Maternidade durante a graduação é um verdadeiro desafio, apontam mães
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Maternidade durante a graduação é um verdadeiro desafio, apontam mães


“Falta de tempo, descriminação, pouquíssimo apoio.” É assim que Ana*, estudante de psicologia de Bauru (SP), define a sua experiência com a maternidade. E não, a dificuldade não vem das noites sem sono, do emprego cansativo ou da falta de ajuda da família: a verdadeira fonte de estresse e culpa na vida da jovem é sua faculdade.

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Matriculada em um curso integral, Ana* descobriu a gestação durante o isolamento social, quando conseguiu, em meio ao caos pandêmico, gerar seu filho Theo*. Mas, com o retorno das atividades presenciais, os problemas começaram. “As faculdades não sabem, de jeito nenhum, lidar com mulheres que têm filhos. Principalmente pequenos. Elas nos ignoram.” 

Assim como Ana, milhares de outras mulheres brasileiras tentam, a todo custo, balancear a maternidade real e as custosas demandas de uma graduação. 

Mães e faculdade: um direito

A presença feminina em instituições de ensino superior data o ano de 1879, quando, ainda imperador, Dom Pedro II legalizou a matrícula de mulheres nas universidades, que só poderia ser feita por pais ou maridos. No entanto, até metade do século XX, elas ainda eram menos da metade do total de estudantes.

Foi só na virada do século XXI que o gênero passou a compor a maior parte das cadeiras ocupadas na universidade. Dados mais recentes do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) contabilizam que mulheres representam 61% dos estudantes de ensino superior no Brasil.

E segundo dados da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) publicados em 2018, cerca de 48,1% dessas estudantes são mães.

Assim, a sobrecarga se acumula em uma quádrupla jornada para as estudantes: à elas, cabem os cuidados com a casa, filhos, trabalho e, claro, o estudo.

Mesmo agora, como maioria no ensino superior, elas não enxergam essa dominância refletida em políticas públicas de permanência. “As universidades foram desenvolvidas para homens e feita para homens, apenas para eles. E a permanência não reflete isso”, aponta Ana*.

Relatos

A auxiliar de escritório Sarah*, que optou pelo anonimato, é mãe de 2 meninas, Clara* e Fernanda*.

Quando as gêmeas completaram dois anos de idade, Sarah decidiu trocar de carreira e ingressou em uma universidade pública no curso de Engenharia Civil. A experiência, no entanto, não foi nada boa.

Desde que entrou na faculdade, Sarah relata que não sentia que pertencia ao lugar que tanto sonhou. Desempregada, ela procurava por vagas de emprego enquanto enxergava, em suas colegas, um abismo de oportunidades.

“Enquanto eu buscava emprego e via que não me aceitariam porque eu era mãe e iria precisar de mais tempo com minhas filhas, via nos estudantes uma vida um pouco menos difícil. Doeu, mesmo que eles não tenham culpa.”

Quando buscou um auxílio da universidade ou vagas na creche da universidade, ela relata que sofreu preconceito de seus colegas. “Um aluno chegou a afirmar que lá não era lugar de mulheres como eu, que não sabiam dividir a vida e escolher entre ser mãe ou estudante.”

A faculdade em questão também não contava com um fraldário ou um ambiente direcionado à crianças em geral, o que limitou a presença das filhas de Sarah no local. 

Sem uma rede de apoio, restou à estudante a única opção possível no momento: o trancamento do curso. “Perdi muitos sonhos, mas sei que é a realidade de muitas mães ao redor desse país. Mas que foi triste, foi. Neguei uma parte de mim para sempre.”

E a gravidez na faculdade?

A gravidez é um período recheado de dúvidas, medos e incertezas. Mas como é estar grávida no meio de uma graduação, com responsabilidades duplicadas? A estudante de direito Rafaela Vitório descobriu, no dia 19 de setembro de 2022, a resposta para essa pergunta.

