Amor, carinho e atenção são alguns pilares essenciais para educar uma criança, e isso não é novidade para ninguém. Mas será que todas devem ser educadas da mesma forma? Nem sempre. Em uma sociedade onde o racismo é estrutural, a educação de crianças negras exige atenção e cuidado especial.
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" Crianças negras que não aprendem desde cedo a reconhecer e valorizar a negritude crescem sem olhar para uma parte importante da sua identidade e acabam tendo uma visão distorcida de si", comenta Luciana Bento, criadora do site ‘A mãe preta’, onde fala sobre maternância, literatura e os impactos do racismo na infância.
Mãe de Aisha e Naíma, de quatro e três anos de idade, Luciana explica que o recorte racial na educação é essencial para que crianças como suas filhas se percebam no mundo, principalmente em uma sociedade em que o branco é tido como padrão. A dedicação que reserva para que as filhas valorizem a negritude desde pequenas tem a ver com prepará-las para resistir aos impactos do racismo desde cedo.
Assim como Luciana, a produtora e empresária Egnalda Côrtes também cria os dois filhos, Maria Morena, 8 anos, e Pedro Henrique, 15 anos, valorizando a negritude. “PH começou a me questionar por que seu cabelo não tinha o mesmo balanço que o meu, pois ele é menos crespo”, conta. Foi a partir desse episódio que a mãe percebeu a importância de pensar o tema na educação dos filhos e começou a buscar alternativas.
Para essas duas mulheres, além do processo de reconhecimento e identificação, o recorte racial dentro de casa é importante para fortalecer a autoestima das crianças e prepará-las para lidar diante de uma situação de racismo sem que sofram tanto.
“Criar uma criança negra sem que ela desenvolva um reconhecimento da sua negritude pode ser danoso para a autoestima porque o racismo estrutural da nossa sociedade sempre a perceberá como negra. E, nesse contexto, ela cresce sem saber ao certo os motivos da discriminação que sofre e sem estrutura para combater e resistir ao racismo”, diz Luciana.
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Racismo
Fingir que o racismo não existe ou disfarçar manifestações de preconceito é pior para os pequenos, segundo Luciana, já que não impede o sofrimento e só mascara a verdadeira causa. Para Cíntia Alexo, psicóloga e coach de mães, é importante que os pais façam com que os filhos percebam que situações de racismo acontecerão, mas que a partir disso poderão criar uma resistência interna e de luta.
"Devemos ter um olhar particular para essa criança”, aconselha Cíntia. Ela orienta que os pais percebam o modo como aconteceu essa experiência, no sentindo de identificar como ela recebe o racismo e quais são os sintomas do problema.
Além disso, se o episódio aconteceu na escola, é importante levar a situação até a instituição para que o tema seja trabalhado com as crianças. Cíntia afirma que é essencial que pais, responsáveis e educadores estejam atentos e saibam diferenciar racismo de bullying. “O racismo é crime e tem uma ação mais voltada para ódio ou repúdio e sentimento de superioridade entre pessoas de raças diferentes.”
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Luciana entende que, quando uma criança diz que o cabelo crespo de outra é ruim ou que uma colega não pode ser princesa na brincadeira porque não existe princesa negra, não é apenas um desentendimento. "É uma reprodução de racismo que precisa de uma intervenção para que não continue ocorrendo."
Diante de situações como essas, é muito importante fazer com que a criança sinta-se amparada e entenda que não há nada de errado com ela, sempre trabalhando a autoestima e confiança dos pequenos.
Referências
Buscar referências é uma forma de construir essa autoestima. “A representatividade é um recurso humano vital do processo imaginário para a criança, no saber quem sou, na autoconfiança, no acreditar em sua capacidade, ideais e para a sua estrutura emocional interna", explica a psicóloga.
Essas referências podem ser personagens de livros, desenhos ou filmes, como a princesa da animação “A princesa e o sapo”. Também é interessante mostrar para as crianças grandes nomes da história que, assim como ela, são negros. A partir da sua própria experiência de vida com as filhas, Luciana aconselha outros pais a apresentarem referências nas mais diversas áreas, elogiando e valorizando profissionais negros que, no futuro, podem se tornar inspiração.
“Para as crianças negras, a referência identitária, fará com que elas construam a identidade racial, entendendo que sua estética é distinta, mas tão bela quanto aquela que a mídia e a sociedade insistem em imprimir como padrão”, comenta Egnalda. Essas referências também serão importantes para que elas não se sintam sozinhas e consigam construir uma perspectiva de possibilidades positivas.
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Pais brancos x filhos negros
Egnalda é filha de um casal interracial, de mãe branca e pai negro. Durante seu crescimento, a palavra "racismo" nunca foi sequer mencionada. Em casos como o dela, a construção da autoestima da criança com referênciais positivas é ainda mais importante. “Se a criança for o único pontinho negro no meio onde ela circula, sem nenhum referencial, ela terá mais dificuldade em se perceber e valorizar como negra”, diz Luciana.
“É um aprendizado mútuo de dedicação e empenho”, comenta Cíntia. Para a psicóloga, a forma de conduzir a questão do racismo em crianças negras com pais brancos dependerá de cada família e das subjetividades da criança. Além das referências, é essencial que a criança se sinta acolhida e confortável para falar sobre o tema com os filhos.
"Converse com os familiares e amigos mais presentes que já demostraram atitudes racistas com outras pessoas anteriormente", completa a psicóloga. Essa atitute pode evitar comentários desnecessários e constrangimentos com crianças negras.