dar tudo certo’. Era um verdadeiro inferno”.

As postagens de influenciadores digitais e mentores que incentivam pessoas a serem sempre positivas também colocaram o dedo na ferida. Todos esses perfis foram bloqueados por Brenda. “Sentia que todo mundo estava num mundo paralelo e eu no mundo real. Não sabia como tirar essa sensação horrorosa de mim e, de certa forma, não tinha como. Afinal, é o que estamos vivendo”, afirma.

A situação descrita por Brenda pode ser compreendida por meio do conceito de positividade tóxica. O termo é usado para falar sobre  essa pressão pela positividade e das vidas perfeitas (até demais) que são mostradas e que queremos mostrar nas redes.

“Apesar de não ter sido validada cientificamente, a expressão tem sido usada para abordar uma pressão para se adotar um discurso positivo ininterrupto, aliado a uma vida editada para as redes sociais”, explica a psicóloga e pesquisadora Carla Furtado, fundadora do Instituto Feliciência.

A maneira como a positividade tóxica é expressada pode causar uma falsa ideia de otimismo, capaz de fazer com que as pessoas sintam a necessidade de reprimir seus sentimentos negativos. Assim, os padrões sociais ganham mais uma roupagem: para ser aceito, é necessário ter uma vida sem dificuldades e sem tristeza em qualquer circunstância.


O problema em si não é a felicidade do outro, mas a maneira como essas sensações são manipuladas, editadas e ensaiadas ao ponto em que deixam de ser uma felicidade genuína.

“Positividade genuína não implica rejeitar emoções difíceis nem fugir de sentimentos ruins. É viver os momentos bons e entender que os momentos ruins fazem parte da vida. Viver e sentir diferentes tipos de emoções ajuda resolver questões, enxergar sob diferentes pontos de vista e ser mais empático com os outros”, diz a psiquiatra Renata Nayara Figueiredo, presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (APBr).

O especialista em desenvolvimento humano Rafael Cobra salienta que a possibilidade de edições e recortes das redes sociais não apenas cria uma incessante busca pela felicidade extrema, mas também desgastam a própria ideia de positividade em si — até mesmo para pessoas que pregam a positividade tóxica.

“Vivemos uma realidade em que um vê a vida do outro o tempo todo e as vidas ficam cada vez mais vazias e ocas. Os aplicativos e filtros de correção de corpo e voz configuram uma falsa felicidade. As pessoas criam personagens e histórias como se elas soubessem o que os outros esperam dela. Essas atitudes busca incessante pela aprovação alheia... Tudo isso está deformando as pessoas, que não sabem mais quem elas são”, afirma.

Furtado explica que o uso da positividade tóxica também é de interesse comerciais, principalmente de influenciadores ou produtores de conteúdo que criam “receitas mágicas” para “curar” infelicidades ou imperfeições.

“Algumas pessoas se esquecem disso e acabam consumindo o que veem como vida real. Comparar imagens produzidas, editadas e filtradas com aquilo que vemos no espelho de casa pode funcionar como um gatilho para consumo desnecessário e, em situações extremas, sofrimento psíquico”, diz a psicóloga.

“Vai dar tudo certo, mas só se você quiser”

A coordenadora distrital de logística Isabella Balbastro, 25, sentiu o impacto da positividade tóxica, principalmente, no próprio ambiente de trabalho. “Trabalho em um lugar onde toda energia negativa não é bem vista, mas o entusiasmo é ótimo, ninguém tem problemas e todos estão em um mundo perfeito”.

Todos os momentos em que tentou desabafar, seus sentimentos foram vistos como negativos e Isabela foi repreendida. Isso fez com que ela começasse a esconder seus sentimentos. Ao tentar levar a questão para o chefe, ela afirma ter sido orientada a “encontrar uma solução”, “tirar uma boa lição da situação” e “focar no lado bom do problema”.

A empresa em que ela trabalha possui um emocionômetro, um tipo de termômetro em que ela precisa informar seus sentimentos ao fim do dia, em uma escala entre péssimo e ótimo. “Algumas vezes fui sincera e preenchi minha verdadeira emoção. Dez minutos depois, eu recebia uma ligação do responsável com alguma frase de impacto barata para me motivar. Em momento algum alguém demonstrou real interesse em como eu realmente estava”, lamenta.

Isso impactou a maneira como ela encara as redes sociais. "Simplesmente não posto nada que possa gerar um comentário motivacional. Acabo só postando as coisas boas, o que me torna uma pessoa que também só faz posts felizes e proporciona felicidade falsa. É um ciclo vicioso”.

Esse tipo de culpa por expressar sentimentos ruins e a pressão para mostrar a felicidade também atingiu a estudante de ciências sociais Beatriz de Alcantara, 19. “Começou a me afetar quando senti que meus sentimentos negativos eram anormais, que era estressada, triste ou sensível demais, porque ninguém nas minhas redes sociais demonstravam isso”, diz.