“Assim que eu olhei o teste de gravidez e vi o resultado positivo, eu chorei muito, mas era um choro diferente. Eu não conseguia pensar em outra coisa a não ser na minha faculdade. Só conseguia pensar: "Meu Deus, o que eu vou fazer? Como vou conciliar gravidez e filho com a minha faculdade e o meu trabalho?”.”

A jovem também relata ter sofrido muito com a culpa. “Depois veio uma culpa muito grande, já me sentindo como mãe, por ter pensado primeiro na minha faculdade e não no meu filho”, diz.

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Arquivo pessoal

Para Rafaela, família e amigos foram essenciais durante toda a gestação

Desistir, no entanto, não era uma opção para Rafaela. Segundo a jovem, a gravidez representou uma força muito maior para a sua permanência na graduação. Entre as dificuldades trazidas pela gestação, ela nomeia a sonolência, o cansaço e as demandas do trabalho, que exigiam uma tripla jornada de estudante, futura mãe e estagiária.

“Eu ficava mais cansada do que o normal, e muitas aulas eu acabava dormindo, aí eu tinha que acabar pegando a matéria com outras pessoas depois para conseguir estudar. E, assim, passava o final de semana todo estudando, porque durante a semana não conseguia estudar direito por conta da minha rotina que estava bem pesada e que os sintomas da gravidez estavam dificultando ainda mais.”

O preconceito, por mais que não seja direto, é visível, aponta a jovem. Entre ‘olhares tortos’, Rafaela conta que “muitas pessoas ficam olhando a barriga, principalmente quando está grande, com um olhar de pena, de ‘nossa, coitada, engravidou na faculdade, não vai chegar até o final.’”

A jovem afirma que a parte dolorosa dessa experiência é receber tais olhares de outras mulheres. “Você espera que você tenha um apoio muito maior de outras mulheres, por justamente por ser uma mulher, que sabe o que você tá passando, e na verdade é o contrário. Eu já fiquei irritada, mas agora não me importo mais.”

Em relação à instituição de ensino, ela não recebeu nenhum suporte como gestante além do direito de seu futuro afastamento. Mas, quando se trata de família, a situação é muito positiva. “[A família e os amigos] foram essenciais.”

“Sempre que eu precisei faltar, sempre que eu precisava dormir nas aulas por conta dos hormônios, eles me ajudavam, passavam toda a matéria, me deixavam por dentro de tudo. Quando eu faltava, eles me incluíam nos trabalhos. Eles me deram todo esse suporte. Não tenho do que reclamar, eles foram incríveis.”

Outras mulheres, como Rafaela, conseguem dividir essa experiência de forma positiva. É o caso de Demilly Castro, que, aos 27 anos, considerava engravidar novamente enquanto cursava a faculdade de Farmácia. “Eu e meu esposo conversamos muito sobre ter filhos, porém eu estava iniciando a faculdade no primeiro período e ficamos com receio que pudesse atrapalhar.”

Em agosto de 2017, ela suspeitou estar grávida, mas ignorou os sintomas. “Fiquei calada e achando que era tudo psicológico. As aulas retornaram, quando em uma noite, uma amiga virou pra mim e perguntou se eu não estava grávida. Aquilo ficou na minha cabeça, quando deu o horário de ir pra casa, passei na farmácia e comprei um teste rápido. Assim que cheguei, fui ao banheiro realizar o teste e o resultado foi positivo.”

Os enjoos começaram a aparecer, as náuseas eram recorrentes e a dor de cabeça, constante. Mas, mesmo assim, a estudante não desistiu do curso. Na sala de Demilly, duas outras colegas também estavam grávidas, fato que a ajudou bastante no momento. 

A universidade foi solícita com os pedidos da jovem. “ Conversei com professores e minha coordenadora maravilhosa para adiantar alguns trabalhos para que eu fosse fazer antes do parto, e assim foi feito.”

