Albertina Duarte, primeira médica a criar programas de saúde feminina, fala sem rodeios sobre sua carreira e a mulher moderna
Albertina Duarte, 66 anos, é “a” ginecologista das adolescentes, das prostitutas, das sem-terra, das mães de família, das idosas, das indígenas, das lésbicas e das feministas.
Para estes mais diferentes pedaços que compõem o mosaico da palavra mulher, ela já desenvolveu algum programa de saúde específico. Desde que recebeu o diploma de medicina em 1975, estuda o ser feminino. Com esta experiência na bagagem, Albertina coloca em prática projetos preventivos contra a gravidez precoce, a violência de gênero e também outros sintomas da mulher moderna, como obesidade, infarto e hipertensão .
A linha e a agulha que costuram esta população miscigenada de mulheres que já passaram pelas mãos de Albertina é a culpa, diz ela sem titubear. “A culpa ainda não deu carta de alforria à mulher”, brinca. “Lutamos e conseguimos inúmeros feitos. Mas ainda saboreamos as nossas vitórias com um gosto de culpa na boca. Isso é denominador comum, seja da sem terra, da prostituta ou da mulher que tem três filhos”, pensa.
Para falar de mulher, Albertina recorre à própria história. Foi parte do movimento estudantil que brigou contra a ditadura. Foi a primeira a dar um toque cor-de-rosa à diretoria cinza e masculina do Hospital das Clínicas de São Paulo. Foi eleita pelo Prêmio Nobel uma das 1000 mulheres de paz pelo mundo. Mas só se redescobriu “mulher” agora que virou avó. “Perdi 23 quilos para poder brincar com meus netos”
Delas: Você se lembra a primeira vez que ser médica veio a sua cabeça?
Albertina:
Claramente. Nasci em Portugal, fui a primeira menina da família, adorava as bonecas de pano. Mas a minha brincadeira predileta era fazer curativo. Depois, quando vim morar no Brasil com uns 10 anos, vivi uma experiência traumática mas definidora da minha escolha profissional. Meu irmão caçula levou um coice de cavalo na barriga e morreu dias depois de hospitalizado. Em seu leito, eu dizia para ele que me tornaria médica para cuidar de outras crianças e não deixaria nenhuma morrer. Nunca mais pensei em ser outra coisa na vida.
Delas: E a paixão pela causa feminina? Como surgiu?
Albertina:
Ficava inconformada com as limitações impostas ao gênero feminino. Eu mesma quando disse que seria médica recebi a reprovação dos meus pais, que não achavam a universidade um lugar adequado para mulheres. Na minha classe, na PUC de SP, éramos em 11 garotas, o restante todo masculino. E ninguém pensava em política pública para o feminino. Este era um ponto. O outro foi o primeiro parto que fiz, no 3º ano. Aquele recém-nascido me olhou nos olhos e eu tive a certeza. Ginecologia era o meu destino.
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Delas: Quais eram os assuntos que ficavam de fora da medicina e que não podiam mais ser negligenciados?
Albertina:
Quase todos. Ninguém falava de prazer sexual da mulher. Dor de parto, dores em geral, eram quase um sinônimo de ser mulher. A chegada da pílula e depois da pílula do dia seguinte foram um pouco libertadoras, mas tinham lacunas de silêncio sobre temas importantes. Aos poucos, fomos tomando espaços, mas toda vez que uma paciente chega em meu consultório percebo que ela passou anos sem nunca conversar sobre prazer, por exemplo. Hoje, não dá para negar avanços. Temos hospitais só para mulheres, programas femininos, cargos de chefia, salários melhores. É fato que a mulher de hoje é diferente da mulher do passado. Ainda bem.
Delas: Mas a mulher de hoje ainda não negocia a camisinha com parceiro por medo de rejeição masculina...
Albertina:
Sim, a mulher de hoje ainda é refém da culpa. E a mulher de hoje ainda é muito dependente de ser amada por alguém. É curioso porque não dependemos mais financeiramente dos maridos, mas ainda ficamos dilaceradas quando pensamos na ideia de ser abandonadas por eles ou de nunca encontrar um amor. E aí cometemos muitos erros, até com a nossa saúde. Um deles é ter vergonha de exigir camisinha. Outro erro grave é que persiste um muro entre a mulher da vida pública e a mulher de vida privada. Ele precisa ser derrubado, porque somos únicas.
Não dá para falar em dupla jornada de trabalho. A jornada é única, isso precisa ser dito. Se continuarmos pensado assim, a mulher que avança na carreira vai sofrer porque deixou os filhos em casa. E a mulher que foi promovida mas não aceitou o novo desafio, vai sofrer profissionalmente porque quis passar mais tempo em casa.
Percebi que a culpa existia em todas as mulheres com quem trabalhei. Sem-terra, prostitutas, mães, travestis, profissionais liberais, todas culpadas... elas adoecem por isso.
Delas: As adolescentes, que são o seu atual foco (Albertina é coordenadora do Programa de São Paulo de Saúde do Adolescente) mostram que o futuro da mulher será menos culpado?
Albertina: Tenho esperança, mas muita coisa precisa ser feita. Primeiro porque o gênero feminino, desde o seu nascimento, assimila a ofensa do outro de forma muito ruim. Nos sentimos péssimas quando o menino, o homem ou o marido nos fala que nosso peito é caído, que temos uma gordurinha a mais ou que nosso cabelo é ruim, mas somos incapazes de dizer que ele está barrigudo ou que seu pênis é pequeno. Não acho o ataque seja a melhor forma de defesa, mas já está na hora de não levar em consideração estes comentários nocivos e fazer com que eles moldem a forma como nos olhamos no espelho.
O outro ponto é que precisamos parar com esta cópia de comportamentos do homem. As meninas estão fumando como os meninos, usando drogas e bebidas como eles e até escalando nos dados de autoras da violência (e de infarto, hipertensão). Ao mesmo tempo, ainda morrem de câncer de mama e de câncer de cólo de útero por simplesmente não passarem por exames e fazer a prevenção primária destes problemas seculares. Para mim, isto está enraizado na forma como encaramos nosso corpo. Temos de preparar as garotas para serem senhoras de seu corpo. Isso ainda é um desafio que não conquistamos.