Além da pandemia, a necessidade de estudar para o vestibular e o desânimo estavam sempre presentes. Em muitos momentos, a proatividade intensa postada pelas pessoas que ela seguia fizeram com que ela se sentisse improdutiva e procrastinadora. Quando as conquistas começaram a chegar, ela percebeu que precisava postá-las como uma forma de validação para si mesma e para os outros.

Começou com seu relacionamento. “Não posto muito sobre porque não é do meu feitio, mas me senti muito obrigada a postar porque tive medo de pensarem que eu não tenho um bom relacionamento”. Depois, quando ela passou no vestibular. “Me senti obrigada a postar para que não pensassem que não passei na faculdade. No fundo, acho isso muito bobo”.

Beatriz diz que comentou com uma amiga que, por não postar em seus stories do Instagram o que estava fazendo, a sensação que ela sentia era de que as pessoas pensavam que ela não fazia nada. “Realmente parece isso mesmo”, respondeu a amiga. “Fiquei chateada. Dali para frente, me senti obrigada a postar tudo que estou fazendo para que saibam que eu faço alguma coisa”.

Você viu?

O “lado bom” da positividade tóxica

Furtado explica que as consequências causadas na vida de Isabella e Beatriz são justamente o efeito causado pela positividade tóxica, que está longe de ser uma resposta emocional saudável. “Do ponto de vista neurofisiológico, as emoções não podem ser controladas porque são respostas autônomas a estímulos. Elas têm como objetivo preservar a vida”, explica.

“É importante que saibamos reconhecê-las, identificar os estímulos e gerenciar nossos comportamentos para que não causem mal a nós mesmos e aos outros. A tentativa de ‘positivar’ a vida de maneira irrestrita conduz inevitavelmente à frustração. Há estudos científicos que indicam, inclusive, que a obsessão pela felicidade pode causar um efeito rebote e gerar infelicidade”, acrescenta a psicóloga.

Figueiredo afirma que inibir os sentimentos pode ser muito prejudicial à saúde mental, aumentando a possibilidade de se desenvolver transtornos como depressão e ansiedade. "No Instagram, as pessoas conseguem praticar atividade física, ser o pai ou a mãe perfeita, ser bem-sucedido e ter hora para tudo. Então, as pessoas acham que são obrigadas a fazer isso o tempo inteiro e acabam frustradas porque não conseguem ou se sentem cansadas".

A pressão pela felicidade também pode ser estética ao pregar a positividade de hábitos saudáveis, como alimentação e exercícios físicos, levando a transtornos de imagem, anorexia e bulimia, por exemplo. Foi o que aconteceu com Laura, 23, jornalista, que não quer ser identificada pelo nome verdadeiro.

Ela possui histórico de transtornos alimentares e foi pressionada por uma amiga que, ela explica, se tornou uma “fitgirl”. “Tenho ansiedade e já tive começo de bulimia na adolescência. A comida é realmente uma questão difícil para mim pois tenho compulsão alimentar. Estou sempre tentando emagrecer e engordei muito na pandemia”.

A amiga em questão passou a agir como uma influenciadora de alimentação saudável. Quando aborda sua compulsão alimentar ou a vontade de emagrecer, ela recebe respostas genéricas. “Mas é só focar na alimentação”. “É só substituir a comida”. “É só você ter foco, só assim vai emagrecer”. Essas foram algumas frases que Laura ouviu. “Eu não tenho esses problemas porque quero”, rebate.

Laura explica que os posts da amiga dão a impressão de que ela tem a vida perfeita e que pode se dedicar totalmente ao seu corpo e à alimentação, afirmando que se alguém quer ser como ela, basta querer. “Sinto que ela não considera o lado financeiro da coisa, pois ela nunca teve que ajudar em casa, pagar uma conta… É claro que ela pode gastar com essas coisas, mas não deveria agir como se todo mundo pudesse”, diz a jornalista.

"O mundo não é bom, mas eu não ligo"

Ódio. Esse é o sentimento da empreendedora Gabriela de Sanctis, 26, em relação a pessoas que “pregam positividade acima de tudo”. O que mais a deixa irritada é pensar em como as pessoas ainda tentam pensar pelo lado com em um contexto social, político e sanitário que não está indo bem.

“Vejo esse povo falando sobre positividade e gratidão enquanto o país está indo para o buraco. Tá cada dia mais difícil comprar comida, não há dinheiro para lazer e cultura e não se tem perspectiva nenhuma sobre nada Para mim, o pessoal good vibes é o ápice da falta de consciência de classe”, desabafa.