Ela também relata que, na dificuldade de subir as escadas, também pediu ajuda para a sala, que foi movida para o primeiro andar. A gestação seguiu sem quaisquer problemas.

Quando a filha de Demilly nasceu, ela retornou à faculdade. “Levei minha filha para aula alguns dias. Graças a Deus, isso não me atrapalhava em absolutamente nada. Ela dormia bem, acordava, mamava e dormia novamente, e muitos amigos da faculdade me ajudaram nesses momentos. E hoje deu tudo certo. Sou formada em Farmácia Bioquímica e minha filha já tem quase cinco anos.” 

O que a lei diz?

Em entrevista ao iG Delas, a advogada e sócia do escritório Bosquê Advocacia, Melissa Fabosi, detalha que existem leis que protegem as mães discentes no Brasil.

Segundo a jurista, a Lei n. 6.202/1975 é a legislação que ampara a estudante gestante e assegura o direito ao regime de exercícios domiciliares. A lei garante que, quando grávida, a mulher pode fazer atividades em casa a partir do oitavo mês de gestação e pelo período de três meses.

O afastamento deve ser determinado por um atestado médico a ser apresentado à instituição de ensino.

“Não é lícito às instituições de ensino condicionar o exercício desse direito ao cumprimento de qualquer obrigação que não encontre previsão legal, a despeito de gozarem de autonomia. O regime especial autoriza a substituição da frequência às aulas por exercícios domiciliares, mas não isenta a aluna de realizar as provas de verificação de aproveitamento”, conta a advogada.

Para o advogado Ítalo Negreiros, isso permite que a gestante possa dar continuidade à sua vida acadêmica ainda que de casa, sem prejuízos, como a aplicação de faltas, por exemplo.

“Vale lembrar que essa lei foi instituída ainda na ditadura militar, mas hoje, em razão do avanço da tecnologia, há muito mais facilidade para gestantes acompanharem remotamente as aulas. Em 2018, inclusive, esse prazo foi ampliado para seis meses, a depender de um laudo médico que justifique a necessidade.”, resume o advogado.

Quando se trata da proteção legal para as estudantes gestantes e mães, Daniele Duarte, advogada do departamento trabalhista da Andersen Ballão Advocacia, define o tema como ‘tímido’.

A especialista recomenda que a estudante gestante ou mãe verifique junto à sua instituição quais são os benefícios e garantias específicos a que ela tem direito, pois muitas instituições possibilitam a alteração do horário das aulas, disponibilizam espaço adequado e privativo para amamentação ou garantem atendimento preferencial nos serviços da instituição de ensino, como biblioteca, laboratórios e transporte.

Daniele reflete que existe um longo caminho a ser percorrido a fim de garantir a valorização das mães estudantes, já que a promoção de uma cultura mais inclusiva traz impacto direto às mães e à família. 

“Vale lembrar que a educação é um dos componentes do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e reflete o acesso à educação e a qualidade do sistema educacional em um determinado país ou região, sendo que países com um IDH mais alto tendem a ter melhores indicadores de escolaridade, como maior taxa de alfabetização e maior número médio de anos de escolaridade”, finaliza a legista.

Um projeto de mudança

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Grupo publicou, em 2020, o livro 'Maternidades plurais: os diferentes relatos, aventuras e oceanos das mães cientistas na pandemia'

A maternidade é uma experiência diversa e plural, que pode variar de mãe para mãe. Mas o que não muda é que, de fato, as universidades não estão prontas para lidar com isso.

Na tentativa de reverter essa maré, alguns projetos buscam conscientizar a população acadêmica dessa realidade. É o caso do GT Mulheres Cientistas e Maternidades Plurais, da Universidade Federal de Goiás (UFG).

O grupo se define como um projeto de “desenvolvimento de ações na luta pela visibilidade das Maternidades Plurais no ambiente acadêmico para agregar à luta pela qualificação acadêmica das mulheres mães no Brasil.”

A coordenadora do GT é a doutora em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Ana Carolina Coelho. Como gestora, ela afirma que o objetivo do grupo é compreender os aspectos das maternidades plurais e das mulheres cientistas dentro do universo acadêmico e extra acadêmico.

“A única lei existente é a da licença maternidade, que só contempla a criança do nascimento ou da adoção e os direitos da mãe durante esse período. Após a licença, a criança continua existindo, e as mães enfrentam dificuldades de adaptação do espaço físico e falta de regulamentação.”

A constatação de Ana Carolina é facilmente verificável: a maioria dos cursos de graduação têm duração de 3, 4 ou 5 anos, e em alguns casos, há residência e laboratórios que não são preparados para crianças e mães. Segundo Ana, a falta de regulamentação específica torna difícil a adaptação das mães e seus filhos às situações específicas: “a decisão de adaptar o espaço fica a critério de cada professora, professor, coordenadora ou coordenador.”

Ela relata que discentes de todo o Brasil têm se organizado em coletivos maternos para reivindicar o básico: fraldário, creches, espaço kids nos eventos, fomento de bolsas, editais específicos para maternidade e outras questões específicas.

“Mães precisam de trabalhos adaptados à sua realidade, como adaptações para a criança que adoeceu, direito à segunda chamada e atendimento especial à mãe e à criança. Até 12 anos, a criança precisa de atenção especial da mãe, uma vez que é necessário estar com ela o tempo todo. Se a mãe tiver uma criança com alguma atipia, a situação se torna ainda mais difícil, pois as necessidades requerem atenção constante.”

Ana Carolina afirma que acesso, condições de permanência, condições dignas de permanência e conclusão dos cursos são fundamentais para que essas mulheres possam cursar especializações, mestrados, doutorados e continuar suas pesquisas: “é importante que tenham condições de igualdade e não sejam discriminadas.”

Quando se trata de discriminação, ela não tem dúvidas: “com certeza existe discriminação contra mães que frequentam a Universidade de todos os níveis, principalmente as discentes que são a linha de ponta e que ficam com o ônus, eu diria que mais fraco, e que sofrem questões muito assediosas, como tem sido denunciado no Instagram e nas redes sociais.”

As consequências da falta de inclusão da maternidade no meio acadêmico são muitas: desde uma universidade que continua dentro da lógica heterocentrada masculina, machista e patriarcal, até o trancamento de discentes gestantes.

“Já aconteceu de uma pessoa estar apresentando seu trabalho e pedirem para a mãe tirar a criança da sala de aula, porque o barulho estava incomodando. E aí, com quem a mãe deixa a criança? Fica no corredor, jogada?.”

A busca do projeto, aponta a historiadora, é por equidade. Ela aponta que é importante entender que essas diferenças não existem por acaso, e sim são um resultado de um sistema estrutural e histórico que favorece a participação masculina e exclui as mulheres.

Mas como isso pode ser feito? Para Ana Carolina, é preciso implementar políticas efetivas que garantam a presença de mulheres, facilitem o acesso à formação e à pesquisa, além de garantir condições adequadas de conciliação entre vida profissional e familiar.

Entre as sugestões do DT para uma universidade mais igual, estão a ampliação de vagas em creches, o funcionamento em três turnos e a disponibilidade de fraldários acessíveis, a criação de banheiros familiares e espaços kids em todos os eventos acadêmicos, bem como o livre acesso de crianças acompanhadas por seus cuidadores em espaços como o Restaurante Universitário e Biblioteca.

Outras sugestões incluem a criação de uma sala específica para um Coletivo de Mães em cada universidade, a organização de um Encontro Nacional de coletivos de mães universitárias e a ampliação do auxílio creche em todas as universidades. 

“Por isso, é fundamental que se promova a equidade de gênero no ambiente acadêmico, garantindo que todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades de desenvolver suas carreiras e contribuir para o avanço da ciência”, finaliza.

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