Ela continua e diz que, em sua opinião, pessoas que postam muitos conteúdos positivos ou estão igualmente deprimidas e não querem expressar, ou vivem em uma bolha e possuem recursos para se manter bem. “Para se atingir esse nível de positividade é preciso ter pelo menos o básico. Muita gente não tem isso. Tenho vontade de morrer quando vejo posts sobre agradecer e ‘confiar’. É falta de responsabilidade”, critica.

Figueiredo explica que, diante de um contexto global crítico ou de não saber como lidar com as emoções, é comum que algumas pessoas usem a positividade tóxica como um mecanismo de defesa. “Mostrar somente os momentos bons e ‘varrer a sujeira para debaixo do tapete’ é uma forma de fugir do que, no momento, não nos faz sentir bem”, diz a psiquiatra.

“Positividade tóxica pode ser sobre o outro e sobre nós mesmos. Nós camuflamos sentimentos ruins. É uma válvula de escape, um campo de força, uma barreira que se tenta criar para ser aceito da maneira que as pessoas acham que você deve ser”, acrescenta Cobra.

“Sabemos que você não é tão feliz assim”

Quando pensa em positividade tóxica, Beatriz se lembra de uma história curiosa e engraçada. “Tenho uma tia que tinha um cabelo grande. Ela cortou bem curto e, nas redes sociais, ela dizia que estava muito feliz, que foi a melhor decisão que ela tomou porque se sentia mais livre. Um dia viajei para a casa dela e, quando fui ao banheiro, vi vários produtos para acelerar o crescimento do cabelo”, conta.

Ela também teve a sensação de “quebrar a cara” ao admirar casais à distância que pareciam se amar nas redes sociais, mas que, na vida real, passavam por idas e vindas e traições; e quando via pessoas fazendo yoga nos stories mas, na vida real, passavam horas criticando a vida alheia.

A publicitária Erika Ribeiro, 26, afirma que sentiu a discrepância entre os posts de seus amigos e quem eles eram na vida real. “Vi uma forçação de barra. Dava para perceber que alguns posicionamentos pareciam carentes, não expressavam nada de grande independência ou autonomia. Se olhasse dentro dos olhos delas, percebia que não era real”, reflete.

Ela se lembra de uma conversa que teve com sua terapeuta, que seguia o perfil de uma influenciadora super positiva que, depois de um tempo, afirmou que a positividade excessiva causou nela um burnout. “Essas pessoas estão vivendo uma grande mentira e forçam tanto para serem felizes que isso pode gerar seríssimos problemas psicológicos, psiquiátricos e até espirituais”, diz.

Érika também critica a maneira como os conteúdos são montados para passar essa ideia de perfeição no Instagram. No entanto, a mesma pessoa desabafava sobre como a vida não estava boa em outra rede social: o Twitter. “Se edita uma coisa para parecer perfeito mas está todo mundo vendo que não é aquilo”.

A publicitária começou a perceber que estava se sentindo afetada por essas postagens e se irritou com pessoas ao seu redor. “Me senti pressionada para ser mais positiva e bonita. O problema é que quando uma pessoa se autodenomina influenciadora, ela realmente influencia até nos sentimentos dos outros. Isso me fez ir atrás de coisas inalcançáveis porque ninguém está positivo o tempo todo. Ninguém é bonito o tempo todo”, afirma.

A saída que Érika e Beatriz encontraram para diminuir a pressão foi parar de seguir influenciadores digitais que faziam com que elas se sentissem mal. No caso de pessoas conhecidas, elas silenciaram os perfis e, agora, não visualizam seus posts.

Para identificar sinais de que as emoções estão sendo influenciadas pela positividade tóxica, Furtado afirma que é preciso observar os sentimentos que se sente no momento de rolar o feed.

“Imagine uma reta na qual em um dos extremos há emoções de valência muito negativa, no outro extremo emoções de valência muito positiva e no centro emoções neutras. Em que ponta dessa reta você se percebe enquanto navega nessas redes? Vale a pena permanecer? Há perfis que deflagram mais emoções de valência negativa e que posso me apropriar da liberdade de dar unfollow?”, questiona a psicóloga.

Apesar de incômodas, as sensações consideradas negativas são extremamente importantes para conectar as pessoas às suas humanidades. “É preciso criar uma relação mais íntima com a dor e com o sofrimento”, diz Cobra. Figueiredo afirma que, para isso, é importante ter equilíbrio, praticar a escuta empática e validar os sentimentos alheios.

“Preocupação, ansiedade e chateação com situações do cotidiano fazem parte do funcionamento cerebral humano e são estratégias para nos manter vivos, evitando os potenciais riscos. Somente quando exagerada elas podem gerar estresse que, a longo prazo, também fazem mal. Quando não estiver bem, deve-se tentar entender o motivo, validar os próprios sentimentos, ponderar e modificar o que for preciso”, finaliza a psiquiatra.

    Mais Recentes

      Comentários

      Clique aqui e deixe seu comentário!